Uma espécie de anuário: a liga portuguesa em revista, clube a clube, do último para o primeiro

O treinador Blessing Lumueno analisa, equipa a equipa, as prestações de quem compete na Liga. Há elogios, críticas, sugestões e confissões
O treinador Blessing Lumueno analisa, equipa a equipa, as prestações de quem compete na Liga. Há elogios, críticas, sugestões e confissões
Treinador de futebol
Augusto Inácio nunca se propôs a tocar piano, e eu acredito que um treinador com uma ideia de jogo é melhor do que um treinador sem ideia de jogo. O último classificado da liga veio contrariar a minha crença, porque, sabendo o treinador o que queria, a equipa nunca foi capaz de fazer o registo do Bombo ter relevo nesta época. Para além de jogar mal, o que não era novidade durante o reinado de Augusto Inácio, não conseguiu vencer jogos suficientes para ficar confortável na tabela. Talvez por força das alterações na equipa que fizeram mudar a qualidade individual, talvez por problemas fora do campo, mas a destituição não tardou e é em Manta Santos que recai a esperança de manutenção na primeira divisão.
Cedo se percebeu que a ideia do treinador não ia ao encontro da paciência da direcção para esperar pelo desenvolvimento de um processo de jogo que podia não ter vitórias nas primeiras jornadas. Pode ser que a confiança dos jogadores no treinador tenha ficado minada pela falta de resultados, mas era natural que uma equipa vinda do escalão inferior, com poucas mudanças no seu plantel, tivesse alguns constrangimentos iniciais. Pepa mudou aqui e ali, mas percebe-se claramente que a equipa ainda não joga à velocidade cruzeiro, apesar de alguns resultados a terem tirado daquele desafogo inicial. O novo treinador tem conseguido elevar os resultados e a confiança dos jogadores, e vamos ver o que nos espera ao nível de jogo nos próximos meses.
Folha chegou com uma sedutora proposta de futebol em posse, um sistema pouco tentado em Portugal e jogadores de nível técnico e com criatividade para elevar o nível de jogo da equipa. Defensivamente nunca cativou, mas pensando no que de tão bom aqueles executantes conseguiam deixavam-nos hipnotizados pelo número de golos, e pela qualidade das situações. Os jogadores mudaram e com isso o jogo da equipa mudou: inconstante em posse, incapaz de criar, e sem soluções colectivas para desafiar as defesas cerradas que foi enfrentando. Não sei se António Folha é do tipo de treinador que acredita que no último terço manda o jogador, mas desconfio que o seja e para mim e isso é um problema.
Confesso a afinidade com o treinador: João Henrique tem tentado coisas que poucos se atrevem mesmo contra os “grandes”. Equipas que, em Portugal, arrisquem trocar mais do que cinco passes mesmo que pressionadas ficam na minha memória. Eu sei, a exigência é pouca. Mas tendo em conta os atores, os açorianos são uma das equipas mais corajosas da liga e das que mais divertem quem os vê. Tenho a impressão que quando este treinador, com estas ideias, estiver perante outros actores poderemos assistir a um espetáculo muitíssimo interessante. Para já, precisa de começar a pontuar de forma mais regular para não voltar a cair na segunda divisão.
Olhar para o perfil de Nuno Manta Santos e de José Gomes é como comparar a Lua ao Sol. São ambos objectos celestes, mas não têm nada a ver. O futebol tristonho com que o Marítimo até conseguiu ir vencendo aqui e ali foi substituído por um outro que quer ser mais activo e menos reactivo. Sem surpresa, o novo treinador do Aves caiu e José Gomes entrou para tentar uma proposta de jogo que aproxime mais a equipa do sucesso. É verdade que a qualidade individual não é a que mais apaixona, é certo que a instabilidade fora do campo não tem ajudado, mas há certamente condições para jogar mais, e para ganhar melhor.
De Silas à Pedro Ribeiro mudou apenas a forma de fazer. O objectivo continua a passar por ser uma equipa com saída de bola, mais contundente porém no último terço. Verdade seja dita, a equipa do Restelo (bem, do Jamor) é uma sombra dos azuis que nos habituámos a ver noutras ocasiões. E sem ovos “classe A” não há como fazer omeletes desse nível. Mas se algum mérito esta equipa pode ter é o de ter apostado em tantos jogadores de outros escalões e ainda assim ter conseguido fugir ao início conturbado que levou Silas ao desemprego. Falta consistência ao este novo Belenenses, não ao nível dos resultados, mas na forma de executar os seus processos de Koffi à Licá.
O dono da segunda liga veio participar no desafio mais difícil desta Liga. Vítor Oliveira tenta fazer a equipa de Barcelos fugir a um destino que todos julgavam inevitável, tendo em conta a forma como o clube regressou à primeira divisão. Um plantel feito do zero, com muitos jogadores que nunca tinham jogado por cá a este nível, e com uma ideia bem identificada: reduzir os espaços e sair em contra-ataque ou ataque rápido. É uma realidade que está fora da despromoção, mas não menos verdade é que 17 pontos não dão conforto a ninguém. É clube da terra da minha família branca, e, por tal, quero sempre o melhor para que o Galo se volte a erguer como um dos símbolos de referência do futebol nacional.
Ainda estão por explicar as razões da saída de Vítor Campelos. Como é natural, e depois da perda de alguns jogadores, a equipa não está a lutar por um lugar nas provas europeias; e não estando perfeitamente confortável com a questão da manutenção está numa posição que lhe permite respirar durante algumas jornadas. Se é pelo futebol que a equipa joga, só entendo se em Moreira de Cónegos se quiser de regresso o futebol dos “feios, porcos e maus”. Tradução: mais pragmatismo. Ainda que eu não saiba como é que isso se treina, é uma escolha legítima e era importante que os clubes, as direcções, nos livrassem destas dúvidas.
O caso de Sá Pinto é talvez o caso mais curioso do início da época. Não se percebe muito bem a escolha, tendo em conta o perfil dos treinadores anteriores em Braga, e depois de estar a fazer uma campanha europeia muito boa - e um campeonato que se ressentiu dessa aposta na Europa - o treinador cai. Em campo a equipa e as opções do treinador não eram aquelas que mais apaixonavam, mas não é nada que não se soubesse à priori. Portanto, a questão fica: porquê Sá Pinto dentro, e porquê Sá Pinto fora, tendo em conta o perfil que se conhece do antigo internacional português? Há qualidade individual para fazer mais, para jogar bem melhor; mas será esse o objectivo da direcção do clube?
É a segunda maior surpresa da época. Trouxe um treinador do país vizinho que não conhece a cultura do país, e causa muita celeuma aos portugueses. Mas ainda assim conseguiu nos primeiros jogos colocar-se em posição de destaque. Não consegue vitórias consecutivas, mas mostra princípios, faz aparecer qualidade individual, e apresenta Pepelu, um jogador que em Portugal seria sempre imberbe, pouco intenso, e demasiado macio para jogar como médio defensivo. Queremos mais ainda de Xavier, e a exibição contra o Benfica deve servir como referência para o que o clube pode apresentar seja lá que adversário defronte.
Foram vários os desabafos que fui fazendo no Twitter impulsionados pelo que a equipa de Lito Vidigal não jogava. Jorge Simão, depois Lito, e agora Daniel Ramos: há um padrão claro nas escolhas da direcção do Bessa. Que se lixe o futebol, vale tudo para ganhar. É uma cultura, uma escolha coerente, uma direcção e um caminho. Lamento, mas os meus desabafos foram como aqueles momentos em que acho terrível ter acordado de manhã para cumprir com os meus deveres laborais. Tendo em conta conivência, e as regras do jogo, a outra equipa do Porto faz o melhor para aproveitar factores externos, e decisões que não dependem do treino para ter sucesso. E tem tido. Agora, não posso fugir ao nível de jogo, aos espectáculos deprimentes que tem oferecido.
Foi muito elogiado por ser a equipa que menos golos concedia na Liga, mas faltou-lhe sempre a astúcia necessária para chegar aos golos. Sofre mais golos agora, mas também marca mais. Resultado: hoje consegue manter o registo pontual sem que dependa tanto do adversário e dos imponderáveis, como quando Sandro estava ao comando. O que não se percebe, em Portugal e no resto do mundo, é isto: qual o critério que nos leva a passar de Sandro para Júlio Velásques?
O demissionário Carlos Carvalhal está na luta pela Europa. Não é o favorito para lá chegar por não ter, individualmente, as melhores armas da nossa liga. Está, neste momento, à frente do Braga e isso é um mérito; mas não menos verdade é que o seu nome foi sendo esquecido nesta dinâmica da nossa liga. Fala-se no Tondela, no Vitória e no Famalicão, mais do que na equipa de Vila do Conde, e isso poderá ser um sintoma do impacto que Carvalhal ainda não conseguiu ter neste regresso à Portugal. O Rio Ave tem tido qualidade de jogo, tem tido momentos em que consegue banalizar adversários de uma valia individual superior, como os casos de FC Porto (segunda-parte) e Sporting. Mas não tem tido a mesma consistência e a mesma força contra adversários de outra valia, e por isso não tem tido destaque. Com menos tempo, e com menos espaço, a equipa tem sido menos capaz, e isso é um problema que o treinador e os jogadores, ou a direcção, devem resolver.
Em Guimarães as esperanças dos adeptos não podiam ser tão altas assim; depois do início de época conturbado com as eleições, e com o projecto do clube a ter pouco tempo para arrancar, Ivo Vieira e Carlos Freitas têm sido Batman e Robin na Liga NOS. Conseguiram manter o que de bom Luís Castro deixou, conseguiram puxar os melhores jogadores da equipa B e sub23, e conseguiram encontrar e dar espaço à Edwards perdidos por este mundo fora. Há uma ideia bem vincada, e uma continuidade com os passos anteriores que o clube deu. O resultado é a excelente prova que o clube está a fazer em todas as frentes. Confesso ainda assim que me sentiria mais feliz a ver mais Pêpê e mais João Carlos Teixeira em campo.
A grande revelação da Liga: o seu CEO (Miguel Ribeiro) é, porém, o MVP de 2019. Conseguiu fugir ao que é padrão, desfez-se de uma que venceu a segunda liga com base na força e apostou num perfil mais técnico e mais criativo. O resultado está aí. Liderou a liga durante vários jogos, e está neste momento num lugar de qualificação europeia. Não sei se a equipa vai conseguir manter-se nesse registo, mas o treinador João Pedro Sousa não treme perante goleadas na Luz ou no Dragão, e continua a trabalhar para que os seus jogadores se possam mostrar. É o projecto de um clube que quer valorizar os seus jogadores para que possa ter retorno num curto-médio prazo. Obrigado aos responsáveis do Famalicão por termos Fábio Martins, Guga, Lameiras, e Gustavo.
Marcel Keizer caiu como um castelo de cartas; afinal, aquela que foi apelidada de melhor época do clube nos últimos anos não foi mais do que uma máscara para os graves problemas da equipa dentro e fora do campo. Ou melhor, fora e dentro do campo. É impossível ignorar o que aconteceu em Alcochete, mas de ontem para hoje continuamos sem ver os melhores executantes juntos em campo. Não por lesões, expulsões ou condicionamentos de outra ordem. Mesmo com Silas, ainda estamos longe de ver Camacho, Plata, Vietto e Bruno no mesmo onze. A qualidade de jogo tem subido de forma gradual, mas é mais do que uma evidência que há jogadores a jogar (havendo outros melhores) que só não estragam um em cada trinta lances.
A equipa de Sérgio Conceição é o reflexo do futebol em Portugal. Consegue ser carne e peixe ao mesmo tempo. E, mais ainda, não entende que não assumir determinado perfil é mais prejudicial do que catalisador. Quando lança os monstros físicos, é uma equipa absolutamente previsível, sem criatividade, sem qualidade técnica e com movimentos ofensivos que apenas permitem arrombar o seu adversário derrubando-os. Vai resultando na maior parte dos jogos, porque os detalhes têm caído para os lados do Dragão, mas os adeptos não têm estado nada satisfeitos com o nível exibicional da equipa - e a renúncia que fazem nas presenças ao estádio corroboram essa impressão. O Porto não galvaniza, não dá o sinal de dentro para fora para entusiasmar quem os vê, não aposta nos jogadores mais diferenciados e é por isso que os adeptos se afastam gradualmente da equipa por qualquer dificuldade que surja. Mas, temos visto nos últimos jogos uma intenção e um perfil individual diferente. Ganha o Porto consecutivamente, ganham os adeptos que lamentam não ter ido ao estádio, ganham os jogadores e o clube que se valorizam, e ganha qualquer espectador que gosta de ver futebol. O segredo é olhar para os Fábios e para o Tomás e perceber o que os torna diferentes. Se assim for, teremos um Porto absolutamente arrebatador por força da qualidade que existe,
Bruno Lage começou do zero. É campeão, mas parece que não foi, sobretudo se pensarmos nas condições em que foi e na recuperação que o fez. O segredo é olhar menos para os títulos, menos para o resultado, e mais para o que a equipa fez para o conseguir. A equipa sempre apresentou dificuldades em ataque posicional, e no início não fez por tornar compatíveis RDT e Seferovic. Apresentou várias soluções até chegar a Chiquinho, Vinícius (que me está a surpreender pelo que dá para lá dos golos) e Pizzi. Encontrou Adel para fazer dupla com Gabriel - e de repente temos Benfica. Não é a minha equipa de eleição com as ideias ofensivas e defensivas que entendo como as melhores; mas é uma equipa que soube juntar alguns jogadores (por mérito do seu treinador) que fazem toda a diferença naquilo que ele quer. Resta saber quando é que Dantas irá aparecer para vingar tendo em conta toda a qualidade que tem.
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