A casa às costas

“À porta, o segurança perguntou: ‘Têm a certeza?’. Entrámos, homens aos beijos, era um bar gay. A primeira saída à noite correu tão mal...”

Carlos Martins em sua casa, no dia da entrevista a Tribuna
Carlos Martins em sua casa, no dia da entrevista a Tribuna
Nuno Botelho
Aos 37 anos Carlos Martins explica na primeira pessoa como foi duro vir para Lisboa, sozinho, aos 11 anos, jogar no clube do coração, o Sporting. Confessa também que dois anos depois, pediu para voltar para casa por não aguentar as saudades dos pais e irmãos. E explica como as lesões constantes na perna direita, uma consulta na Alemanha e o departamento médico do clube de Alvalade acabaram por levar à sua saída, pela mão de Paulo Bento. Amanhã é publicada a segunda parte desta entrevista onde fala da doença do filho Gustavo, que precisou de um transplante de medula, do Benfica e de como Jorge Jesus foi o melhor e o pior treinador que teve. Esta é a primeira parte deste longo Casa às Costas com Carlos Martins

Comece por fazer um retrato do sítio onde nasceu e da sua família?
Nasci numa simples aldeia, Gavinhos de Cima. onde habitavam umas 300, 400 pessoas. Antigamente havia muitos jovens, mas hoje desapareceu tudo, é quase uma aldeia deserta. A minha mãe, Maria de Fátima, sempre trabalhou em casa e cuidou dos filhos. O meu pai, Antonio Carlos, é engenheiro de automação elétrica. Tenho mais três irmãos, um mais velho, o Nelo, outro abaixo de mim, o João, que também foi jogador, e uma irmã, Joana Beatriz, mais novinha, tem agora 16 anos. O meu pai sempre quis ter uma menina. Uma família simples, muito feliz, que ainda hoje é muito unida. Há muito amor entre todos, quando um está mal, estão todos mal. Os meus pais ensinaram-me muita coisa boa que tento passar aos meus filhos.

Era um miúdo traquina?
Dizem-me que sim. A escola era ao lado dos bombeiros e quando ouvia a sirene saia logo a correr da sala e a professora tinha de ir atrás de mim (risos). Eu não me recordo, é o que me dizem. Sempre fui agitado, sempre gostei de desporto.

O que dizia que queria ser quando fosse crescido?
Eu queria ser igual ao meu pai, sempre.

E da escola, gostava?
Gostava, era bom aluno.

Quando era pequenino lá em casa torcia-se por que clube?
Sporting. Só a minha mãe é que era benfiquista, mas acho que já mudou também (risos). De resto era tudo do Sporting.

Carlos Martins quando chegou ao Sporting com 11 anos
D.R.

O primeiro clube onde joga é o Sporting?
Não. O meu primeiro clube é o Tourizense. O meu irmão Nelo é dois anos mais velho do que eu e só havia equipa para o escalão dele, mas como as pessoas viam que eu já dava uns toques, deixaram-me entrar na equipa dos mais velhos. Tudo começou aí, com 8 anos, jogava sempre com os colegas da idade do meu irmão. Até que fomos fazer jogos à Associação de Coimbra e alguém reparou em mim: dois olheiros, um queria que fosse fazer testes ao FCP e outro ao Sporting. O meu pai, sportinguista como é, disse: “vamos para Lisboa”.

Foi a Lisboa só com o seu pai?
Fomos todos, a tropa toda. Lembro-me que o meu pai estacionou o carro em Entrecampos e disse: “o campo é já aqui” (risos). Fartámo-nos de andar, andar . “Ó pai onde é que fica o campo?”, “é já aqui! Vocês não querem andar pá, andem lá” (risos). Ainda hoje é risota lá em casa esse episódio porque o meu dizia que ia estacionar o carro ao lado do campo.

Quando chega a Alvalade como foi o primeiro impacto?
Eu estava muito envergonhado. Para já, vi muitas pessoas, em Gavinhos habituado a ver 10 famílias, pouca gente na rua; chegar à capital e ver tanta gente... estava meio atordoado. Felizmente, as coisas correram bem. Fiz um treino em que disseram logo que me queriam. Cheguei a fazer um segundo treino, mas foi só para me dizerem que podia voltar para a terra e que iam entrar em contacto com os meus pais.

Qual foi a reação dos seus pais?
O meu pai diz em casa que quer falar com a família toda. Diz que o Sporting me quer e pergunta-me o que quero fazer. A minha mãe chorava. "Não, ele é menino, só tem 10 anos". O meu irmão Nelo, que sempre dormiu comigo até ali - era o mais velho mas eu é que o protegia - chorava e dizia que não queria que eu fosse embora porque iria dormir sozinho e que eu era a companhia dele (risos). O meu pai achava que eu devia ir, que era uma oportunidade. O meu irmão João, que tem menos 6 anos do que eu, não se apercebia ainda do que se passava.

O que lhes disse?
Eu, forte, disse: "Ó pai eu quero ir por ti, mas não quero ir pela mãe". Então decidimos que eu vinha cá e no dia em que eu quisesse sair, bastava ligar ao meu pai que ele nesse mesmo dia ia buscar-me.

Foi viver para onde?
Vim para casa de uns tios para Pinheiro de Loures, porque na altura o Sporting não deixava que meninos tão pequenos ficassem no centro de estágio. Tinha de esperar dois anos para poder entrar no centro de estágio.

Como foi a primeira noite sozinho, sem o seu irmão e restante família?
Duríssimo. Fui para casa desses meus tios, que tinham cerca de 70 anos. Mesmo à antiga: tinha que comer o que me punham na mesa, não tinha ninguém com quem brincar. Ao início, andaram uma ou duas semanas comigo, só para me dizer: é aqui que sais, é este o número do autocarro. Depois, tive que me virar. E com 10,11 anos, sair da aldeia e levar logo com isto tudo, esta confusão, foi difícil. Os meus pais tentavam vir o máximo de vezes que podiam, de 15 em 15 dias. Nas despedidas era terrível. Toda a gente a chorar. Lembro-me que nunca chorei à frente deles, mas quando eles saíam, era uma choradeira terrível. O meu irmão Nelo sempre a dizer: "Ó pai, estamos a abandonar o mano". Quando se saía de casa dos meus tios, havia uma subida e o meu irmão sempre virado para trás a esticar os braços na minha direção a chorar, e eu forte, ao olhar para aquilo tudo, a minha mãe a chorar. O meu pai, também forte como eu, mas depois era uma choradeira também. Cresci nisto, cresci forte.

Alguma vez ligou para casa e pediu para o virem buscar?
Tive muitas vezes vontade, mas só o fiz uma vez, com 13 anos, porque já não aguentava mais. Foram dois anos. O primeiro, passei em casa dos meus tios, e no segundo queria abandonar tudo, porque em casa dos meus tios não tinha ninguém para brincar e eles não eram pessoas que me levassem a comer um gelado ou a passear devido aos anos que já tinham. Agradeço-lhes por tudo, pelo favor, mas a idade não era apropriada para fazerem passeios comigo. No final desse ano apareceu o senhor Costa e a dona Bé, que são como uns segundos pais. Eles também têm raízes em Oliveira do Hospital. O senhor Costa sempre trabalhou para núcleos e disse-me: "vais para minha casa". No segundo ano, fui para casa do senhor Costa e foi totalmente diferente.

Porquê?
Têm um afilhado que tem mais 3 ou 4 anos do que eu, o Bruno Madeira, que foi o meu grande parceiro, com quem brincava todos os dias. Ele hoje chama-me “Elifoot” porque eu só queria jogar “Elifoot”, o que agora é a Playstation. Esse segundo ano foi bom, sentia-me acarinhado. Depois, começou o terceiro ano. O meu irmão nunca aceitou que eu tivesse saído. Eu, que estudava em Telheiras, um dia em novembro pedi à professora para ir à casa de banho e liguei ao meu pai. Pedi para me vir buscar porque já não aguentava mais. Tentei sempre aguentar o máximo possível. Mas as vindas e idas dos meus pais eram muito dolorosas, sentia a minha família a sofrer. O meu filho vai fazer 11 anos, para mim é um bebé, e eu vim com essa idade, sozinho, para Lisboa. Liguei ao meu pai que, três horas depois, estava na escola para me levar.

O que ele lhe disse?
Perguntou-me :“É isto que queres filho, queres ir para ao pé de nós?”. Disse que sim e senti uma alegria tão grande que parece que tinha renascido. Foi uma sensação de alívio. Parece que estava enclausurado, nem sei explicar bem. No Sporting estavam a par do quanto me estava a custar e decidimos, entre todos, que eu iria fazer metade dessa época em Oliveira do Hospital; isto aconteceu em novembro, e no final dessa época, se estivesse com outra motivação, outra força, poderia voltar. O que acabou por não acontecer logo. Ainda estive mais um ano emprestado ao Oliveira do Hospital. Voltei com 15 anos e nessa altura já vinha preparado para o que queria.

Carlos Martins com o irmão mais novo, João
D.R.

Conseguiu conciliar bem a escola no meio disso tudo?
Consegui. Depois, fui eu que pedi ao meu pai para vir para baixo. Vim mais tranquilo, o meu irmão já aceitou, a minha mãe também.

E aí sim vai viver para o Centro de Estágio do Sporting. Outra realidade.
Sim, sim. Apesar de hoje em dia os meninos estarem num hotel de cinco estrelas e nós não. Mas só o convívio, o amor que havia entre nós. Eram 4 camas num quatro de 15, 20 m2. Fiz o contrato profissional com 16 anos.

Foi nessa altura que começou a ganhar dinheiro?
Foi.

Lembra-se do valor do seu primeiro ordenado?
Quando vim com 11 anos o Sporting ajudava a minha família com 20 contos (100€). O meu primeiro contrato profissional foi de 360 euros, tinha 16 anos.

Recorda-se o que fez com esse dinheiro?
Não, eu não mexia nele.

Não havia nada que quisesse muito ter?
Um telemóvel, porque toda a gente tinha. Eu vim de um lado social e de uma terra em que nós éramos felizes com uma bola. Roupa? Nem sabia o que era. Vim para aqui, para este lado social em que tinha colegas que já compravam brincos, relógios, e mais não sei o quê, mas isso foi-me passando ao lado. Tive uma gestora muito grande na minha vida, a minha mãe. Todo o dinheiro que recebia ela guardava-o. Dizia-lhe preciso disto e ela dava-me. Lembro-me de ir à Springfield comprar t-shirts e ficava todo feliz da vida por ter comprado uma coisinha (risos). A partir daí, quando fiz o primeiro contrato profissional, começo a treinar com a equipa sénior do Sporting, no tempo do Jozic. As pessoas do Sporting começam a dizer que vou ser mesmo uma aposta para a equipa principal.

Saiu do centro de estágio nessa altura?
Sim, com 17 anos. Estive dois anos no centro de estágio.

Que brincadeiras e partidas faziam uns aos outros?
Na primeira fase, em que cheguei a viver com o Simão, o Nuno Santos, para quem olhava com respeitinho, eles é que faziam partidas à gente. As nossas mães levavam bolachas para comermos à noite, porque quando passava a hora de jantar, acabou. Eles iam lá: “Ó miúdo, o que tens aí? Tens bolachas que eu sei, a tua mãe esteve cá este fim de semana. Abre lá isso” (risos).

Depois fez o mesmo aos outros?
(risos). Quando tinha 17 anos, e era dos mais velhos, também fazia. Mas o pior daquilo era quando queríamos ver televisão. Só havia uma televisão para todos e quando chegava um mais velho e dizia: “Ó miúdo está na tua hora”. Nós, caladinhos, íamos embora (risos). Depois, claro, também fazíamos isso aos outros.

Fugas noturnas, não havia?
Fizemos uma fuga e correu-nos tão mal, tão mal, tão mal...

Conte lá.
Tínhamos um amigo chamado António que nos disse: “Pá, vamos a uma discoteca que abriu agora e é espetacular”. Era a minha primeira saída, estava nervoso. Tínhamos de sair antes da meia noite, que era quando a porta fechava, depois só abria às 7 da manhã. A tal discoteca ficava para os lados da Avenida da Liberdade, não sei o nome. Saímos todos contentes, contentes e com medo que alguém reparasse em nós, porque éramos um grupo de oito ou nove. Chegávamos a uma rua e o António dizia “chegámos”, mas afinal “ah, não é aqui”. Ou seja, ele não sabia, quis armar-se, dizia que sabia tudo mas não sabia nada. Até que chegamos a uma esquina e ele “É esta, é esta”. Eu tive logo um daqueles feelings...Vejo um senhor à frente, todo muito bem vestido a olhar para uma cambada de miúdos, com 15, 16 anos com ar desconfiado. O António diz que queremos entrar. O senhor vira-se: “vocês sabem para onde vão entrar?”. O António mais uma vez, na tanga, a armar-se “sei, eu frequento isto”. Eu como sou muito cauteloso, sou dos últimos a entrar. Lembro-me de estar eu e o Paulo Ribeiro, um moço do Porto, mais recuados. Entramos na primeira porta, depois vamos para um hall e nesse hall havia uma porta blindada lá para dentro. Só que nesse hall vejo umas pessoas e digo assim: “Eh pá, acho que isto é um bar de gays”. O homem que está no hall da entrada faz entrar os primeiros, eu e o Paulo Ribeiro quando estamos para entrar vejo logo dois tipos a dar beijos um ao outro, virei-me para o Paulo e disse-lhe que ia embora. Fiquei assustado, entrei em stress. O senhor ia a fechar a porta, eu ponho a mão na porta e o homem“ai não querem?”. “Não, não, esperamos lá fora” (risos). E ficamos lá fora. Eles depois saíram, disseram que foram obrigados a consumir bebida e só depois é que saíram. Foi a minha primeira saída (risos).

Estava a contar que estava nos juniores nessa altura e começa a treinar com a equipa sénior. A primeira vez que é chamado à equipa sénior, como foi?
Estava com um nervoso maluco, quase não podia olhar para a cara deles. Oceano, Pedro Barbosa…

Houve praxe?
Não, nessa altura eles só nos mandavam ir buscar os cestos da roupa. E uma pessoa ia toda contente, mas nem sequer falava para eles (risos). Lembro-me de, com 17 anos, querer fazer um banho de imersão como todos faziam e ia entrar no jacuzzi, estava lá o Pedro Barbosa, o João Pinto e disseram: “Ó miúdo onde é que tu vais? Não tens idade para fazer isto, sai já daqui” (risos). E lá fui eu, caladinho, a olhar para baixo. Eu a pensar que já tinha direito a massagens e jacuzzi (risos).

Quando sai do centro de estágio fica a viver sozinho?
Os meus pais decidem que é melhor fazer um acompanhamento, porque as pessoas estavam a depositar confiança em mim e a minha mãe veio viver comigo. Fomos viver para um apartamento pago pelo Sporting, no Alto da Faia. Estive lá com ela um ano.

Era muito controlado pela sua mãe?
Era, mas ainda bem. Também nunca fui muito de saídas à noite para discotecas. Hoje em dia gosto mais de estar num restaurante do que sair para discotecas. Sempre tive medo das coisas na noite. Pode acontecer em qualquer lado e em qualquer altura, mas há sítios mais propícios do que outros, e eu sempre tive na minha cabeça que para ser jogador, ou tentar ser jogador, temos de nos privar de certas coisas. Eu privava-me mas não ficava triste, fazia porque queria.

Estreou-se na I Divisão com 18 anos pela mão do Inácio, certo?
Sim. Num jogo com o Alverca. Empatámos um igual.

Foi titular ou substituiu um colega?
Entrei. Estávamos a ser massacrados e o Inácio mandou-me para o fogo, literalmente. Estávamos a ser assobiados. Eu estava muito nervoso. Hoje um miúdo com 16, 17 anos é preparado para chegar a esses momentos com outra maturidade. Na altura, lembro-me que estávamos a ganhar e estávamos a ser assobiados, e eu só pedia na minha cabeça "que não me ponha neste jogo". Estava completamente nervoso. Quando um miúdo entra, podia ser eu ou podia ser outro, se a equipa não ajuda, se alguma coisa de mal acontece, foi o que aconteceu, empatámos o jogo em casa contra o Alverca, a culpa é do miúdo. O miúdo entrou, o que é que foi para lá fazer, isto e aquilo...

Lembra-se de ouvir isso de alguém?
Não, mas foi o que saiu na imprensa. Recordo terem dito que não tinha capacidade para jogar na equipa A. Mas aos olhos de hoje, os miúdos entram, e entram preparados. Quando o Inácio chegou ao pé de mim, fechou-me no gabinete dele e disse: “miúdo estás preparado para jogar contra o Real Madrid, na Liga dos Campeões?”. Eu quase que engoli em seco, mas claro que disse que sim. Não havia preparação nenhuma. Hoje é diferente, fala-se diariamente com os jogadores, há apoio psicológico, etc. Naquela altura ninguém falava nada, era ir lá treinar, tens qualidade vai ao jogo e acabou. Para um miúdo vingar... era preciso uma grande percentagem de sorte, de estar no momento certo, à hora certa, com a pessoa certa. Para vingar e ser mais fácil a sua projeção, a equipa tem de estar bem, tem de transpirar confiança. Coisa que não existiu na minha altura. O Inácio, por exemplo, nunca mais me pôs a jogar. Claro que se tivéssemos ganho e se tivéssemos jogado bem, provavelmente era chamado novamente.

Jogou bem?
Não, ninguém jogou. Vai um miúdo com 18 anos no meio daqueles tubarões fazer o quê? Não sou nenhum Maradona, não sou nenhum Cristiano Ronaldo.

Entretanto, é emprestado ao Campomaiorense.
Vou ao Torneio de Toulon e estou a falar com um jornalista que me diz que está em off e eu digo-lhe que fui prejudicado pelo Sporting, que me sentia injustiçado, que nunca mais me chamaram à equipa sénior por causa daquele jogo e que as pessoas não se portaram bem comigo; prometiam uma coisa e depois não faziam. Por um lado tenho culpa, por ter falado muito, por não ter experiência, que hoje os miúdos já têm porque há alguém por trás a dizer: “não fales, está calado, deixa-me falar a mim”. Isso é muito importante e eu não tive esse acompanhamento. Saiu no Record uma página completa a dizer: “Fui prejudicado pelo Sporting”. Aquilo caiu como um bomba. Disseram-me que tinha de ser emprestado porque o Sporting estava triste comigo, porque era uma entrevista forte.

Quando lhe disseram que ia para o Campomaiorense, qual foi a sua reação?
Eu próprio também quis ir porque, se não me engano, na época anterior o Campomaiorense tinha estado na primeira divisão. Era o meu último ano de júnior, ou o primeiro de sénior, e tinha a possibilidade de jogar. Portanto, juntaram-se as duas coisas. Agora, fiquei triste por me ter estreado no Sporting, as pessoas estarem a pensar que viam em mim alguma coisa e depois, de um momento para o outro, ter ido parar ao Campomaiorense. Mas é assim a vida.

Foi para Campo Maior sozinho?
Fui com outros colegas, fomos uns 5. Eu fiquei a viver com um colega, o Vasco.

Como correu essa época?
Em termos desportivos foi bom, porque joguei, marquei e fiz muitas assistências.

Era Diamantino o treinador.
Sim. Depois veio um espanhol, Fabio Gonzalez que... meu Deus...

Então?
Maluco. No primeiro treino da semana metia-nos a jogar futebol. Em termos táticos, tinha umas táticas que não eram comuns. Foi difícil porque veio substituir o Diamantino quando estávamos em 2º lugar; a partir daí foi sempre a descer. Quando estamos a descer todos os problemas vêm ao de cima. A mim acusavam-me que só jogava bem na seleção, que não queria jogar no Campomaiorense porque era jogador do Sporting. Isso acaba por acontecer com qualquer jogador que vai de uma equipa para outra e as coisas correm mal: “Ele tem contrato com os outros, quer lá saber disto”. Lembro-me do Paulo Vida, um jogador fantástico, um ponta de lança que fazia golos a todos de todas as formas e feitios, também o acusaram de não querer marcar golos porque estava lixado, bom... Foi o ano que também ficou na história porque o clube acabou. Não foi positivo em termos de clube.

Regressa para a equipa B do Sporting?
Sim.

Ficou chateado por não ir para a equipa principal?
Não. Eu fiz uma boa época em Campo Maior. As pessoas diziam: “Eh pá tu és maluco, mas és grande jogador”.

Porque é que diziam que era maluco?
Se calhar porque eu falava as coisas. Nunca fui de me calar e no futebol há que saber calar, mas nunca faltei, nunca mandei um treinador para o outro lado.

Era um refilão.
Isso sim. Era refilão e admito que muitas vezes devia ter estado calado. Eu adorava ganhar, ficava doido se perdia. Isso sempre me caracterizou e é uma coisa que levo com agrado. Sempre dei tudo e por vezes as pessoas interpretavam mal ou eu esticava mais um bocado, mas a minha essência é aquela que os meus pais me ensinaram, sempre a respeitar todos.

Depois é chamado pelo Bölöni à equipa principal. O que achou dele?
Muito severo, um bom treinador, penso que fez um bom trabalho, mas rotulou-me logo na primeira conversa. Disse-me: “eu sei que tu és maluco, és um grande jogador, mas à mínima coisa que faças aqui comigo, vais-te embora.” Foi assim, nunca ninguém me deu nada. Há aqueles jogadores que caem na graça de Deus, sei lá, mas nunca tive essa hipótese, nem essa sorte. Nunca ninguém me disse: “Eh pá, calma. Ele fez isto, mas vamos perdoá-lo", ou seja o que for, nunca. O João Pinto lesiona-se no ombro, penso eu, e faço 6 ou 7 jogos seguidos. Penso que é assim. Ganhei alguns créditos, as pessoas começaram a acreditar mais em mim. Mas de repente, o Bölöni vira-se e diz: “Tu tens um problema, não podes ser jogador do Sporting assim”. Do nada.

Por causa do feitio?
Não. Volta e meia estava num jogo ou no treino e saltava-me o ombro, tanto que fui operado. O Bölöni do nada chega-se: “Tu não podes ser jogador do Sporting com esse problema, tens de tratar.” Respondi-lhe: “Não vou ser tratado agora porque consigo jogar. Tento evitar alguns movimentos que me fazem saltar o ombro”. Mas ele já não me queria mais, dizia que eu não estava apto para ser profissional do Sporting. É então que me aparece a Académica, que estava na 1ª divisão. O treinador era o Artur Jorge que me quis logo lá.

Que tal o Artur Jorge?
Espetacular, dava-me muita atenção e ensinava-me, tinha paciência, porque para jovens é preciso ter paciência. Temos de ver a essência do jovem primeiro. Se for uma essência maldosa, há que apertá-lo de maneira diferente. Se for uma essência boa, mas de sangue quente, é preciso perceber. Hoje em dia todos os que querem ser treinadores são, mas só quem tem uma relação humana com os jogadores é que vai longe. Não são aqueles que estudam e depois tratam mal os jogadores. Sei que estive lá dois meses e recebi um telefonema do Sporting a dizer para regressar mais cedo, para ser operado, para começar bem a época seguinte.

Já com o Fernando Santos.
Espetacular também. Aliás todos eles, todos eles.

Não houve um treinador que o tenha marcado mais?
Em termos pessoais o José Peseiro, sem dúvida. A minha melhor fase no Sporting é com ele. Deu-me total liberdade para jogar, cometi alguns erros,mas ele nunca foi tão duro. Aí sim, se tenho de destacar alguém é o Peseiro. Acho que é bom demais para ser treinador ao nível de um clube grande. O que quero dizer com isto é que há pessoas e há jogadores que tendem a abusar quando encontram uma pessoa que é boa. Ele é nosso patrão, é o nosso treinador. E naquelas alturas em que devia ser rígido nunca o era, porque era a essência dele. Levava sempre as coisas a conversar, encontrava sempre um ponto ou outro para que tudo ficasse calmo. E na alta competição às vezes a coisa não pode ser assim.

Pela negativa, houve também algum que o tenha marcado?
Pela negativa, mas sem ter nada contra ele porque não sou rancoroso, o Jorge Jesus. Mas mais à frente falamos disso.

Como lhe corre a época com o Fernando Santos?
Mais ou menos. É preciso não esquecer que eu tinha o João Pinto na minha posição. Por mais que fizesse tinha aqueles tubarões todos ali e eu era sempre um menino. Totalmente diferente da visão de hoje em dia. Hoje, um puto joga com 18 anos e ninguém acha anormal. Naquela altura jogar com esta idade no meio destes tubarões…(risos).

Depois, vem o Peseiro e no ano a seguir o Paulo Bento. É a primeira vez que tem um treinador que foi seu colega de balneário. É uma situação complicada?
Não, não foi difícil. Quando o Paulo assumiu a equipa disse logo: “Para aquelas pessoas que já trabalharam comigo e foram meus colegas não quero que me tratem por mister”. Para ele não fazia sentido. Sabíamos diferenciar as coisas.

Mas as coisas não correm bem com o Paulo Bento.
Não. É ele que dita a minha saída.

O que aconteceu?
O Paulo Bento fica marcado com a minha saída do Sporting única e exclusivamente por ser o treinador nessa altura, mas nada tem a ver com ele. Tem a ver com as minhas lesões na perna direita, que eram constantes, sempre na mesma perna. Nesse período pedi para ser observado por outro médico. Fui ao médico do Bayern de Munique e da seleção alemã, o Müller [Hans-Wilhelm Müller-Wohlfahrt]. Ele manda-me fazer um exame que nunca ninguém se tinha lembrado: um raio-x às costas. E o meu problema estava no ilíaco, tinha uma perna mais curta do que a outro e daí as minhas lesões serem sempre na perna direita.

Qual era a solução?
O Dr. Müller disse-me que para ficar curado tinha de fazer no mínimo três tratamentos. Só eu sei que tratamentos eram… Com agulhas enormes a perfurar-me as costas e a perna por dentro, para ir às fibroses e descalcificar as fibroses. Era já tanta fibrose que eu tinha que, claro, ninguém podia jogar como eu estava. O departamento clínico do Sporting, não o Paulo Bento, desde o primeiro dia nunca foi de acordo que eu fosse lá. Hoje isto também já está mudado, mas antigamente, meu Deus. Antigamente fazia-se mas tinha de ser às escondidas, ninguém podia pedir uma autorização ao clube. Eu pedi.

O departamento médico não quis que fizesse o tratamento?
O departamento clínico disse que eu estava hipocondríaco, que era da minha cabeça, que eu estava maluco por dizer que tinha coisas na perna. Inclusivé o médico, o Gomes Pereira, não quero falar muito desse senhor, ele nunca mexia muito nos jogadores, mas a única vez que me mexeu na perna, esteve 15 segundos e disse que eu não tinha nada. Eu tinha a perna cheia de fibroses calcificadas, isso via-se na ressonância, enfim. Compreensivelmente eu não aceitei bem a decisão do departamento clinino do Sporting. O Paulo Bento teve de se pôr ao lado da direção e do departamento clínico. E diz-me: "Carlos se tu lá vais mais alguma vez ao estrangeiro, não jogas mais comigo.” Fiquei chateado por ele me estar a dizer aquilo e respondi: “Olha Paulo, não me interessa que não jogue mais. Eu quero é tratar da minha saúde. Preciso de lá ir mais uma vez, fica ao teu critério se me pões ou não a jogar”.

E foi?
Fui lá mais uma vez. Tudo pago do meu bolso. Graças a Deus que fui. Fui tratado e fiquei bem. E é aí que se rompe a ligação que tenho com o Sporting e com o Paulo Bento. Sei que estive dois meses sem jogar e sei que o Paulo também é uma pessoa convincente: aquilo que diz, faz. Achava ele que estava a defender o departamento clínico, que dizia mais uma vez que eu era maluco, que eram as noitadas, que era droga, o que não disseram de mim. E eu quando ia à Alemanha, ia com o Carlos Gonçalves, que era o meu empresário na altura. Só eu sei os tratamentos que me fizeram lá, mas sabia que aquilo era para o meu futuro. A dois meses de acabar a época, fui lá uma última vez e tive uma conversa com o Paulo. Disse-lhe que já estava bem, mas ele disse-me que já tínhamos falado sobre o assunto. Respeito. Mas foi muito doloroso ter saído do Sporting assim.

Quando falavam que eram noitadas, droga...
...Senti uma revolta muito grande. Mas sempre cresci assim. Se chegar ao pé de alguém do Sporting, que se lembre de mim naquela altura, e perguntar pelo meu percurso, vão dizer: “Eh pá, o Carlos, grande jogador mas cheio de lesões, era só noites, era só mulheres, era não sei o quê”...

Era mentira?
Claro que sim, eu comecei a namorar com a minha mulher tinha 22 anos, antes tinha uma namorada, sempre fui uma pessoa pacata, fiz as minhas coisinhas, mas sempre muito responsável. Isso foi uma imagem que se criou e tive de levar com isso até sair do Sporting. Quando fui para o Benfica a visão que tinham de mim mudou um bocado, mas no Sporting sempre foi assim. Um talento imenso, mas tinha muitas lesões porque a vida não era compatível.

Era o seu clube de coração, o clube onde cresceu e onde se tornou profissional.
Quando fui fazer a desvinculação, chorava que nem um bebé e o Carlos Freitas também. Custou-me horrores sair do Sporting, mas foi por causa disso. Eu não abandonei o Sporting, o Sporting é que quis que eu saísse. Porque o Paulo ia continuar, ele já não me queria lá porque tinha dito aquilo, que eu tinha infringido uma regra dele. Tinha-me dito cara a cara. Assumi a minha decisão em prol da minha saúde.

Porque é que na altura não tornou isso público? Porque não se quis defender?
Porque fui aconselhado a não falar.

Pelo seu empresário?
Também.

Vai para o Recreativo do Huelva. Não houve interesse de outros clubes, do Espanhol de Barcelona, do AEK, do Panathinaikos?
E do Benfica, já na altura. Eu tive contrato ainda era jogador do Sporting. Na altura foi público e dizia-se que estava em conflito com o Paulo Bento. Mas as pessoas não sabiam que o que gerou o meu conflito com o Paulo não foi por não jogar ou por ter sido mal criado, mas sim por uma declaração do posto médico. Na altura, o meu empresário reuniu-se comigo e com o Fernando Santos em casa do Veiga. Vimos qual era a melhor maneira de eu sair do Sporting e ir para o Benfica, discutimos isso. Achamos por bem que tinha sempre de fazer uma ponte fora, nunca podia sair diretamente para o Benfica, porque o Sporting nunca deixaria um jogador ir diretamente. Apareceu o Recreativo do Huelva porque o Beto estava lá. Eu tinha sido companheiro do Beto, ele ligou-me: “Vem para aqui, é um clube da primeira liga, estamos perto de Portugal”. Sempre rejeitei muita coisa por não querer estar longe, não tinha aquela coisa de ir à aventura por muitos países. Em Huelva podia vir de carro a Portugal, não gosto muito de andar de avião. Era um clube que ia apostar mesmo em mim, iam formar equipa à minha volta e foram estas condicionantes que me fizeram optar por Espanha

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