Drogas, amor, lealdades e violência - uma viagem de cinco meses à claque mais poderosa do Sporting

Ana Cristina Câmara
O Sporting tinha vencido por 3-1 na Póvoa e acelerava a marcha para o título. A exaltação espelhava o resultado mas, depois de mais de hora e meia de apoio ininterrupto ao clube, nas bancadas do estádio do Varzim, o corpo amolecia e já se pensava no descanso do regresso. Dois autocarros da Juventude Leonina fizeram-se à estrada, o primeiro mais vazio, dito “dos carecas”, o segundo, cheio, dito “da droga”.
A separação, nunca estanque e normal dados os diferentes interesses e amizades, era nesse dia mais visível. Velhas rivalidades ferviam, a sombra da desunião esgueirava-se entre os dois grupos. Adiante seguia uma carrinha da polícia, que indicava o caminho até ao Porto. Prevista estava a paragem na Mealhada, onde os jogadores iam, como é hábito, aviar-se com o leitão, e a claque queria felicitá-los. Minutos depois de terem saído da Póvoa, já no IC1, Miguel de Almada, o único representante da direcção da Juve Leo que seguia no segundo autocarro, avisou: “Pessoal, agora tudo de olho aberto até passarmos o Porto que eu já tenho muitos anos disto.”
Premonição? Nem um minuto se esgotou depois do alerta. Uma luz aproximou-se da retaguarda do veículo, escutou-se um estrondo de vidro a partir, algo deflagrou, no interior do autocarro, e começou a cair poeira. Em segundos. Depois do ínfimo momento que duraram o susto e a expectativa, gritou-se ao motorista que parasse, o que ele só fez umas centenas de metros adiante. «Está tudo bem?» O autocarro que seguia na frente também encostou à berma, tal como a polícia. A pé e do lado de fora, imediatamente, surgiu o diagnóstico: um petardo preso a uma pedra, para ter força, foi atirado contra a janela contígua à traseira. Alguns rapazes sacudiram casacos e camisas, cobertos pelo brilho dos cacos. Culpados? Sem hesitações: os Super Dragões, com quem tinha havido picardia ao final da tarde e depois do jogo entre Porto e Guimarães, no mesmo dia. Desavenças à parte, os dois grupos, “carecas” e “drogados”, uniram-se e tentaram perseguir os agressores, noite fora, mas, quem quer que eles fossem, já estavam longe.
O que sobrou da janela teve de ser partido para não se soltar com a deslocação do ar. A viagem para Lisboa foi refrescada. De pouco valeram as canções que, espontaneamente, tomavam conta do autocarro e aqueciam as gargantas; a pouco souberam os sonos aconchegados por casacos e o calor humano do vizinho: na chegada à capital estavam todos enregelados. E prontos para outra.
O relato, como tantos outros, vai entrar para a galeria de histórias que a maior parte dos membros desta claque tem para contar. Esta como outras. Mas, por ser a mais representativa em Portugal - com cerca de 2500 associados -, a Juventude Leonina, fundada em 1976 pelos filhos de João Rocha, então presidente do Sporting Clube de Portugal, foi seguida pelo EXPRESSO desde o jogo nas Antas, em Janeiro. Partimos à procura das diferenças deste universo, fechado e arredio a presenças do exterior; descobrimos semelhanças e, sobretudo, um mundo à parte. Dele fazem parte trabalhadores e desempregados; jovens e outros que o são menos; cultos e tolos; homens e mulheres; drogados e “skinheads”; polícias e ladrões; presidiários e muita gente de registo criminal impoluto. A uni-los, o amor pelo clube. Gastam fortunas, durante a época, para acompanhar o Sporting.
“O Mundo sabe que/Pelo teu amor eu sou doente” diz uma das músicas do badalado CD, que já chegou a disco de platina e pôs meio mundo a esgoelar-se pela equipa de Alvalade. Ainda não se ouvia, cá fora, o “Só eu sei porque não fico em casa...” e já era cantado, com a convicção de um hino, pelos mais novos da claque. Assim foi na deslocação ao Porto. Estavam sete autocarros preparados para a “invasão às Antas”.
Num deles, com gente mais nova e, segundo nos disseram, menos agitada, conhecemos ‘Balakov’. Electricista, com 18 anos, o Bruno ganhou a alcunha porque era fã desse antigo jogador do Sporting. E assim se auto-intitulava, sem modéstia, quando jogava futebol. Nesse tempo, era fanático. E agora? “Ainda sou, mas quando jogo à bola não me meto a dizer que aí vai o Quaresma ou o Jardel”, explica, entre risos. Já tem a voz rouca, ou não fosse invariavelmente ele quem dá o mote das músicas, à medida que se avança para Norte. A euforia não larga os passageiros nem os visitantes - entenda-se, os dois jornalistas - convidados a beber uns shots de uísque. Entre ganzas, álcool e tabaco, torna-se necessário abrir o tejadilho do autocarro para deixar subir uma coluna de fumo. Será um gesto a repetir por diversas vezes. “A claque é quem apoia mais o clube e desloca-se a todo o lado com a equipa”, continua ‘Balakov’, perante o assentimento do loiro ‘Papin’, sentado ao lado, que mereceu a alcunha no futebol, há muito tempo, pela cor do cabelo e pequenez. “Pertencemos à claque por amor ao clube”, reitera João ‘Papin’, de 19 anos.
São miúdos, pertencem à Juve há algum tempo, nem sempre podem ir aos jogos, mas o sentimento já lá está. A mentalidade enraizou-se, o fascínio também. Na portagem dos Carvalhos, às portas da Invicta, berram todos, em uníssono, e ao som do clássico “Guantanamera”: “Da capital, nós somos da capital, da capitaaaaal, nós somos da capital! Povo de merda, vós sois um povo de merda, povo de meeeerda, vós sois um povo de merda!”
Do lado de fora encontram-se os polícias do Porto que vão escoltar o autocarro até ao estádio, em cima da hora do jogo. Esse trajecto, de mais alguns quilómetros, é feito praticamente em silêncio. A expectativa aumentou e, no ar, filtra-se a ansiedade. Só retomam o ar de guerreiros e voltam a entoar os cânticos quando estão na iminência de sair do veículo e olham para as pessoas que, na rua, os observam com curiosidade e algum receio.
No meio de alguma confusão, forma-se um corredor para entrar no estádio. Um rapaz de cabeça rapada insiste em gritar ‘povo de merda!”, mesmo ao pé de um polícia que procura manter a ordem até ao momento da revista. “Mas acha que no Porto não há sportinguistas?”, pergunta o homem da farda azul, visivelmente irritado, no indisfarçável sotaque. A resposta não tarda, arrogante, afectada, sem direito a réplica: “Não falo com agentes da autoridade. Povo de merda!”
Apesar da violência, sobretudo verbal - que pode sempre acabar em confrontos físicos, evitáveis se depender dos 300 elementos das forças de segurança presentes - e da imagem negativa que se cola à claque, o surpreendente acontece. Quando todos se empurram para não perder o início do jogo, a minutos de arrancar, um garoto numa cadeira de rodas, acompanhado pelo pai, consegue o impossível: abre caminho entre a multidão, que ainda se aperta mais para, voluntária e espontaneamente, dar passagem aos dois sportinguistas. O gesto de civismo, impensável naquele ambiente, surgiu com naturalidade. E o Diogo, de 16 anos, chegou a tempo de ouvir o apito inicial. O pai, Fernando Almeida, portuense, aproveitou a ocasião para lançar o repto: “Espero que nos estádios do Euro 2004 haja mais condições”, enquanto o filho assistia ao jogo, recuado e recolhido sob o acesso da bancada. “As pessoas não são más, foram solícitas, mas aqui extravasam”, resume, quanto ao sucedido.
Dar largas às emoções, muitas vezes excessivamente e de forma negativa, é uma das imagens de marca das claques: a ideia que passa é a dos feios, porcos e maus. Também os há. Entre os que inspiram mais desconfiança, e são tidos como mais agressivos, estão os skinheads. São conhecidos como os “carecas”. Formaram, há meses, um núcleo, o 1143 - data da fundação de Portugal - e foram, desde logo, alvo das mais duras críticas. Diz-se que são uma das facções mais importantes da claque, sendo a outra, maioritariamente, a do núcleo de Sintra, a dos “drogados” (entenda-se gente que fuma haxixe ou erva, embora o consumo de drogas duras também aconteça, mas não esteja colado a este grupo).
Um dos pontos de discórdia, que se tem vindo a intensificar, vem dos “carecas” estarem representados na direcção da Juventude Leonina. Quem o diz é Miguel de Almada, assim conhecido por ser dessa cidade da margem Sul, membro da direcção e do 1143. É dos elementos mais mediáticos da claque e tem uma loja de material para os adeptos de vários clubes.
Vive para o mundo ultra: “Há uma guerra de poder. Neste momento, os elementos do chamado núcleo de Sintra dizem que não têm ninguém na direcção. Os ‘carecas´ têm o Barraca e eu estou conotado.” Correm rumores de cisões, para a próxima época, mas Miguel nega a possibilidade.
Da conversa possível com alguns “carecas”, que se quiseram identificar - por vários deles terem processos pendentes e estarem referenciados pela polícia -, ficou a insistência de que não estavam a fazer política na “curva” (bancada). Aliás, como um deles referiu mais tarde, “não há infiltrações de extrema-direita na claque”. Só que não caiu muito bem aos outros elementos da claque ver elevar-se na Superior Sul, em Alvalade, um estandarte branco com letras negras onde se lia “Sporting SSempre”, sendo que os dois «esses» eram idênticos à siglas das SS hitlerianas. À pergunta provocatória - e óbvia - um respondeu: “Ninguém vai para ali discursar!” Mas outro jovem contrariou-o: “Nós fazemos política na 'curva', não nos tentamos é impor.”
A esta réstia de verdade, o primeiro recuou e justificou-se: «Os símbolos políticos não querem dizer que estejamos a fazer política. É por isso que na bola pode haver uma ‘totenkopf´ (caveira que era um dos dísticos das SS) ao lado de uma folha de cannabis. Se fizéssemos política, na «curva» só havia ‘totenkopfs´.» Falou um dos mais carismáticos e respeitados do grupo, que anda com a claque há mais de uma década.
Apesar disso, nenhum deles chegou ainda aos 30.
Conseguiram criar o grupo, que se quer restrito, coeso e de amigos, com apenas 14 pessoas, quando, por norma, são necessárias 20. A excepção é tida como sinal de respeito e de poder dentro da claque. Com a maioria dos outros membros da Juve Leo não há relação possível - “fora das quatro linhas, acabou-se, não há amizade” - o que já não acontece com adeptos de outros clubes, desde que partilhem os mesmos ideais. É uma convicção que também lhes vale críticas por parte do resto da claque. Os “carecas” defendem-se com distorcido bom senso: “É impensável um ‘skin´ bater noutro ‘skin´ só por causa do futebol.”
Quanto a não-skin, a conversa é outra, mesmo que andem de verde e branco. Foi o caso em Alverca. Um rapaz negro, com a camisola do Sporting, passou em frente à claque e foi pontapeado por um jovem “careca”. A GNR, responsável pela segurança do recinto, apenas afastou esse elemento da Juve Leo do resto da claque, obrigando-o a ver o jogo longe dos companheiros. Dois juntaram-se a ele, por solidariedade. Não se coíbem de continuar a chamar nomes a outros negros que vejam, nomeadamente jogadores, a quem gritam: “Macaco volta para a selva!” São adolescentes, têm ainda feições de miúdos, mas, como sublinhou o alferes Barros, que controlava nessa noite os movimentos da Juve Leo, “os mais novos são os piores”.
Da mesma opinião é um outro “skinhead” - que também não se identifica - que há muito segue a Juve. “As porcarias que há na claque são mais feitas pelos putos do que pelos mais velhos», resume o jovem. Mas também realça que «a claque é uma cena violenta por origem. Sempre que há violência, pelo menos 50% do grupo 1143 está lá metido”.
O próprio Fernando «Mendes», presidente da claque (ver caixa), já foi relacionado com a extrema-direita, ligação que rejeita: “Apareci na capa de uma revista a fazer a saudação nazi e a segurar a bandeira céltica. A cruz celta está conotada com os ‘skinheads´ e é uma estupidez. A cruz celta quer dizer paz aos seus e à glória. Levantei o braço direito e jurei à bandeira: isso é fazer uma saudação nazi? Fiz tal e qual como nos pára-quedistas. Admiti que foi mais uma questão de exibicionismo. A Comunicação Social não dava imagens da claque.”
Quem preconiza um papel mais activo e positivo dos “media” é a psicóloga do Desporto e das Actividades Físicas, Maria João Neves. “Não evidenciar, não reforçar os actos negativos das claques, valorizar mais o espectáculo em si, as bandeiras, as músicas, a entrega ao desporto”, propõe. Talvez a violência diminua. Ela é, no seio da claque, desdramatizável.
Dessa opinião é Nélson, 24 anos, que trabalha no ramo da segurança, depois de ter estado vários anos ao serviço da Legião Estrangeira. Tem a cabeça rapada por hábito, e não ideologia, e emana tanto tranquilidade como razoabilidade quando fala, apesar do passado que o vincula a conflitos bélicos: “Há uma certa violência nestas claques, como é óbvio. A mentalidade das pessoas com 20 e tal, 30 anos, é sempre um pouco agressiva quando diz respeito a provocações. A malta nova não consegue controlar esses impulsos.”
A claque serve de refúgio e também de escape. “Esquecerem-se dos problemas, da rotina, quererem extravasar as suas emoções” constituem motor de aderência à claque, explica a psicóloga. Por outras palavras, Nélson complementa: “Conheço muitas pessoas que trabalham, que têm uma vida normal e aproveitam estes jogos para mandar cá para fora aquilo que não são.” Entre os chamados ‘normais‘ contam-se a Maria João e o Hugo. Ela é assistente de produção, tem 27 anos e é sócia da Juve há uma década; ele é bancário, tem mais um ano de claque e menos cinco que ela. Conheceram-se na “curva” e namoram desde Maio de 1995. Em Junho nasce um bebé.
“No trabalho sabem que sou sportinguista, mas não que sou da claque. Não acho relevante falar disso”, conta Hugo. É quase uma norma, dada a ideia pouco abonatória que geralmente se tem das claques. São as próprias pessoas que poderiam ‘limpar‘ a imagem negativa que se coíbem de falar. Temem alguma discriminação. Não é o caso da Maria João. No trabalho sabem que tem lugar na Superior Sul, em Alvalade. E na claque é das poucas mulheres a marcar presença.
Há outras. Como a Rosário, de 47 anos. Uma senhora da “curva”. Pequena, de olhos claros, rasgados, e lábios finos, o nariz compõe o conjunto dando-lhe um perfil de leoa. Há quem lhe chame, carinhosamente, «velha», por ela ser uma espécie de mãe para a canalha. Trabalha na “régie” da RTP, nos programas de desporto, e admite que «é muito difícil conter-se», embora todos saibam das suas preferências clubísticas - que já lhe causaram alguns dissabores - e da associação à Juve, que começou na década de 90.
A paixão começou nessa altura: “Tenho duas famílias: uma em casa e a do Sporting”. No lar, as tendências divergem, com dois filhos do clube da mãe e outro a apoiar o pai, do Benfica. Sobre a equipa da Luz, Rosário não se mostra misericordiosa. “Gente do Benfica ao longe! Sou mesmo antibenfiquista”, lança, desafiadora. A pergunta é inevitável: então e o marido? “Ele prefere que ganhe o Sporting a que ganhe o Benfica, só para me ver feliz. E não fala do Benfica. Sou o homem-mulher da casa”, adianta, a rir. Fica por descobrir até que ponto é verdade.
Certo é que Rosário, a senhora-que-já-tinha-idade-para-ter-juízo, está como peixe na água no meio da claque. Excessos, só pela voz. Rosário emprega o mais rebuscado e indizível vernáculo nas apreciações ao jogo, ao árbitro, ao adversário. No bate-boca, 30 homens juntos não lhe fazem frente. Como nos confidenciaram - e pudemos confirmar - “para ofender, tem um dicionário na ponta da língua”. É a sua maneira de viver as emoções. A “velha” não falha deslocações nem jogos em Alvalade. A não ser por razões profissionais.
Quem não a tem - a profissão - não é menos adepto, ou menos ultra, como a maioria se intitula. “O Sporting acima de tudo. Para não ver o Sporting, só preso ou hospitalizado. Já fiz 40 e tal quilómetros a pé por não ter dinheiro, apanhei centenas de multas do comboio. A vida de ultra é dura” - apresenta-se Zé “Tramagal”, 28 anos, magro, moreno e falador, natural da terra que lhe serve de alcunha. Diz-se sócio do clube e da Juve há 11 anos. Percorre os cerca de 100 quilómetros que o separam de Lisboa, todas as semanas, para ver um treino. O vício do Sporting, único que admite, sai-lhe caro, mas tem soluções: “O meu pai é empresário e vai-me sustentando o vício. Tirando isso, tenho que me fazer à vida. Todos nós temos os nossos negócios, as nossas vidinhas suplementares”, ensina, de olhos meio cerrados. É uma personagem... e um desenrascado. Pede ajuda financeira a alguns jogadores. Os próprios admitem a contribuição. O defesa-esquerdo Rui Jorge, além de outros colegas, confirmou: “Quando as saídas são mais longas, eles falam com o capitão e ele faz uma colecta.”
Para as competições europeias, “Tramagal” tenta “arranjar guito de todas as maneiras.” Já foi para Madrid com apenas 260 escudos e um maço de tabaco. “Só eu sei o que tenho de fazer para ver o Sporting”, brinca. Mas, a brincar, a brincar, esta fidelidade à equipa pode custar cerca de três mil euros por ano. Fora as deslocações ao estrangeiro.
“Tramagal” explica, sem reticências ou amargura: “Actualmente, não tenho mais nada que me cative. A lutar, é pelo Sporting.” Por isso foi aos Açores, durante quatro dias, ver o seu clube defrontar o Santa Clara, e faltou a um julgamento no Continente. “Tenho de lutar toda a semana para ter a minha única alegria ao fim-de-semana, que é ver o Sporting jogar” - justifica-se.
A psicóloga Maria João Neves traz outra luz ao fenómeno das claques. Entre as várias razões que destaca para a associação a uma claque, a da auto-estima parece ser das mais preponderantes: “Os membros da claque olham para a equipa como para uma extensão de si próprios. Se a equipa deles vencer, dar-lhes-á percepções de realização e de competência. Mas esta auto-estima não é só criada e mantida pelos resultados; ela só aumenta com o sentimento de pertença e a solidariedade entre eles.”
A dedicação à equipa chega, muitas vezes, à veneração. Beto, padeiro de Santa Iria e sócio da claque há sete anos, quando entrou na maioridade, traz tatuado nas costas João Pinto 25, número da camisola que o avançado veste no Sporting. O amigo “Tramagal” avisa logo que “o Beto é o ultra mais maluco que há!”.
Com a cabeça quase rapada, de brinco e argola pendurados nas orelhas, Beto leva sempre uns pãezinhos - que o próprio cozeu - para saciar a fome dos companheiros de viagem nas deslocações. Não se arrepende da tatuagem porque o João Pinto “é um bom jogador”. Desde que não regresse ao Benfica.
O jogador foi dos mais odiados pelos ultras, quando jogava na Luz, e ainda há quem defenda que ele não está perdoado enquanto não fizer um hat-trick ao Benfica. Para muitos ainda é “o João Porco”. O próprio apenas tem a dizer “que não se pode agradar a toda a gente, mas a vida é mesmo assim”. A excelente época que fez ao serviço do Sporting valeu-lhe uma música, que termina na apoteótica “ver-te de verde, não sei o que sinto... o grande artista, João Pinto!” que a claque costuma cantar quando ele marca um golo ou é substituído.
João “Barraca”, 22 anos, pertence à direcção da claque, é responsável pelo material - faixas, bandeiras... - e é dos que não cantam. Aferidor de pesos e medidas da Câmara Municipal de Lisboa, sócio da Juve há nove anos, é dos que admite abertamente a antipatia pelo jogador: “É um símbolo do Benfica.” Nem valia a pena rebater o argumento: estava, nesse instante, a passar um miúdo, em pleno estádio do Santa Clara, com uma camisola encarnada do João Pinto. Atrás estava estampado, em branco, um 8.
“Ele será sempre o número 8, o 25, para mim, não é nada.” Por isso, quando o “grande artista” marca um tento, “Barraca” festeja como se fosse um autogolo da equipa adversária.
Outro jogador em torno do qual se fomenta uma relação amor-ódio é Pedro Barbosa. Gonçalo Metello, bancário, membro da direcção até ao começo deste ano, altura em que se afastou por motivos profissionais, tentou esclarecer a questão. “É uma pessoa que não se esforça em campo. É um mestre. Ele sabe. Joga futebol de olhos fechados. Mas não corre. Chamamos por ele e ele não liga, não passa cartão”, criticou. O capitão leonino revelou espanto e algum embaraço quando ficou a saber destas opiniões. Talvez já as tivesse percebido, mas mostrou-se apanhado de surpresa: “Tenho uma maneira de estar muito própria. A claque tem estado sempre com a equipa, reconheço isso. Não cheguei ao pé da rede, mas despeço-me deles e da massa associativa. O importante é o apoio que nos têm dado.”
Indiscutível e incondicional é o sentimento que nutrem pelo avançado Sá Pinto, que se encontra a recuperar de uma lesão. Mais uma vez, Gonçalo serve de porta-voz: “Está muito ligado à Juve Leo. Não há ninguém na claque que não goste dele. Hoje já existem outros jogadores que também o fazem, mas, até há uns anos, o Sá era o único que nos ligava. Fartava-se de oferecer camisolas, acabava os jogos e ia ao pé de nós, sozinho, bater palmas. Punha bandeiras da Juve Leo na cabeça, abanava as nossas bandeiras... Cativou-nos com esse tipo de atitude.” Como retribuição, a claque esteve presente no primeiro jogo de Sá Pinto pelo Real Sociedad, que o contratou depois da célebre agressão a Artur Jorge.
Para dissuadir desacatos nos estádios estão instalados circuitos de videovigilância. São acessórios úteis à polícia, geralmente tida como oponente da claque. “Não acredito que haja muita gente dentro da claque que goste da polícia. Não pode haver. A polícia estraga a festa a muita gente”, diz quem sabe do que fala. Rui Marques é polícia na Costa de Caparica e membro da Juve Leo. Aos 26 anos, acompanha a claque há época e meia, embora tenha conhecido os seus membros muito antes e seja associado do Sporting há 15 anos. Até já tinha uma tatuagem da Juventude Leonina.
Nos Açores causou sensação vê-lo, depois da vitória do Sporting, cumprimentar alguns polícias responsáveis pela segurança do estádio. Eram antigos colegas! Apesar de se considerar um ultra, um incondicional do Sporting, Rui não participa tanto quanto gostaria. Por exemplo, não vai nos autocarros: “Há sempre merda nas estações de serviço e eu não consigo vestir uma camisola por cima da outra”, defende-se. Os ultras da claque sabem que podem contar com ele. Rui não rouba nem impede ninguém de o fazer. Ele sabe que “a maioria prevarica, mas há muitas pessoas que não fazem merda”.
O chefe, que também o sabe, facilita no que pode. E é Benfica! “O meu chefe conhece o meu comportamento como polícia e estende isso ao meu comportamento como ultra”, explica Rui, pelo que não surgem problemas no trabalho.
E não é por ser polícia que não sabe o que é levar com um cassetete: “Em Braga, quando rebentou o segundo petardo, estava à frente e também levei duas bastonadas nas costas e nas pernas.” Não se identificou. Um polícia está de serviço 24 horas por dia, mas havia lá outras pessoas para isso.
Polícias fardados, outros à paisana, também fazem parte do cenário da “curva”. Com os primeiros, devidamente identificados, mantêm-se as distâncias possíveis. Só que, às vezes, não é mesmo possível. Na chegada a Guimarães, o campeonato já estava ao rubro e as cabeças também. O autocarro tinha chegado no fim da primeira parte do jogo e uma escolta aguardava-o para acompanhar os jovens até à respectiva bancada. Ladeados pelos agentes da autoridade, os sportinguistas de Lisboa queriam entrar em grande: o habitual “povo de merda!” já chegava aos lugares mais cimeiros do Vitória, de onde os adeptos da casa disparavam insultos.
O habitual, dadas as circunstâncias. Até um polícia não ter achado graça a um rapaz, franzino, de pequeno estandarte na mão, a chamar “bimbos” aos sócios do Guimarães. Reacção: cassetete na perna do jovem, seguido de um seco “não quero ouvir insultos”. Todos os outros vocábulos - alguns associavam membros da família a profissões menos decentes - deviam fazer parte do léxico desse profissional. O rapaz queixou-se, mas o polícia não desarmou e ainda ameaçou, de cassetete em riste. O jovem foi queixar-se junto a um superior, que lhe acalmou os ânimos.
Em oito anos de claque, Ricardo Cobra afirma nunca ter sido agredido por outro adepto, só pela polícia. É do tipo calmo, apenas se exalta verbalmente, a ver os jogos. Não é exactamente daqueles que, como diz o Comandante da 3ª Divisão, “deixa o cérebro em casa quando vai para o futebo”». Sousa Simões, responsável pelo policiamento em Alvalade e na Luz, explicou a relação dos paisanas com as claques: “Elas estão mais à vontade com os agentes desfardados do que com as outras polícias.”
É uma relação que se apoia no tempo. Cada equipa, com três ou quatro operacionais, já conhece muitos membros das claques e vice-versa. “É pela base desse conhecimento mútuo que há autocontrolo e autovigilância”, segundo o comandante Sousa Simões. E prossegue: «Temos consciência que não é um grupo homogéneo. Há pessoas com diferentes ideologias, gostos, atitudes. Conhecendo isso, há certos indivíduos que nos preocupam mais porque é deles que podem vir os incitamentos à violência.» Rapidamente esclarece que as claques fazem parte do espectáculo e que a Juve Leo “tem tido um comportamento correcto esta época”.
Só que, no futebol, as pessoas transformam-se. E também transformam. O Cobra - não precisou de alcunha, é esse o seu nome - esteve em Nova Iorque a estudar e estagiar, na área de Comunicação, e fundou o núcleo Juve Leo New York, ao mesmo tempo que iniciou o site www.juveleo.online.pt, em 1998. Começou a ir à bola tarde, com 13, 14 anos, com amigos e, quando deixou de ter companhia, juntou-se à claque. No ano em que viveu em Nova Iorque, atravessava o rio para comer bitoques, beber cervejas e ver o Sporting na televisão, em Newark, onde reside a maior parte da comunidade portuguesa.
Regressado à pátria, voltou a integrar as deslocações da claque e continuou a aposta na Internet. Arrancou com a campanha “Só eu sei.com”, em letras brancas sobre estandarte verde, e está a preparar o site www.sportingsempre.tv, com o material que recolheu nos últimos dois anos: “Sons, vídeos, fotografias, aquilo que não se vê em mais lado nenhum, sempre pela positiva. Mostrar o lado mau é o mais fácil e o que mais há por aí.”
O lado negativo evidencia-se mais depressa. E para isso está lá, inevitavelmente, a polícia. Sousa Simões entende que os membros das claques “sabem que estão identificados”. Alguns estão mesmo presos (ver caixa). E aponta o dedo para a legalização da claque como medida de controlo dos seus membros. Sousa Simões ataca: “Os clubes gostam de ter as claques, mas não querem ter o ónus de responsabilidade porque sabem que não as podem controlar.”
O tema da legalização é controverso. A Juve Leo encontra-se em situação ilegal, ao contrário, por exemplo da Torcida Verde, a outra claque, numericamente muito menos significativa, que apoia o Sporting. Fernando “Mendes”, líder há dez anos da Juve, declarou que a legalização é um processo lento, que está em marcha e deverá ser concluído dentro de dois ou três meses. É proveitoso para a claque tornar-se uma associação desportiva sem fins lucrativos de apoio à juventude, defende o presidente da Juve. Há quem discorde dele.
Um dos “carecas” explicou porquê: “No dia em que a claque passar a legal perde-se muita coisa: a liberdade. Não vamos poder pôr as faixas que queremos, começa a haver responsabilidades directas. Claque e violência são palavras muito chegadas. E uma palavra que não tem nada a ver com claque é legalização.” Fernando “Mendes” responde, em voz de líder, que quem diz isto, diz mal. Mas um dos seus colegas na direcção, João Guerreiro, também se mostra reticente: “Há inúmeras vantagens em estar legalizado, mas em coisas de confusão interessa pouco.” Mas também ele sabe que é uma questão de tempo. À espera está o clube. Isabel Trigo de Mira, responsável pelos núcleos e membro do Conselho Directivo do Sporting, lamenta que a Juve não esteja legalizada, e aguarda: “Temos tudo legal neste clube e a Juventude Leonina tem que estar na mesma onda.”
Novamente, o líder hasteia o argumento dos patrocínios e ajudas que poderiam beneficiar a claque caso esta fosse legalizada. Na sua condição actual, qualquer tipo de apoio é ilegal. Mas acontece. Margarida Caldeira da Silva, do Sporting, nega essa ajuda: “Como a Juve não é uma claque legalizada, o Sporting não lhes paga nada.” Mas, “quando é preciso dinheiro, ele aparece»” garante João Guerreiro.
Fernando “Mendes” explica as ajudas possíveis: “De vez em quando chegamos a acordo, nos jogos mais emotivos e decisivos, e a SAD paga, como foi o caso no Bessa; às Antas, a SAD pagou quatro autocarros e nós outros tantos.” O resto, alega o presidente, é pago pela cotização anual de dez euros (20 euros na primeira vez) e pela venda de material com o símbolo da claque ou do Sporting. O clube “oferece de 20 a 30 bilhetes para a organização da claque, que são os elementos que trabalham. Todos os outros são comprados, às vezes a preços mais baratos, com Cartão Jovem, bilhete de claque... O clube ajuda-nos, nesse aspecto”, confessa, afinal.
As relações entre a Juventude Leonina e o Sporting não podiam estar melhores. A claque só existe para apoiar a equipa de Alvalade, mas o clube trá-los “nas palminhas das mãos”, como disse Gonçalo Metello. E todos ficam a ganhar. Mas na Juve ainda se recorda os tempos em que o entendimento com o Sporting não era tão caloroso. E muitos não hesitam em apregoar que já têm força para derrubar uma direcção e que deitaram abaixo a de José Roquette. João Guerreiro, Miguel de Almada, Gonçalo Metello estão entre os notáveis da Juve Leo que o afirmaram: “A direcção caiu e nós é que rebentámos com ela.” Com ameaças de agressões físicas, pressões. Nada de pessoal, apenas profissional: criticavam a má gestão do clube.
A versão de Alvalade, pela voz de Isabel Trigo de Mira, é que Roquette não saiu por pressões. Pressões sofrem eles todos os dias. O próprio Fernando “Mendes” somente refere “uma pequena divergência. Houve dois ou três dirigentes que não se sentiram bem e pediram a demissão”.
Os rumores de que a direcção da claque mete dinheiro ao bolso graças às ajudas que recebe do clube, por debaixo da mesa, persistem. Fernando “Mendes” diz ter a resposta: “Isto dá prejuízo a quem está a gerir. Neste caso, até a mim. Ser líder de uma claque dá poder, protagonismo, fama, nome. É a inveja das outras pessoas, que não conseguem atingir o objectivo de serem líderes. Há os trâmites legais para se provar isso.” E, na claque, ainda ninguém recorreu a eles.
Divergências à parte, depois da festa do título espera-se a festa da Taça de Portugal. Amanhã, no Jamor, a Juve vai ser parte indispensável do espectáculo. Com cânticos, com faixas, com tudo o que ela é. Beto, defesa central, só pede: “Continuem assim!”
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