Nasceu em Yaoundé, capital dos Camarões. Faça-nos um retrato da sua família.
O meu pai era professor primário e também foi presidente da junta de freguesia da vila onde vivíamos. Quando eu nasci ele já não dava aulas, já era diretor da escola. Ele faleceu eu tinha uns 14 anos.
Faleceu do quê, sabe?
Não sei, deve ter sido do coração, porque ele não estava doente. Jantou, foi-se deitar e morreu a dormir.
Foi um grande choque.
Foi muito forte. O problema é que eu tenho uma família muito grande. Não é como aqui em Portugal. Nos Camarões pratica-se a poligamia e o meu meu pai tinha três mulheres, nós vivíamos todos juntos. Hoje em dia nos Camarões a poligamia já é um pouco mais moderna, os homens se têm duas mulheres arranjam duas casas, cada uma vive na sua casa com os respetivos filhos e ele é que vai vivendo numa e noutra casa. No meu tempo não era assim.
A casa era grande, havia espaço para quase 30 pessoas?
Sim, era uma casa grande, cada mulher tinha o seu quarto e a sua cozinha. Economicamente o meu pai estava bem, só que éramos muitos. Ao todo 25 irmãos. Da minha mãe éramos seis. Fazíamos tudo juntos, comíamos juntos, íamos à escola juntos... Eu e os meus irmãos da minha geração, porque quando nasci já tinha irmãos adultos que trabalhavam.
Estão todos vivos?
Só faleceu um irmão, o terceiro da minha mãe, de acidente de viação.
O Meyong é dos mais novos?
Eu sou o mais novo da minha mãe. Do meu pai tenho três irmãos mais novos, da terceira mulher dele. Duas raparigas e um rapaz, que é o mais novo de todos. A minha mãe era a segunda mulher do meu pai.
A sua mãe e as outras mulheres não trabalhavam?
Não, cuidavam da casa. Por isso quando ele morreu elas só tinham o subsídio da morte dele, que dividiam pelas três e não chegava para alimentar tanta gente.
Gostava da escola?
Sim. O meu pai não brincava com a escola [risos], toda a gente ia à escola. Todos acabaram a escola. O meu pai era muito rígido, não se brincava com a escola. A minha vida mudou com o falecimento do meu pai, houve problemas. Eu saí, fui para Itália, tinha 17, 18 anos. Se o meu pai ainda fosse vivo, eu não poderia ter saído sem ter terminado o secundário. Com ele era primeiro a escola e depois o futebol. Hoje acho que a minha vida podia ter sido diferente. Quando ele faleceu só tinha a minha mãe, que também já tinha dificuldades. Eu era miúdo, jogava e todos os clubes queriam levar-me e pagavam. Pagavam a escola e tudo, e ainda dava para dar dinheiro para ajudar a minha mãe. E a minha mãe já não tinha força para dizer que não a algumas coisas. A partir daí já não era escola/futebol, era futebol/escola. Quando tinha jogo ou treino fora, faltava às aulas, mas não se passava nada porque o clube tinha contacto com a escola. Se o meu pai ainda fosse vivo seria impossível isso acontecer.
Qual foi o seu primeiro clube?
Joguei primeiro no Tounnerre Yaoundé.
Como é que lá foi parar?
Eles foram buscar-me à escola, porque um dos meus irmãos mais velhos tinha jogado nessa equipa. Havia o Tounnerre e o Canon. Ambos queriam contratar-me. Até houve uma confusão, fizeram muitas propostas. O meu pai não estava, porque se estivesse nem havia discussão: ia para clube nenhum [risos]. Foram falar com a minha mãe. Eu não sabia para qual devia ir mas como tinha um dos meus irmãos mais velhos que tinha jogado no Tounnerre, ele disse-me que era melhor ir para esse clube. Era uma equipa tipo Sporting, ele disse-me que eu devia ir para lá porque eles apostavam mais nos jogadores jovens e tinha muito mais probabilidade de jogar. Fui e logo quando começou o campeonato puseram-me a jogar com os mais velhos.
Começou com que idade nesse clube?
Tinha 15, 16 anos.
Já jogava como avançado?
Sim. Dos 10 aos 13 anos jogava atrás, à defesa. Até tinha uma alcunha. Tem um pessoal lá nos Camarões que me chama ainda esse nome [risos].
Qual nome?
Eu nem conheço muito bem o gajo, é um argelino que se chamava Nordine Kourichi, um central. Nos Camarões toda a gente me chamava Kourichi [risos]. Já eu era avançado e eles continuavam a chamar-me Kourichi.
Entretanto muda de clube, vai para o Canon.
Sim, logo depois, porque quando passo lá eles já me deixavam jogar na 1ª equipa. No Tonnerre só joguei com os juniores.
Como se dá a ida para Itália?
Fiz uma boa época, entrava muito nos jogos do Canon. Fiz muitos golos e já jogava na seleção nos sub-23. Fiz a formação toda com o [Samuel] Eto’o, até fui capitão dele [risos]. Nos Camarões eu era mais conhecido do que ele. Por isso é que costumo dizer que quando era novo eu jogava muito mais, era muito bom mesmo, tinha moral lá nos Camarões. E só joguei uma época.
Quando é chamado a primeira vez a uma seleção?
Tinha 17 anos. Mas não fiz jogo nenhum, fazia os estágios, treinava. Mas foi uma experiência muito boa para mim. Eu só me estreio na seleção olímpica.
Aquela com que foi campeão olímpico, em Sidney 2000?
Sim.
Já lá vamos aos JO. Estava a explicar como foi para Itália. Tinha empresário?
Não. Fui chamado à seleção principal e, embora não jogasse, fazia os treinos e os estágios lá fora com eles. Foi o treinador dos guarda-redes dos Camarões, Thomas Nkono, que vive em Espanha, que me pergunta se não quero ir jogar em Itália. O sonho de todo o jogador africano é jogar na Europa. Ele tinha os seus contactos. Só que a equipa era da II liga. Eu só fazia os 18 anos em Itália por isso contrataram-me ainda como jogador júnior, que em Itália chama-se primavera. Treinava com a primeira equipa mas ia jogar com os juniores. Fizeram-me o mesmo que nos Camarões. Só me metiam a jogar na primeira equipa de vez em quando.
Foi para Itália sozinho, com 17 anos?
Sozinho. Foi duro, muito duro. Lembro-me que chorava. Não falava italiano nem nada, só francês. Quando penso nisso nem sei como é que consegui desenrascar-me. Mas no futebol não é preciso falar muito.
Ficou a viver onde e com quem?
Fiquei num apartamento com os outros miúdos italianos, dos juniores. Passávamos o tempo a jogar Playstation, quase não falávamos, só jogávamos. Eu não percebia nada.
Como se safava com as refeições, comia no clube?
Eu nunca fui esquisito com a comida. Nos Camarões, apesar de não termos dificuldades, eu não fui um miúdo mimado. Para dar um exemplo, eu só comecei a beber leite com 14, 15 anos. E porquê? Porque quando começo a treinar com as equipas dos clubes eles davam-me já um dinheiro. Não era muito, mas dava para ir a escola e comer. Era assim que comprava o leite. Nos Camarões o leite é muito caro, não era toda a gente que bebia leite. O meu pai bebia, mas não dava para todos nós.
O que comiam ao pequeno-almoço?
[risos] O pequeno-almoço era os restos do dia anterior. Tinha só uma refeição de faca e garfo por dia, o jantar. O pequeno-almoço era os restos do jantar do dia anterior e não almoçávamos, comíamos só umas frutas ou assim, não tinha uma refeição completa. Por isso, se eu tenho de comer carne, eu como carne, se tenho de comer peixe, como peixe, não sou esquisito, não dava para ser esquisito. Cresci assim. Aliás, a comida italiana é muito boa. Mas mesmo que fosse parar a outro país, não tinha problema, a comida para mim era um problema menor. O problema foi a língua, porque tive muita dificuldade em comunicar, e o facto de estar sozinho. Nem falava muito para casa, porque era muito caro [risos].
Ficou quanto tempo em Itália, no Ravenna?
Um ano e meio. Depois saí para Espanha, para Mérida. Só que o Mérida estava com problemas e o clube acabou, fechou a loja. Nem cheguei a jogar no Mérida. Fiquei num hotel uma semana e o Nkono trouxe-me para Portugal, para ir treinar ao Benfica [risos].
No Benfica?
Sim, mas na equipa B. O treinador era o José Morais.
Não fica no Benfica porquê?
Porque o Benfica estava a jogar na 3ª divisão, se não me engano, ou na distrital, e ia ser mau porque era um escalão muito baixo para mim. Era um campeonato que não me ia dar nada e eu não queria ficar. Nessa altura estava a jogar as eliminatórias para os Jogos Olímpicos. Precisava de jogar, mas não naquele nível. É o próprio José Morais que me diz: "Se quiseres assinar, eu já dei indicações para assinares connosco. Agora, tu já sabes, vais jogar num campeonato inferior". Eu disse que se fosse para jogar na I ou II divisão que ia, mas assim não. E foi ele que ligou para o Rui Águas, que era treinador na altura do V. Setúbal. Disse-lhe que tinha um avançado que era bom, explicou-lhe a situação, que eu ia ficar no Benfica mas que para mim o melhor era jogar noutro nível porque era um jogador que já dava para jogar na I divisão. O Vitória estava no último lugar da I divisão.
O Rui Águas gostou logo de si?
Ele mandou-me ir ter com ele e fui logo fazer um jogo amigável, em Évora. Cheguei lá e ele pôs-me a jogar em várias posições. Pôs-me a extremo, passados 15 minutos diz-me para ir para o outro lado, passados mais 20 minutos manda-me assumir o lugar de ponta de lança, passados mais 10, 15 minutos diz-me para passar a '10'. E quando acabou o jogo diz-me: "Tu ficas cá". Voltei para Setúbal já no autocarro do Vitória, com os outros jogadores.
Ficou feliz?
Eu só queria jogar. Naquele momento o importante era jogar e queria jogar num nível bom.
Nem se preocupou com dinheiro?
Não. Nem sabia quanto ganhava. Não era um problema de dinheiro, o dinheiro não era importante para mim porque de qualquer maneira o dinheiro que ganhava mandava todo para a minha mãe. Eu não precisava de dinheiro para nada. Ia fazer o quê com dinheiro?
Não havia nada que quisesse ter, que quisesse comprar?
Não. Nos Camarões quando saio para o Canon eles pagaram dinheiro, porque naquele momento tinha quase todos os clubes dos Camarões atrás de mim. Pagaram 5 milhões de dinheiro dos Camarões e até hoje não sei se alguma equipa pagou tanto. Isso equivale mais ou menos a 8 mil euros. Esse dinheiro lá era muito. Dei tudo à minha mãe. Quando eu precisava de ténis ia pedir dinheiro à minha mãe. Porque eu nessa altura vivia com uma irmã.
Porquê?
Era perto do clube onde estava. Mas sobretudo porque ela pediu à minha mãe para me deixar viver com ela porque ela tinha três filhos pequeninos, vivia com duas irmãs e precisava de um rapaz em casa. O marido dela como também era polígamo não estava sempre em casa, tinha outra família na cidade. Eu fiquei muito tempo com ela, ia com as minhas irmãs, que eram um pouco mais velhas, à escola e levávamos os pequenos também. Era para ter um homem em casa. Lembro-me que quando recebi esse dinheiro perguntei à minha irmã o que ela queria e levei-a ao mercado para comprar coisas. Por isso, em Setúbal, eu não ia precisar de dinheiro, não ia comprar carro, não ia comprar casa, ia fazer o quê com o dinheiro?
Quando começou a jogar no Vitória, notou uma grande diferença?
Senti-me muito bem e foi aí que comecei a gostar de Setúbal. Fui muito bem recebido. Quase conseguíamos a manutenção. O último jogo, se não me engano, era em casa contra o U. Leiria, precisávamos ganhar, mas empatámos. Desde que assinei falhei dois ou três jogos por causa da seleção. Como a seleção não era a seleção principal, o campeonato não parava, por isso tive de falhar uns jogos aqui e estragou tudo.
Está convencido de que se tivesse jogado os jogos todos os Vitoria não descia?
Acho que sim. Eu fazia muitos golos.
É nesse ano que é campeão olímpico. Acreditavam que podiam ser campeões olímpicos?
Não vou dizer que acreditávamos, mas nós tínhamos uma boa equipa, era forte. Fomos campeões africanos com essa equipa, em 1999, na África do Sul.
Quando começam a acreditar que podem chegar longe nos JO?
No jogo dos quartos de final em que eliminamos o Brasil de Ronaldinho e do Helton, que foi guarda-redes do FCP. Nesse jogo nós fomos aquecer e eles nem apareceram no aquecimento. Começámos a jogar e tivemos logo duas expulsões. Eram 9 contra 11 e mesmo assim eliminámos o Brasil. Acabou o jogo empatado. Ainda havia o golo de ouro. Eles a atacar e nós só a defender, porque não dava para atacar. Uma diferença enorme. São 8 contra 10, sem contar com os guarda-redes, é uma diferença, parece que o campo fica maior. Nós fechámos, só defendíamos, à espera dos penáltis. Mas ainda conseguimos fazer um contra ataque, fizemos o golo e acabou o jogo. Se não houvesse o golo de ouro se calhar eles empatavam, porque nós não íamos aguentar. Foi a partir daí que começámos a sonhar: "Fogo, se nós eliminamos o Brasil e a jogar com menos dois homens..." O nosso guarda-redes, o Kameni, destaca-se. O outro guarda-redes que era titular fez os dois primeiros jogos e o treinador troca-o pelo Kameni no terceiro jogo e ele faz um bom jogo. Depois joga contra o Brasil e faz um jogo fantástico. Quando acabou os JO foi direto para a primeira equipa.
Depois vocês fazem uma pressão imensa por causa dos prémios, inclusive ameaçam não jogar a final, não é?
Sim. Depois eliminamos o Chile e a final era contra a Espanha, em Sidney. Era em Sidney que estava a delegação toda e fomos perguntar pelos nossos prémios. Eles disseram que depois pagavam. África é sempre assim. Depois havia reuniões, o presidente dizia que iam pagar, mas essa história é muito antiga, já a conhecíamos e decidimos que se não há dinheiro, não há jogo. Ele pensava que nós estávamos a brincar.
E arranjaram o dinheiro?
Eu não sei onde arranjaram o dinheiro. Sei que na véspera da final diziam que iam pagar em cheque e nós dissemos que não, só com dinheiro à vista. No dia seguinte, apareceu uma mala cheia de dinheiro e fomos jogar, nem tomámos o pequeno-almoço como deve ser, porque o jogo era às 11h. Eles vieram acordar-nos para tomar o pequeno-almoço e nessa altura a maior parte de nós dissemos: "Acordar para quê? Não vamos ao jogo. Deixa a gente dormir". Até que dizem que havia uma mala com o dinheiro e só depois de toda a gente ver a mala com o dinheiro e entregarmos num banco é que decidimos ir ao jogo da final. Só que entrámos no jogo a dormir [risos].
Levaram logo dois golos?
Pois foi [risos]. Na primeira parte estávamos a perder 2-0. Mas também, nós já estávamos contentes, porque, de qualquer maneira, íamos voltar com uma medalha. Que se lixe. E continuámos a jogar normal. Fizemos 2-1, depois 2-2. Fomos ao prolongamento. Fizemos 3-2, mas o árbitro anulou o golo e fomos aos penáltis. E ganhámos nos penáltis.
Teve noção do que estava a acontecer, da grandeza que é ganhar uns JO?
No momento não. Só percebemos o que tinhamos acabado de fazer quando chegámos aos Camarões. Nunca vi tanta gente quando chegámos aos Camarões. Do aeroporto à cidade, havia gente de um lado e do outro da estrada. Éramos dois jogadores por cada jipe, era uma linha de jipes, e de um lado e do outro da estrada só gente, gente, uma loucura. A seleção dos Camarões já ganhou a Taça de África e nunca houve uma festa assim. Fomos recebidos pelo presidente, condecorados... O nosso grupo ficou na história dos Camarões.
Veio em janeiro para o V. Setúbal, que desceu de divisão. Ficou muito desiludido?
Fiquei. Se não tenho falhado aqueles jogos, é a minha opinião, se tivesse jogado, se calhar não descíamos.
Gostou do Rui Águas?
Sim, ajudou-me muito. Gostei dele como treinador e como pessoa. Eu estava a começar a minha carreira aqui na Europa e mais do que um treinador eu precisava de alguém que me ajudasse a nivel psicológico, porque eu ainda estava em formação. Eu ainda não era jogador, verdadeiramente. Porque nos Camarões a gente joga, mas é diferente, na Europa é outra coisa, é mais sério.
Ficou a viver onde em Setúbal?
Fiquei no Novotel durante uns três meses. Porque arranjaram um apartamento ao pé do Vitória, atrás do centro comercial Bonfim, e quando fui ver disse que não tinha condições para eu ficar.
Porquê?
Tinha que ser um apartamento mais adequado e com mais conforto. Por exemplo, na sala tinha uma mesa daquelas de piquenique que abrem e fecham, com uns bancos corridos. Eu queria um apartamento em condições, podia ser t0 ou t1, mas tinha que ser em condições. Eu não podia ficar em qualquer sítio. No Novotel estava bem. Almoçava aqui no café da D. Ester, que já faleceu. A D. Ester falava um pouco de francês. Eu comia sempre lá. Agora é a filha dela que lá está, a Neuza Silva, ela foi tenista. Essa gente é que me conhece muito bem.
Teve muita dificuldade com o português?
Não, porque em Itália eu consegui aprender um pouco de italiano. E italiano e português são grandes amigos [risos]. Por isso, já percebia algumas coisas. No final da época é que me arranjam um apartamento no Montalvão. Já tinha outras condições. Fui viver para lá, sozinho. Vinha comer à D. Ester, almoçava e jantava, Quando não queria jantar lá, ela metia o comer num tupperware e eu ia para casa comer. Ficava em casa a jogar FIFA na Playstation, que tinha aprendido em Itália. Eu quando vim para cá nem bebia álcool nem nada. Ainda hoje não bebo. Só vinho tinto, de vez em quando, mais nada. Nunca bebi cerveja. Quando cheguei a Portugal, nos primeiros quatro ou cinco anos não bebia álcool nenhum mesmo.
Na época seguinte vem o Jorge Jesus, com quem cria uma relação especial, não é?
Sim. Na realidade o Jesus é que faz de mim jogador. Ele percebe como eu jogo, vê quais são as minhas qualidades e explora-as melhor. Por exemplo, com os outros treinadores, sempre joguei a ponta de lança, com ele não. Lembro-me de um ano até em que jogava a extremo esquerdo. Ele fez esse modelo no Benfica. Ele punha um ponta de lança e três homens atrás que trocavam de posição. Eu fazia parte desses três. Estava eu à esquerda, o Marco Ferreira à direita e o Jorginho ao meio.
Foi com ele que aprendeu mais sobre tática?
Sim. A maioria de tudo o que sei hoje foi ele que me ensinou.
Como era o Jesus no trato com os jogadores? Era bruto?
Era um pouco bruto para quem não percebe de futebol. Mais aqui no Vitória, no Braga já não tanto. Até lhe perguntei, lá em Braga: "Mister, há uns anos no Vitória o mister era complicado, era mais duro". E ele disse-me: "Zézé, em Setúbal faltavam-te muitas coisas, por isso tinha que andar em cima de ti. Aqui já é diferente, já és mais jogador, já não preciso andar tão em cima" [risos]. Por isso é que eu digo que ele só é bruto para quem não percebe de futebol. Em termos táticos nunca tive problemas, nunca tive conflitos com ele.
É com o Jorge Jesus que sobem de divisão, no último jogo, com um golo seu.
Sim, é um dos golos mais importantes para mim e dos que mais festejei. Nesse jogo o estádio do Bonfim estava cheio. Foi a primeira vez que vi o estádio tão cheio e um ambiente fantástico. Consigo fazer o golo mesmo no fim. Mudou muitas coisas e a vida de muita gente.
A vida de muita gente?
Sim. Se não tinha marcado naquele jogo o Vitória não subia de divisão e ia ter muitos problemas. Seguramente o Jesus não ia ficar. Eu pessioalmente não sei se ia ficar mais um ano no Vitória. Ia mudar muitas coisas para o clube, para mim, para o próprio Jesus e para muita gente aqui.
Nessa altura já tinha empresário?
Não. Para mim um bom jogador não precisa de empresário. Se tu és conhecido as pessoas contactam-te. Se calhar para ir jogar para fora, sim, é preciso. Quando fui jogar para Espanha, aí já é diferente. Veio um empresário falar comigo.
Gostou logo da cidade de Setúbal e das suas gentes?
Sim. Aqui come-se muito bem e o pessoal é muito porreiro. A cidade em si é boa. Quem não gosta de ir passear junto do mar e comer um bom peixinho? Depois, é perto de Lisboa. É bom.
Quando e onde conhece a sua mulher? É em Setúbal?
Sim, é aqui. Conhecemo-nos em 2003. A Teresa praticava atletismo no Vitória. É setubalense. Ela vinha treinar e nós cruzávamo-nos, mas não falávamos. Um dia, chamei-a e ela não olhou para trás, não respondeu. Eu conhecia bem uma das amigas do grupo dela, que era mais faladora, e disse-lhe que tinha chamado a Teresa mas que ela nem olhou para mim. Ela diz-me que a Teresa lhe tinha contado esse episódio e que ia falar com ela. E pronto, digamos que essa amiga facilitou o nosso contacto.
Casaram?
Não foi assim tão fácil [risos]. Começámos a namorar. Eu vivia sozinho, ela vivia com a mãe dela, os pais estavam separados. Ela vivia lá em Montalvão, éramos vizinhos e nem sabia. Entretanto mudei de casa, sai de Montalvão para perto do estádio. Como já namorávamos eu disse-lhe que podíamos viver juntos. Ela falou com a mãe, que disse que ela estava maluca, não dava permissão [risos].
Explicou porquê?
Quando a Teresa disse à mãe que eu era preto ela não achou muita piada. E eu disse à Teresa que se a mãe não gostava dos pretos então tínhamos um problema. Mas também não queria forçar as coisas. O pai dela sempre foi mais tranquilo, só que o pai é um grande vitoriano, não sei se foi por causa disso [risos)]. Para ele é Vitória, Vitória, Vitória. Ele disse-lhe para ela fazer o que quisesse, e se gostava de mim... A mãe não e a mãe é que era a responsável por ela. Foi complicado. Tive de ir lá falar com ela. Eu também tinha o mesmo problema na minha família.
De dizer à sua família que namorava uma branca?
Sim, porque a minha mãe dizia para eu ficar tranquilo que ia ver lá na cidade uma mulher de boas famílias, que falavam com a família, arranjavam tudo, eu ia e pronto. Mas como é que eu ia casar com uma pessoa que não conheço e nunca vi? Antigamente era assim, com a minha mãe foi assim. A minha mãe foi aluna do meu pai e o meu pai nem falou com ela, foi falar com o pai da minha mãe, disse que gostava da filha, que queria ficar com ela, que tratava dela. E o meu avô, como o meu pai era o gajo que sabe tudo, era professor…
Era como um deus.
[risos] Sim. Foi por isso que o meu avô deixou. A minha mãe ainda era criança, devia ter uns 14, 15 anos e ele já tinha outra mulher. Mas lá é assim e por isso a minha mãe queria que fosse também assim comigo, porque tinha sido feliz. Tinha sido um casamento bom e tinha gostado do meu pai.
O Meyong já não queria isso para si.
Eu disse à minha mãe que às vezes não era bem assim, que obrigavam a mulher e depois as coisas não corriam bem e a mulher era obrigada a ficar na mesma, vivia num inferno...
Então como é que resolveu o problema com a Teresa?
Ela é que resolveu o problema. Falou com a mãe dela e disse-lhe que não havia volta a dar. Ou ela aceitava e tratávamos de tudo juntos ou ela não aceitava, mas ela, Teresa, saía na mesma. Ela vinha viver comigo, e cortava com a mãe, se ela não estivesse de acordo.
E?
A mãe dela pensava que eu era mais um negão. Não me conhecia, não percebia nada de futebol, nem do Vitória. Durante um tempo ficámos longe, a Teresa veio viver comigo, depois ficou grávida e com o tempo fomo-nos conhecendo. Hoje a mãe da Teresa, da família toda dela, é quem mais gosta de mim [risos].
Tornou-se como uma mãe para si também?
É. Ela depois de me conhecer mudou completamente. E não foi só comigo. Ela veio dizer-me: “Olha, eu tinha uma ideia dos negões... Mas agora já não”. Neste momento até está a trabalhar em África. É engenheira, faz estradas e essas coisas.
A sua mulher faz o quê profissionalmente?
Ela fazia atletismo mas não como profissional. Ela fez farmácia, mas agora não está a trabalhar porque quer ficar a tratar da Luna e da Ema.
Quantos anos têm as suas filhas agora?
A Ema fez 8 anos e a Luna vai fazer 14 em junho.
Assistiu ao nascimento delas?
Da Luna sim porque estava cá, da Ema não. Na altura estava em Braga, tinha ido jogar à Madeira. Viemos da Madeira, fui a Braga buscar o carro e quando cheguei já tinha nascido.
Aguentou-se bem no parto? Deve ter sido uma emoção muito grande.
É uma coisa que nós, africanos, temos. Mas eu falo por mim. Não é que não tenha sentimentos, mas resistimos mais às emoções. A minha mulher diz que às vezes eu não tenho coração [risos]. Mesmo quando jogava o pessoal dizia que eu era muito frio.
Foi sempre assim?
Sempre. Há muita gente que quando fica à frente da baliza, as pernas tremem, a mim não.
Entretanto conquista a Taça de Portugal em 2004/2005. Foi outro momento alto da sua carreira.
Sim.
Também foi o Meyong que marcou o golo da vitória. Entre este golo e o outro que assegurou a permanência, qual dos dois é mais importante para si?
É difícil, os dois são importantes.
Porque é que depois vai para o Belenenses? Fartou-se do Setúbal?
Não, acabava o meu contrato.
O V. Setúbal não queria renovar?
Queria, mas não dava as mesmas condições do que o Belenenses. Quando acabou o meu contrato, eles decidiram que tinham de reduzir o meu salário. Não tinha como me baixarem o salário, se tinha o Braga e o Belenenses que me davam mais. Não fazia sentido.
Nenhum dos três grandes o procurou?
Não. Eu falo do que tive em concreto. Tinha o SC Braga e o Belenenses.
O que o levou a optar pelo Belenenses?
Primeiro falei com o presidente, o Chumbita. "Senhor presidente, eu fico aqui no Vitória, nem quero subir o meu salário”. O Braga dava-me o mesmo, o Belenenses dava-me mais - “mas baixar salário também não quero. Não quero que me aumentem, quero o mesmo salário. E fico cá no Vitória”. Ele disse que tinha de falar com a assembleia, porque não é o presidente que decide. Na assembleia decidiram que o Vitória não tinha condições para pagar o mesmo salário. E fui para o Belenenses. Mas acho que foi um erro grave da parte da direção, porque fui para o Belenenses e...
E é o melhor marcador do campeonato.
Sou o melhor marcador do campeonato e sou vendido por dois milhões. Com o salário que o Belenenses me pagava, eles ganharam muito dinheiro. Se tivesse ficado no Vitória, com o dinheiro que eles não queriam pagar, que eram tostões, iam receber muito mais. Mas pronto.
Quando vai para o Belenenses continua a viver em Setúbal ou muda-se para Lisboa?
Continuo a viver aqui em Setúbal porque já tinha comprado a casa.
O que realça mais de tudo o que viveu no Belenenses?
No Belenenses faço uma boa época. Deram-me um apartamento em Belém, um T1, mas eu vivia aqui. Fui muito bem tratado, um grande clube, com boas condições.
Então o que o leva a sair para o Levante?
O Levante pagou a transferência. E isso era desejado por mim e pelo Belenenses, que queria ganhar dinheiro.
Foi ganhar muito mais?
Sim, claro. A liga espanhola já é outro patamar.
Quando vai para o Levante tem outra proposta, não tem?
Sim, tenho uma proposta do Lokomotiv de Moscovo, mas as coisas não correram bem, houve pessoal que foi ganancioso, e optei por ir para o Levante. Se calhar na Rússia ia ganhar mais dinheiro, mas não se sabia o que ia acontecer.
Adaptou-se bem ao futebol espanhol?
Não, não correu assim tão bem como eu queria. Mas acho que a culpa foi mais minha. Fiz alguns jogos mas só marquei um golo no primeiro ano. Era muito fácil dizer que foi porque joguei pouco, que o treinador não me pôs a jogar, mas não funciona assim. Um gajo para jogar muitas vezes depende de si próprio, não depende do treinador. O treinador quer, como todos, ganhar o jogo.
Não estava motivado?
É complicado. Em Portugal estava a jogar e ganhava bem, mas o normal. Lá comecei a ganhar bem e quando tu ganhas bem, pensas que tudo se torna mais fácil. O que queres compras, já não tens objetivos. Acho que perdi um pouco o objetivo. Parecia-me que já estava no topo. Percebi isso mais tarde quando pensei sobre o assunto. Porque é que eu não jogava nessa equipa, com as condições que tinha?! Tinha de jogar. Mas para jogar não basta dizer “quero jogar”, tenho de trabalhar, tenho de lutar. Acredito que não lutei o suficiente. E claro, ninguém me ia dar as coisas. Eu sou africano, nunca me deram nada. Se não trabalhar, não vou ter as coisas. Há pessoal a quem dão coisas e pronto. Mas eu não sou desses. Tinha que ir lá buscar. Se calhar estava à espera disso. Cheguei a Espanha, era o melhor marcador do campeonato português e achava que por isso ia jogar sempre. E não é assim, não é por seres o melhor marcador português que chegas e jogas. Isso já era passado. Fiquei chateado por não ser a primeira opção. Achava que eu é que tinha de ser a primeira opção. Foi um pensamento errado.
Foi sozinho para Espanha ou com a família?
Sozinho, já tínhamos a Luna. Mas a Teresa ficou lá muito tempo comigo porque a Luna ainda era bebé. Ela deixou de ir comigo quando a Luna começou a ir para a escola. Decidimos pô-la na escola aqui em Setúbal em vez de andar a saltar.
Quando sai do Levante, ainda vai para o Albacete.
Sim, no Albacete foi igual.
Foi porque quis ou foi o clube que decidiu?
Eu ainda fiz um jogo pelo Levante e é esse jogo que me lixa. Fiz um jogo no início da época, fomos jogar com o Maiorca. E nesse jogo o meu empresário diz-me que o Albacete me queria porque precisava de um avançado com o meu perfil. Apesar de ser um clube de II liga, o empresário convence-me, porque diz que ali vou jogar, vou entrar sempre e eu precisava de jogar. Como o contrato era o mesmo e eu queria jogar, aceitei. Só que já tinha feito um jogo no Levante. Faço a primeira volta toda no Albacete, fiz grandes jogos, ai já jogava, mas não fiz um golo.
E é aí que surge o Belenenses?
Surge o Belenenses porque o Jesus está lá. O Jesus é que me diz: “O que é que estás a fazer aí em Espanha? Deixa isso, vem para aqui”. Consegue dar-me a volta. Venho para cá, mas naquele tempo eu não sabia daquelas regras, que não podia jogar em três clubes na mesma época. E também ninguém me perguntou nada. Se soubesse se calhar avisava. Mas também acho que esse não era o meu trabalho. O meu trabalho é jogar, os empresários é que têm de tratar dessas coisas. Os empresários e o diretor técnico. Se sou director técnico, vou contratar um jogador que não pode jogar?
Mas chega a fazer um jogo pelo Belenenses e é aí que surge o “Caso Meyong”.
Sim, entro, faço um golo, já não sei contra quem, e ganhamos. Depois do jogo, à noite, estava a ver na SIC Notícias, e é o Rui Santos que levanta essa questão. A partir daí, a equipa mete o assunto na Federação e sou suspenso.
Continuou a treinar, mas treinar e saber que não pode jogar... A motivação não é a mesma.
Não é a mesma, mas para treinar com o Jesus é preciso ter sempre motivação [risos]. Com o Jesus vais sempre ter. Treinava normal. Tinha que chegar sempre a horas, só não podia jogar jogos oficiais, mas treinava. Nessa altura ele disse-me que desde que fui para Espanha estava mais jogador.
Jorge Jesus achou que evoluiu em Espanha apesar de não ter jogado muito?
Sim. Depois eu volto para o Levante porque ainda tinha contrato com o Levante, só que o Levante nessa época desce de divisão, vamos para a 2ª liga e querem baixar o salário de toda a gente. Mas eu já tinha o Braga interessado em mim.
Porque o Jesus foi para lá?
Sim. Eu disse-lhes que não queria baixar o meu salário, que tinha o SC Braga interessado em mim. Só ficava se não me baixassem o salário. Deixaram-me ir.
Vai para Braga sozinho ou a sua mulher e a sua filha vão consigo?
Nessa altura a Luna já andava na escola e por isso vou sozinho. A Teresa e a Luna iam ter comigo todos os fins de semana.
A primeira época no SC Braga com o Jesus corre-lhe bem. E a segunda, com o Domingos Paciência?
A primeira época corre-me bem e a segunda ainda corre melhor. Ficamos em segundo lugar, fomos vice-campeões.
Na terceira época, parte o quinto metatarso e não vai à Liga dos Campeões.
Pessoalmente acho que não foi por causa disso.
Foi porquê então?
Não cheguei a saber.
Ficou triste por não jogar a Liga dos Campeões?
Não fiquei triste. Quer dizer, toda a gente quer jogar, mas tinha tido essa lesão e ainda não tinha recuperado a cem por cento. Fiquei com a sensação que devia ter jogado...
Isso foi já com o Leonardo Jardim. Não se adaptou a ele?
Não, porque o Jardim tinha um modelo de jogo que não era favorável para mim.
É por isso que volta para Setúbal?
Sim. Com ele o jogo era muito baseado no contra ataque, e ele precisava de jogadores rápidos à frente. Eu não era assim tão rápido, não me enquadrava bem na forma dele jogar. Da equipa que fica atrás da bola, ganha a bola e sai rápido. Há cinco anos ainda o fazia, mas agora já era mais um avançado posicionado para jogar em ataque apoiado.
Como consegue o regresso ao Vitória?
Lembro-me que tive uma conversa com o Leonardo Jardim, ele diz-me que sou bom jogador mas já não tinha tanta velocidade. Que devia procurar um campeonato menos intenso, que assim ia ter mais oportunidade. Não gostei muito dessa conversa. Acho que ele estava a pensar que eu já estava acabado e eu só tinha 31 anos. Com 31 anos ainda não és velho. Falei com o presidente do SC Braga, que foi um espectáculo.
Correu bem o resto da época no V. Setúbal?
Sim, acabámos por salvar-nos. Tive um problema no joelho, no menisco, e depois de termos conseguido a manutenção, fui operado aqui no Vitória. Na época seguinte fiz muitos golos e foi bom para mostrar a quem achava que eu já estava acabado.
Vai jogar para Angola a seguir. Porquê?
Faço uma época boa aqui e depois vem um pessoal lá de Angola, o presidente Fernando Oliveira chama-me, queria falar comigo. Explica-me que havia uma equipa angolana, o Kabuscorp, que queria que eu fosse para lá jogar, que iam fazer uma parceria com o Vitória. O Vitória estava mesmo mal, já não pagava há cinco ou seis meses, foi dos piores anos a esse nível, mas nós ganhávamos os jogos mesmo sem receber. No ano anterior, quando venho emprestado, recebia do SC Braga, não tinha rescindido o contrato. O Braga continuava a pagar-me até o final da época uma grande parte e a outra pequena parte era do Vitória, que não pagava nada. Como no contrato estava que se o Vitória não me pagasse, pagava o Braga... O presidente do Braga é um espectáculo, e também sabia o que eu dei ao clube, por isso facilitou, não complicou nada. Gosto muito do Braga.
Mas conte lá como vai parar a Angola.
O presidente explica-me que tem essa parceria com o clube angolano, mas eu não queria jogar em África. Entretanto vem também uma proposta do FC Porto. Mas era para eu ir como segunda opção. Precisavam de um avançado e pensaram em mim. Tinha essas duas propostas. No dia seguinte o presidente chama-me outra vez, explica-me a situação mas de outra maneira, com sentimento…
A apelar ao coração que o Meyong diz não ter?
[risos] Sim. Eu tenho [risos]. Apelou ao coração, ao sentimento, explica que estávamos a viver uma situação difícil no Vitória e que essa parceria ia beneficiar todos. Tive de aceitar. Também vi o esforço que todos fizeram, o presidente do clube angolano, que tinha vindo até cá para me explicar a situação. Não é comum um presidente vir pessoalmente para falar com um jogador, explicar as coisas. Acabei por aceitar e deixar a opção do FC Porto.
Teve pena de não ter ido para o Porto?
Sim, tive um pouco de pena. Quem é que não quer jogar no FC Porto? Quem é que não quer jogar num grande? Apesar de ter feito grandes coisas com o Braga, que foi vice-campeão e não é uma coisa pequena. Até jogar aqui no Vitória que é um grande clube, com o Belenenses que já foi campeão, não é um clube qualquer. Mas não me arrependo, acho que tomei a decisão certa a pensar em toda a gente.
Quando chegou a casa e disse que ia para Angola, qual foi a reação?
A minha mulher não gostou muito da ideia [risos].
Elas ficaram cá?
Sim. Ela tinha me dito para aceitar o Porto, que era melhor. Mas correu bem para mim e para toda a gente. Até para o presidente lá em Angola, que também é uma pessoa que me tratou bem e com quem ainda hoje tenho um bom relacionamento.
Como é que foi jogar em Angola? O Meyong vinha de um outro patamar.
Sim, mas foi uma boa experiência. No início tinha receio, porque eu conheço África, venho de África. É verdade que não vivi muito tempo lá mas ia sempre jogar com a seleção e sei como é que pensam e como é que jogam os africanos. Mas fiquei surpreendido pela positiva porque estava em Angola e parecia que estava nos Camarões. Tudo porreiro, pessoal muito bom. Se hoje me perguntassem se queria ir para Angola, eu ia outra vez.
A sério?
Sim, gostei muito de lá estar. Não imaginava que me ia sentir tão bem. Quando cheguei foi muito difícil, porque o clima é complicado, eu não estava habituado a tanto calor. Tive de me adaptar e muito rapidamente, se não, não ia dar. Depois é a vida, a comida, o pessoal, a mentalidade, a maneira de jogar até. O jogador angolano é o típico jogador africano. Privilegia muito as fintas, o jogo de rua/bancada, privilegia muito fazer o show, fazer jogada para o público em detrimento do objetivo. Aqui o futebol profissional é objetivo. Cada movimento, cada passo, cada drible, tudo o que faço é com um objetivo.
Lá é para fazer bonito.
É e aqui é que está a diferença. Aqui driblo um jogador para libertar espaço, para ter espaço para dar a bola ao colega ou para chutar. Mas sempre com o objetivo de ir para o golo. Eles não. Muitas vezes fintam só para o público vibrar. Às vezes o ala ia na linha, eu fazia o movimento para o cruzamento e o gajo em vez disso punha-se a fintar, eu passava e ficava fora de jogo.
Deu-lhes algumas duras?
Não, eu não sou um gajo agressivo. Quem me conhece sabe como sou, há pessoal que diz que eu nunca me chateio [risos].
Mas nunca falou dessas questões no balneário?
Não precisava falar porque há coisas que não podes tirar a esses jogadores. Só falei no sentido de fazerem as coisas com objetivo. Podem continuar a fazer as fintas mas com objetivo, porque dizer-lhes para deixar de fazer é uma perda de tempo, não adianta [risos].
Nunca apanhou nenhum susto?
Apanhei. Uma vez quando fomos jogar fora, perto de Cabinda, quando terminou o jogo o pessoal começou a lançar pedras. Mas essas coisas acontecem em África muitas vezes. Quando estão chateados, com razão ou sem razão, fazem isso e não percebem que é perigoso. Eu via as pedras a cair no campo e só pensava que se uma pedra dessas caísse na cabeça de uma pessoa, já foste. Mas o pessoal que faz isso não tem a noção.
Tem alguma história divertida de lá que se lembre?
A única coisa que pode ser divertida para quem vem de fora é a crença deles. Acreditam em muitas coisas. Pensam que há pessoal que consegue fazer ganhar o jogo, um bruxo ou sei lá o quê. E houve um jogo, em que logo no início começámos a perder 1-0. O dirigente que estava no banco foi ter com o treinador para lhe dizer que tinham ligado do Congo - eles lá também viam muito o campeonato angolano - , a dizer para ele pôr o Dax. Que tinha que pôr o gajo no campo porque senão não ganhávamos. Ele tinha que jogar para nós ganharmos. O treinador, o Antranik, que era de leste, ficou a olhar para ele: “Mas que história é essa?!” Começaram a discutir no banco e nós a jogar e a ver os gajos a discutir, a esbracejar [risos]. Até que o treinador percebeu que enquanto não metesse o tal Dax aquilo não ia parar.
E?
[risos] É incrível porque ele entrou e marcou um golo. Empatámos e depois acabámos por ganhar [risos]. O dirigente vem outra vez ter com o treinador: “Vê, eu disse” ([risos]. Eles são assim e quando as coisas correm bem eles ainda acreditam mais. Mas não tem nada a ver. Ele teve sorte. Ele era bom jogador e nós tínhamos uma boa equipa.
Como é que vem outra vez para o V. Setúbal? Fartou-se, acabou o contrato, como é que foi?
Chegou uma altura em que eu queria terminar a minha carreira aqui. Era a melhor coisa que podia acontecer-me. Falei com o presidente e ele disse-me que podia ficar aqui para terminar a carreira.
Foi difícil tomar a decisão de acabar com a carreira de jogador?
Foi, porque eu gosto de jogar e fazer golo. Mas se sinto que não consigo acelerar e fazer algum movimento... Lembro-me que, quando voltei, fiquei muito tempo sem jogar, porque tive uma entorse. Antigamente eu tinha entorses, ligava o pé e jogava. Mas dessa vez demorou tanto tempo para tratar, nunca mais acabava. Depois pensava que já estava bom, começava a treinar e passados mais dois ou três dias, voltava outra vez. No primeiro ano, quando eu vim em janeiro, quase não joguei por causa disso. No ano seguinte, com o Couceiro, também não joguei muito, tive vários problemas físicos. Depois achava e acho que devia deixar de jogar quando ainda estava bem.
Falou com o Couceiro, disse-lhe que era a última época?
Sim. Ele disse-me: “Tu é que sabes se queres deixar de jogar”. O clube também me disse que se quisesse terminar podia ficar no clube para ajudar os miúdos na equipa principal. Deram-me a oportunidade de ficar cá.
Já tinha ou tem algum curso de treinador?
Não, estava a tirar, só que essas coisas [risos]... Só o primeiro nível são dois anos. Um gajo com tantos anos a jogar futebol e ainda tem de fazer dois anos para tirar o primeiro nível [risos].
Quando pensou pela primeira em pendurar as botas, já sabia o que queria fazer a seguir?
Já. Sabia que ia tirar o curso de treinador. Aliás, antes de ir para Angola, já estava inscrito para fazer o curso, mas como fui para Angola não cheguei a fazer. Mas já estava inscrito, já tinha pago a inscrição e tudo.
Neste momento o que é que faz na equipa?
Sou adjunto e, como tal, ajudo. Às vezes ajudo a coordenar e a explicar alguns exercícios aos jogadores.
É supersticioso?
Não.
Crente?
Sim, acho que sim [risos]. Acho que deve haver um Deus.
Onde é que ganhou mais dinheiro?
Em Espanha.
Investiu onde?
Só em imobiliário.
Qual foi a maior extravagância que fez com o dinheiro?
Comprei um Porsche Panamera, ainda o tenho.
Continua a jogar Playstation?
Já não jogo, já não tenho muito tempo para jogar.
As suas filhas não se interessam?
Elas jogam jogos de meninas.
Gostava de ter um filho homem?
Gostava. Todos os homens querem ter um rapaz, apesar de ter meninas... Não pensava que fosse tão bom, elas são muito carinhosas.
Ainda pensa ter mais filhos?
Sim. Estamos a tratar disso [risos].
Tem tatuagens?
Só tenho uma. Fiz aqui em Setúbal. É uma flor no braço, mas não tem significado.
Qual é a sua maior frustração no futebol?
Foi com a seleção dos Camarões. Num jogo contra o Egipto, precisávamos de ganhar para ir ao Mundial em casa. Foi a maior frustração. Falhámos um penalti mesmo no fim do jogo
Foi o Meyong que falhou o penálti?
Eu não, eu lá ia falhar um penálti desses [risos].
Nunca falhou um penálti?
Já. Mas um penálti desses não falho. Embora fosse um penálti perigoso, porque se fazes golo tu és o Deus, és o Rei. Mas se falhares vão-te matar. Este era um penálti complicado, o gajo falhou, qualquer um podia falhar, mas esse foi terrível porque depois para sair do estádio, nossa senhora. Ficámos lá detidos no estádio. Coitada da polícia, nem conseguia abrir caminho para a gente sair. Foi muito difícil, muito duro.
Costuma visitar os Camarões?
Sim, tenho os meus irmãos lá. A minha mãe está em França com as minhas irmãs. Mandei-a vir para cá, para ficar comigo, tem residência em Portugal, mas só está de vez em quando porque ela gosta mais de estar com as filhas, são mulheres. E por isso fica lá um mês, dois meses.
Tem algum hobby para além do futebol?
Gosto de dormir. Quando posso durmo. Quando não tenho nada para fazer gosto de dormir. Eu consigo dormir o dia inteiro [risos]. Durmo fácil.
Quando era pequenino torcia por que clube?
Gostava do Paris Saint-German.
E em Portugal, tirando o Vitória, torce por outro clube?
Aqui em Portugal é o Vitória, o Braga e o Belenenses. Esses são os meus três grandes [risos].
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