Análise

A pior 1.ª parte da carreira de Sérgio Conceição: a construção e os momentos defensivos

A pior 1.ª parte da carreira de Sérgio Conceição: a construção e os momentos defensivos

Blessing Lumueno

Treinador de futebol

Depois do empate frente ao Boavista (2-2), Sérgio Conceição apontou o dedo a algumas exibições individuais, mas o problema do FC Porto foi muito mais coletivo do que individual, analisa Blessing Lumueno

O jogo no Estádio do Dragão deu muito que falar por termos assistido a um dos momentos mais bonitos da época quando Francisco Conceição, emocionado, abraça o pai e treinador Sérgio, também ele emocionado, e pela forma contundente como o treinador do FC Porto criticou a atitude de alguns dos seus pupilos (sobretudo os que saíram ao intervalo). Na flash interview e na conferência de imprensa, Sérgio Conceição assumiu a culpa pela má exibição da equipa dizendo que era dele a responsabilidade das escolhas para o onze inicial. Novamente, e de forma evidente, atira as culpas para algumas individualidades, não tendo falado, à exceção do último momento, dos problemas táticos colectivos que na sua maioria não partiam do individual, ou pelo menos da performance dos jogadores visados por si.

Faz parte do trabalho do treinador escolher os jogadores para o onze inicial, mas também faz parte colocá-los em posições onde eles se sintam confortáveis. Quando um treinador opta por retirar um jogador dos espaços a que está habituado a pisar deve ter isso em consideração quando a performance não é a esperada. Isto é, quando Sérgio Conceição diz que a responsabilidade das escolhas é dele, optando por retirar os jogadores da sua zona de conforto, o problema não é da individualidade mas sim da argúcia tática do treinador que não conseguiu antecipar as dificuldades que algumas das suas unidades poderiam ter ao jogarem em zonas diferentes das habituais.

Sérgio Conceição diz que a ideia era ter Manafá e João Mário com a responsabilidade da largura e também dar profundidade. E, com isso, jogando com o médio ala do lado esquerdo, não equacionou que ele iria procurar mais pelo jogo interior do que propriamente pela largura por estar muito mais confortável a jogar com o seu melhor pé, o direito. Nem sequer está confortável a fazer movimentos de profundidade por não ter a proteção do melhor pé para terminar o lance em velocidade. E assim foi, João Mário pegava na bola e vinha para dentro, tentava individualmente ou em combinações furar, mas não cumpria com o proposto pelo seu treinador.

Também era suposto, nesses momentos de movimentos interiores, ter Taremi a fazer movimentos contrários e diagonais curtas de dentro para fora. Porém, o avançado era também responsável (assim como Corona) por assegurar a presença no espaço entre linhas (atrás dos médios do Boavista), e com isso não conseguia muitas vezes fazer o movimento exterior para arrastar algum defesa, ou para conseguir espaço para ele receber. Do lado esquerdo estavam João Mário, Taremi e um dos médios centro, enquanto que do outro lado havia Corona, Manafá, um médio centro e Marega (que descai naturalmente para o lado direito, onde tem mais vantagem). Houve várias trocas posicionais (entre Corona e Taremi / Fábio Vieira e Sérgio Oliveira). Houve intenção de ter Fábio do mesmo lado de Taremi, e Sérgio mais perto de Corona, mas apenas num momento houve sobreposições de jogadores que deveriam estar a ocupar espaços diferentes.

Fábio Vieira, que até não estava a fazer um mau jogo, tendo em conta a forma decisiva como participou nos lances de maior potencial ofensivo na primeira parte, as faltas que sofreu em zonas próximas da baliza adversária, e algumas recuperações que somou, também não é o jogador mais adequado para jogar como médio de cobertura. É preciso recordar que na formação ele desempenhou durante muito tempo esse papel, e parecia um médio limpa para-brisas. A bola vinha de um lado e ele virava para o outro, passava o jogo nisso, e aí nunca se notabilizou. Passou a ser determinante quando se aproximou da baliza, e quando recebia para criar mais do que para construir. E, tendo em conta as indicações de Sérgio Conceição na conferência, o que ele queria era precisamente que o “fininho” voltasse ao registo anterior, colocasse várias bolas longas em variação ou na profundidade, e depois que estivesse mais focado nos equilíbrios da equipa, e nos momentos sem bola de pressão ou de recuperação defensiva.

Não ajudou a isso a forma como o Boavista pressionou porque, independentemente de ter tido mais uma unidade do lado direito, na primeira parte os desequilíbrios do Porto quase não existiram de nenhum dos lados. A turma do Bessa preparou-se para condicionar a construção do FC Porto retirando dois jogadores de ação: os médios centro. Fábio Vieira e Sérgio Oliveira não tiveram durante a primeira parte um grande volume de situações onde conseguissem fazer a equipa transitar do momento da construção para a criação. Percebe-se a abordagem de Jesualdo Ferreira, uma vez que são os médios, no Porto, os jogadores com maior responsabilidade em ligar a construção com a criação e porque, apesar da capacidade que Diogo Leite também tem para o fazer, essa responsabilidade recai muito pouco sobre os centrais.

Os avançados do Boavista (Alberth Elis mais declarado e Angel Gomes mais móvel) só tinham autorização para pressionar os centrais depois de fechadas as linhas de passe para os dois médios centro do Porto. E assim, apenas com dois jogadores, ficavam os três defesas do Porto sem opções para jogar nos médios, tornando previsível a zona para onde iria entrar a bola e acertando as referências de marcação.

Com essa estabilidade na estrutura, os axadrezados não tinham dúvidas sobre quem é que deveria sair em quem e qual o timing certo para o fazer. Quando a bola entrava no corredor lateral, se um dos médios recebesse, tinha um médio do Boavista nas suas costas a pressionar; se em combinação a bola fosse para um dos avançados (Corona, Marega, ou Taremi) e depois voltasse aos médios centro, Elis e Angel estavam sempre muito reativos para pressionar e/ou fechar essas linhas de passe.

O FC Porto ficou refém da importância que dá aos médios no processo de construção, e por isso foram poucos os momentos como este, em que um deles consegue receber com tempo e espaço para decidir…

…e onde os jogadores envolvidos no processo ofensivo estivessem em número suficiente na zona da bola e longe da bola, e estivessem nas posições certas para conseguir tirar proveito do posicionamento do adversário (vídeo).

A estrutura do Boavista encaixou e estabilizou, e beneficiou da superioridade ou igualdade numérica que teve na esmagadora maioria dos lances nos corredores laterais, sendo que o corredor central estava muito bem vigiado com os centrais a pressionarem para não deixar Taremi e Corona enquadrarem, com Rami a controlar os movimentos de profundidade de Marega, e com Paulinho, Sauer e Nuno Santos a perceberem facilmente como se colocar para travar o jogo interior do FC Porto. Por esses encaixes, os azuis e brancos não foram capazes de, com as suas dinâmicas, criar de forma consistente situações destas.

Na segunda parte, é certo que houve jogadores diferentes e mais confortáveis com as funções que entraram para desempenhar (Otávio entre linhas, Grujic como médio centro, e Zaidu em largura e profundidade), mas o Porto também mudou a formação. Deixou de construir com três defesas onde só necessitava de dois, e libertou com isso mais um jogador para o espaço entre linhas.

A grande vantagem desta alteração é que mais facilmente se conseguiam encontrar jogadores em zonas de criação, em posição benéfica, ainda que a bola viesse dos corredores laterais. A mudança de posição de Taremi, que deixou de estar tão preocupado com o espaço entre linhas e passou a estar mais perto de Marega, permitiu ameaçar a linha defensiva do Boavista de outra forma, mantendo-os mais presos ao seu posicionamento, e com isso libertou-se espaço para Corona e Otávio receberem com mais tempo para decidir.

A pressão sobre Manafá e Zaidu também já não era tão fácil de fazer porque havia mais jogadores para receber nos espaços livres, nos espaços que criam dúvida a quem defende. Já para não falar da maior capacidade que se ganha para colocar muitos jogadores na área para finalizar.

Poderia haver preocupações com a transição defensiva, porque tirando um homem de trás a tendência é para pensarmos que a equipa fica mais fragilizada, e que por isso defenderá pior quando perde a bola. Mas, se olharmos para a formação inicial das duas equipas, facilmente percebemos que para segurar os dois avançados do Boavista, em transição, o FC Porto apenas precisava de três jogadores, independentemente de serem defesas, ou médios.

E a formação da qual mais poderia tirar algum proveito (considerando que o os seus centrais não são ativos no momento ofensivo) era a de 2+1 (dois defesas e um médio) e não a de 3 defesas. Garantindo que o médio estaria colocado entre os dois avançados, e que os jogadores no espaço entre linhas tivessem um posicionamento mais conservador e estivessem muito atentos a possibilidade e momento de perda da bola - sobretudo o ala do lado oposto (porque Sérgio Conceição queria largura dos dois lados ao mesmo tempo, e os laterais estariam largos).

Olhamos para o vídeo, e percebemos que o Boavista ajustou a sua formação, baixando claramente Angel para a linha média, perto de Paulinho e Sauer (ficando Nuno Santos nas costas deles), e por isso menos arriscada se tornou a opção do Sérgio Conceição. Agora façam comigo o seguinte exercício: quão diferente teria sido o jogo do Fábio Vieira a receber a bola na posição onde Otávio recebeu para definir o lance? Quão mais confortável estaria João Mário a receber na posição do Manafá ou de Corona? Estas opções, mais do que individuais, não deveriam também elas fazer parte do repertório táctico do treinador? Não seria mais fácil anular a pressão do Boavista com outros posicionamentos, com outras dinâmicas?

Na parte defensiva, o FC Porto também permitiu algumas chegadas com grande potencial de golo ao Boavista. Mas, na sua maioria, não por abordagens individuais erradas, ou falta de atitude e agressividade; ou se quisermos, não por grande culpa dos elementos visados na conferência de imprensa do treinador.

Há situações como esta que partem do posicionamento colectivo da equipa, por não preparada para uma bola longa. E muito mérito do Boavista na forma como desenvolve o resto do lance, depois de ficar com a primeira bola.

Há esta descoordenação do João Mário, que estava na cobertura e quer deixar a bola passar para Fábio Vieira, e depois uma má abordagem defensiva de Sarr que deveria ter tido um comportamento mais conservador na situação em que estava. Também não se compreende, estando a bola daquele lado, o posicionamento tão largo do Pepe, tão longe do corredor central, tão longe da bola.

E aqui sim, neste lance, um dos jogadores visados por Sérgio Conceição não correspondeu de forma adequada ao que estava a acontecer em jogo, não só tacticamente mas também no compromisso, na abnegação e na concentração competitiva que o treinador exige. Numa situação em que o FC Porto tentava recuperar de uma perda de bola de Marega, João Mário fica abaixo do exigido.

Por fim, o lance do segundo golo do Boavista. Apesar dos muitos ressaltos ganhos por Sauer, a equipa consegue recuperar bem as posições. Depois, uma abordagem errada de Manafá ao não acompanhar o movimento de Mangas.

O FC Porto teve problemas no seu processo coletivo de construção pela formação e dinâmica que o treinador quis imprimir, com isso não conseguiu volume suficiente de situações de qualidade na criação e consequentemente teve pouquíssimas situações para finalizar na primeira parte.

A juntar a isso, há problemas nas referências dos momentos defensivos e, por isso, durante a primeira parte, a equipa foi penalizada pelo coletivo, mais do que pelas individualidades.

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