Ronaldo nosso que estais na Terra (e no futebol profissional há exatamente 15 anos)
Foi exatamente há 15 anos - a 14 de agosto de 2002 - que Cristiano Ronaldo se estreou oficialmente pelo Sporting, na 1ª mão de uma pré-eliminatória da Liga dos Campeões, frente ao Inter de Milão. Para assinalar a data, recordamos um texto publicado em maio sobre a evolução do capitão português, que, aos 32 anos, está longe de estar acabado - apenas diferente: é cada vez mais uma máquina de fazer golos pelo Real Madrid e já tem uma mão na quinta Bola de Ouro
Terra. Este nosso mundo entre o sol, a lua e uma série de planetas cujos nomes nos obrigaram a memorizar na escola é o único (dizem) com vida humana e milhões de espécies de seres vivos, nestes muitos milhares de milhões de anos de existência que já conta nos livros de ciência e de história. E é nesta mesma Terra e neste ano de 2017 que nós — o leitor, eu e a restante população mundial — temos a sorte de coexistir com um deus (bom, na verdade, com dois, mas adiante) que nos faz crer semanalmente num evangelho que não está escrito com palavras, mas com números que desafiam as probabilidades daquilo que pode conseguir um jogador de futebol, especialmente aos 32 anos, naquilo que já poderia (deveria?) ser a fase descendente de uma carreira.
Na verdade, os feitos de Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiros são tantos que mesmo utilizando todos os caracteres deste texto para descrevê-los as páginas seriam insuficientes. Não só pela quantidade de recordes, mas porque a dimensão da influência de alguém (leia-se, jogador ou treinador) no futebol não é nem deve ser mensurável pelos números. Mas é, hélas, sempre a eles que recorremos para sustentar as teses que queremos defender, porque são mais fáceis de avaliar. Quantos golos marcou, quantos remates fez, quantas assistências conseguiu, quantos quilómetros correu, quão alto saltou. E a verdade é que, no futebol, Ronaldo é sinónimo de números.
Como este, atingido precisamente esta semana (e que, à altura de publicação desta revista, já corre o risco de estar desatualizado, porque o Real Madrid jogava quarta-feira um jogo em atraso, contra o Celta): 366 golos marcados na liga espanhola e na liga inglesa (282 mais 84, respetivamente), que fazem dele o maior goleador da história dos cinco maiores campeonatos europeus (Espanha, Inglaterra, Alemanha, Itália e França), juntamente com o inglês Jimmy Greaves, que também marcou 366, e à frente do alemão Gerd Müller, que marcou 365, e... à frente do outro deus que não nos deixa ser ateus, o argentino Lionel Messi, que marcou 346.
Transformação. O menino franzino dos tempos do Sporting transformou-se numa máquina de fazer golos no Real Madrid. Ronaldo sempre cuidou do físico mas vai adaptando os treinos à idade
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Se Messi entra aqui, é porque, para falar de Ronaldo, é preciso falar de Messi. Se Ronaldo é sinónimo de números, Messi é poesia — e a comparação entre ambos não pode ser mais impossível, apesar da contemporaneidade. Messi é um falso ‘nove’ e que gosta estar envolvido na construção, na criação e na finalização; Ronaldo é um ‘nove’ que só quer estar perto das balizas. Ou melhor, o novo Ronaldo é assim, depois de se ter reinventado como jogador, particularmente em Espanha. “É um sinal de inteligência adaptar-se às mudanças impostas pelo passar do tempo”, começa por dizer ao Expresso Jorge Valdano, ex-jogador, treinador e diretor desportivo do Real Madrid. “A grande diferença que vejo, em relação às últimas temporadas, é que ele encurtou substancialmente a distância em relação à baliza adversária. Sempre teve condições para ser o melhor avançado-centro do mundo — e agora ninguém duvida disso.”
O lingrinhas que comia duas sopas e corria com pesos nos pés
Quando Cristiano partiu para Manchester, com 19 anos, era um miúdo lingrinhas que impressionava pelas fintas e malabarismos que fazia no corredor lateral — o habitat natural de um extremo, a posição de origem do madeirense formado na Academia de Alcochete. “Antes, o nível de performance que ele tinha estava muito ligado ao desequilíbrio individual, de um contra um, um contra dois, bolas metidas no espaço e ele driblar e rematar de fora da área”, explica Leonel Pontes, que foi encarregado de educação do miúdo “irreverente” que comia duas sopas seguidas nas camadas jovens do Sporting, para ver se ganhava mais peso, e que corria com pesos nos pés, precisamente para ficar mais forte. “Fui dele como fui de outros jovens entre os 12 e 15 anos. Zelava pelo dia a dia deles, dava-lhes atenção, controlava e estava atento à escola, às questões educativas, tinha uma ligação direta com os pais, com os treinadores... Claro que é um orgulho ter podido fazer parte do processo de crescimento do Ronaldo — assim como de outros — com quem mantenho a amizade até hoje”, conta o atual treinador dos húngaros do Debrecen, que também treinou Cristiano na seleção nacional, enquanto adjunto de Paulo Bento, entre 2011 e 2014.
“É verdade que ele mudou. A única coisa que não mudou foi o seu rendimento. Isso tem-se mantido constante ao longo dos anos e tem sido incrível. Agora, mudou a sua forma de jogar e mudou, penso eu, para melhor. Tornou-se um jogador mais maduro no jogo, mais ligado ao coletivo, em que começa a usufruir mais do trabalho da equipa que do seu próprio trabalho individual”, diz Leonel Pontes, antes de explicar em que consiste a mudança. “Neste momento ele está a finalizar dentro da área, perto da baliza, e a corresponder a jogadas muitas vezes trabalhadas pelos colegas. O grande incremento foi a qualidade da movimentação dentro da área, a qualidade da ligação com a equipa, no processo ofensivo, com melhores decisões, e o aprimorar cada vez mais as suas ações técnicas de finalização dentro da área. No passado, jogava da esquerda para dentro, do corredor lateral para o espaço central, e hoje é um jogador livre no ataque, mas a sua predominância de movimentos no espaço é dentro de área. E a esse nível ele está no topo.”
Mais uma vez, os números (e os mapas de calor — ver infografias) confirmam essa evolução. Na sua primeira época de sénior, em 2002/03, Ronaldo marcou cinco golos em 31 jogos, e as marcas mantiveram-se semelhantes nos primeiros anos em Inglaterra: 6, 9, 12, 23 golos. A diferença foi 2007/08, quando o extremo com coração de avançado começou a aparecer mais pelo meio, com uma pequena ajudinha de Carlos Queiroz. “Com o passar do tempo, quando tiver 28 ou 29 anos, tenho a certeza que se tornará avançado-centro. Apesar de não gostar muito de sê-lo”, disse então o treinador-adjunto de Alex Ferguson. Nessa época Ronaldo marcou 42 golos, incluindo o primeiro hat trick da carreira, e um golo em Roma, nos quartos de final da Champions, que deixou todos de boca aberta. Gerando a força de cinco vezes o seu peso corporal, saltou com tal poder de impulsão para cabecear para golo, a cruzamento de Paul Scholes, que atingiu os 78 cm no ar — 7 cm mais alto do que a média de um jogador da NBA.
A diferença estava no trabalho de ginásio, no qual Ronaldo começou a ficar viciado, como contou o jornalista espanhol Guillem Balagué na biografia do jogador. Nessa época, passou a ganhar 66% dos duelos aéreos — um aumento de 26% relativamente ao ano anterior —, porque queria ser sempre melhor em tudo. O problema é que mais músculo significa menos agilidade, como explicou Vítor Frade, professor de José Mourinho, Vítor Pereira e tantos outros treinadores na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, em 2009. “Tem um morfotipo e joga numa posição que pode permitir que o lado atlético seja um acrescento. Mas penso que a juventude dele e o facto de estar a jogar em Inglaterra ainda não o fez dar-se conta do desperdício que é o não uso tão regular da capacidade de drible, de simulação e de engano que ele tinha. E o jogo assente neste padrão atlético em que ele se está a viciar e do qual beneficiam os abdominais e o porte que ele tem, tirou-lhe algo que ele também tinha potencialmente, que era aquele poder de ‘ginga’, que é mais o registo, por exemplo, do Messi. E eu pergunto, alguém no seu perfeito juízo é capaz de dizer que o Cristiano Ronaldo é melhor do que o Messi? Na melhor das hipóteses dirão que um é tão bom quanto o outro. E o Messi é exatamente o oposto em termos de morfotipo: é pequeno, enfezado...”
Ronaldo vs. balizas
Sendo constantemente comparado com Messi, Ronaldo começou a ser tudo aquilo que Messi menos era: citius, altius, fortius, e... ‘nove’. “Os problemas futebolísticos resolvem-se no campo de jogo e não no ginásio”, concorda Valdano. “O egoísmo é um defeito, em termos absolutos, mas sempre foi considerado como uma virtude dos goleadores. Cristiano joga contra a baliza adversária e nesse jogo contra a baliza sempre ganhou Cristiano. Nunca se caracterizou pelo seu jogo de associação, mas marcar 60 golos por época não é apenas ser um jogador de equipa: é ser o melhor jogador da equipa.”
Foi em Madrid que CR7 deu definitivamente lugar a CR9, com menos dribles e mais golos: 33, 53, 60, 55, 51, 61, 51. Os números impressionam por si só — e mais ainda quando associados aos respetivos recordes: com 401 golos marcados em 391 jogos pelo Real, já é o melhor marcador da história do clube; e, com 103 golos na Liga dos Campeões, já é o melhor marcador de sempre da prova — com mais golos na conta pessoal do que dezenas de equipas participantes, como o Benfica — 98 golos, e o Sporting — 52.
Nos quartos de final, marcou dois golos ao Bayern de Munique na 1ª mão e três na 2ª mão; na meia-final, marcou três golos ao Atlético de Madrid na 1ª mão. E pediu aos adeptos para não ser assobiado. Faz sentido assobiar o melhor jogador da história do clube? “Ronaldo merece que o aplaudamos daqui até à eternidade. Os assobios são anedóticos, mas próprios de um território tão emocional como o futebol”, considera Jorge Valdano. “Que ninguém o olhe com estranheza: os mais velhos certamente se recordam que o Bernabéu também assobiou Di Stéfano. E isso não lhes tira o lugar de honra que têm na história do Real Madrid”, acrescenta.
Tal como Valdano, António Simões — que defrontou Alfredo Di Stéfano várias vezes, no Benfica bicampeão europeu — desvaloriza os assobios. “Penso que têm mais a ver com a personalidade do que com o perfil de jogador. Conheci razoavelmente o Di Stéfano e era uma pessoa difícil, exigente, até no trato com os colegas, por isso, às vezes não gerava simpatia. Ele e Ronaldo têm semelhanças pela personalidade”, considera o ex-jogador. “Mas olhe que antigamente era pior. No Benfica, aos dez minutos, fosse que jogo fosse, contra o Sporting, Real Madrid ou Varzim, se não houvesse golo já estava tudo a assobiar. Era o que faltava, não ganhar. Eles caíam em cima do autocarro: ‘Se queres colinho, faz golinho’.”
Olimpo. Ronaldo sentado no topo do mundo depois de marcar três golos na primeira volta da meia-final da Champions contra o Atlético de Madrid, no Bernabéu
FOTO fotopress/Getty Images
Golinhos é o que não falta a Ronaldo, que também dizimou recentemente o recorde de Di Stéfano de 32 golos marcados nas fases decisivas da Champions (quartos de final, meias-finais e finais), ao chegar aos 35 golos. “São ambos ídolos, mas comparar Di Stéfano com Cristiano Ronaldo é um equívoco completo. São jogadores antagónicos. Eu digo-lhe o que foi Di Stéfano: foi o jogo, o jogo todo, no seu tamanho. Foi rei, tal como Cristiano agora também é rei, mas Di Stéfano foi pioneiro na sua cultura de jogo coletivo, além da capacidade individual. Ele jogava com a camisola ‘nove’ e criou-se o equívoco que era ponta de lança, até porque também marcava muitos golos, mas era um homem de meio-campo.”
Bem diferente do atual ídolo merengue, portanto. Se nos primeiros anos de Real Madrid apenas 33% dos golos de Ronaldo eram “à ponta de lança”, ou seja, na área, com cabeceamentos, ou a um ou dois toques, atualmente, essa percentagem passou para mais do dobro. “Há alguém que seja mais golo do que Cristiano? Não. Ele é muito menos jogo e muito mais golo. É simplesmente extraordinário, marca golos ao pequeno-almoço, ao almoço e ao lanche. Está cada vez mais na frente e vai ficar por lá. Mas também está maduro, cresceu e evoluiu”, conclui o ex-internacional português.
A receita do novo Cristiano: menos ginásio, menos peso e mais descanso
Já não é o miúdo do Andorinha que chorava quando perdia nem o puto do Manchester que amuava quando saía. “Foi substituído num jogo e foi como se alguém tivesse dado um tiro na mãe dele”, contou Phil Neville, ex-jogador do United, na biografia do português. “O Ferguson disse-lhe: ‘Tens de descansar’. Mas ele dizia que não, que precisava de marcar. Queria jogar sempre.” Foi por isso que acabou essa época de 2007/08 com uma lesão no tornozelo que o deixou dois meses praticamente sem treinar — mas sempre a jogar, à base de anti-inflamatórios.
A situação repetiu-se nas épocas seguintes e foi especialmente evidente no Mundial-2014, onde muito se discutiu a condição física do capitão português. Mas, agora, o novo Ronaldo já não vai até à exaustão. Não só descansa, como perdeu músculo — passou a fazer menos ginásio — e passou dos 84 para os 79 kg, segundo a “Marca”, jornal espanhol que segue de perto o Real Madrid. “O que acontece é que ele hoje é um jogador bem mais maduro”, começa por nos explicar Sergio Fernández, jornalista da “Marca” que costuma acompanhar o jogador, tanto no clube como na seleção portuguesa. “Viveu uma experiência terrível quando teve de jogar o Mundial no Brasil lesionado e não quis repeti-lo. Está mais maduro e isso implica também que esteja mais inteligente na sua própria gestão, já não se estica tanto durante um jogo, sabe retirar o melhor de si sem fazê-lo.”
Lá está: Cristiano, o velho, é Cristiano, o novo. “Se reparares, já não faz aquela jogada de pegar na bola no corredor lateral e ir por ali fora ganhar à linha, já não lhe interessa muito isso. Será sempre bom e sempre decisivo, mas não é imune à passagem do tempo. É claro que, agora, já não é o que era em velocidade, a conduzir a bola, já nem sequer tenta fintar, está muito mais concentrado em rematar. Potenciou outros aspetos do seu jogo, como o cabeceamento e a finalização, ou seja, a chegada à área como um avançado centro puro. Evidentemente, houve um passar de fatura na idade, isso é indiscutível. Mas também ganhou outras coisas. Percebeu que já não pode estar em todas. Tem de jogar a Taça das Confederações no verão, jogou um Europeu no verão passado e sabe que não pode estar sempre a jogar a época toda — e isso tem-se visto no Real Madrid”, defende.
Esta época, pela primeira vez, Ronaldo falhou 14 dos 60 jogos do Real Madrid — o número mais alto de ausências do jogador português em toda a carreira. E apenas cinco foram por lesão, ou seja, Ronaldo ficou de fora em nove jogos por opção, algo impensável nos anos anteriores. É certo que em 2009/10 e em 2013/14 também faltou a 13 jogos, mas, aí, foi forçado a parar por lesões, não por opção. “Nos últimos quatro ou cinco anos cheguei ao final da época sempre no limite, com pequenas lesões, mais cansado. Agora preparei-me para estar bem nestes últimos dois meses”, admitiu o próprio Ronaldo, após os quartos de final da Liga dos Campeões, contra o Bayern de Munique. “Tomei uma decisão diferente para me sentir mais fresco a nível físico, obviamente, em conjunto com o treinador”, acrescentou.
Zinedine Zidane — outro que sabe bem o que é ser assobiado no Bernabéu, apesar de ter sido o craque que foi no clube — também influenciou a decisão de Ronaldo, com quem partilha uma boa relação, por saber bem o que sofre um jogador de alto nível aos 32 anos (retirou-se aos 34).“Zidane foi um grande da história do futebol e isso confere-lhe uma grande autoridade quando fala com alguém que também irá ficar para sempre na história”, explica Valdano. “Além disso, os jogadores de nível superior têm uma enorme inteligência natural e sabem entender os conselhos que têm um sentido comum a todos”, acrescenta.
Ainda assim, o treinador francês raramente puxa para si os louros de quaisquer decisões na equipa e a gestão de Ronaldo não é diferente. “Ele sabe que às vezes o melhor é não jogar. Não é só por esta época, é pela acumulação de épocas ao longo dos anos. Ele sabe isso porque ele é inteligente”, explicou Zidane depois do hat trick de Ronaldo frente ao Atlético de Madrid. Até porque, se o próprio Ronaldo não achasse o descanso benéfico, ele simplesmente não existiria. “Zidane pode influenciar, mas não acho que tenho sido ele a convencer. Foi o próprio Cristiano a percebê-lo, a senti-lo no corpo. Porque se o Cristiano quisesse mesmo jogar tudo, como fez noutras épocas, teria jogado tudo. De certeza”, assegura Sergio Fernández.
Certo é que Ronaldo estave este domingo em Málaga, na última jornada do campeonato, a somar a segunda Liga espanhola do currículo. E, a 3 de junho, em Cardiff, a disputar mais uma final da Liga dos Campeões — já conquistou três —, contra a Juventus. Ou seja, o Real pode conseguir este ano a dobradinha, algo que não acontece desde 1959.
“Se o Real ganhar a Champions, é certo que o Ronaldo vai ganhar a quinta Bola de Ouro. O único adversário é Gianluigi Buffon, mas não me parece. E mesmo que não ganhe... Depois ainda há a Taça das Confederações”, defende o jornalista da “Marca”. A acontecer, será a quinta Bola da carreira do internacional português que tem contrato com o Real até 2021 — e isso quer dizer que alcançará as cinco que Messi já tem, aos 29 anos. “Pensavam que ele ia ficar pior? Não... O Cristiano é como o vinho do Porto. Vão passando os anos e ele está cada vez melhor”, graceja Leonel Pontes.
Milhares de milhões de anos desta Terra — e estávamos vivos quando Portugal foi campeão europeu, Salvador ganhou a Eurovisão e Ronaldo abrilhantou o futebol mundial. Mais transcendente do que isto é difícil. Ámen.
Texto originalmente publicado em maio de 2017 na revista E do Expresso