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Há quem diga que usou a mão, mas ninguém sabe e Deus não conta: 1986, o ano que definiu Maradona

A mítica camisola 10 usada por Maradona no Nápoles, clube sulista que carregou às costas contra o norte rico e arrogante
A mítica camisola 10 usada por Maradona no Nápoles, clube sulista que carregou às costas contra o norte rico e arrogante
MARCO BERTORELLO
Pedro Boucherie Mendes escreve sobre um deus a cores num Portugal cinzentão que puxava pelo Brasil nos anos 80 até um pequeno barrilete cósmico rebentar com as leis não escritas do futebol

Pedro Boucherie Mendes

Maradona é muito os anos 80, aquela década onde passamos do raro para o frequente em tanta coisa. Por exemplo, a sua ida para o Barcelona em 1982-1983 por valores recorde na altura deu direito a alguns jogos transmitidos na nossa televisão. Em Portugal havia televisão a cores há relativamente poucos anos e os jogos completos de futebol eram raríssimos. Quem queria ver os golos, precisava de gramar com o telejornal até ao fim, altura em que o apresentador passava a palavra ao colega do desporto.

No princípio dos anos 80, não havia ainda ligas nem transmissões organizadas e em Portugal os clubes até se boicotavam a RTP, impedindo a sua entrada nos estádios o que significa que por vezes nem sequer víamos golos.

Naquele tempo, passávamos o tempo a jogar na rua e muito do futebol verdadeiro e referencial que conhecíamos vinha dos relatos ou das incríveis edições trissemanais de A Bola (às segundas, quintas e sábados). Um dia será feita justiça à qualidade de A Bola e aos seus jornalistas, fotógrafos, ilustradores e gráficos, que faziam um jornal grande, um broadsheet, maravilhoso, que fazia borbulhar o jogo no dia seguinte.

Um pouco como certas comidas de tacho ficam melhor no dia seguinte, A Bola parecia que tornava o futebol ainda melhor depois do jogo. No resto, o subbuteo era jogado por alguns privilegiados, mas na realidade era nos cromos que sonhávamos em ser futebolistas como eles, os que jogavam cá, no meu caso o Oliveira, o Litos, o Futre, o Jordão.

Era possível e acontecia muito ficar a olhar para um cromo de um jogador. Só a olhar. Simplesmente olhar para um pedaço de papel, impresso a cores, em que o jogador podia estar a meio corpo, podia estar inteiro ou podia estar em movimento, dependia da coleção.

O resto completávamo-nos na imaginação, mas o nosso coração palpitava mais por um jogador do Espinho ou do Estoril do que por um miúdo norueguês que pudesse estar a marcar golos em Oslo.

Só que Maradona era diferente porque viera da América do Sul para a Europa coroado como o mais caro de sempre. Todos víramos o Mundial de 82 e o assombro que fora o futebol brasileiro. Agora é que ia ser. Agora é que o futebol europeu ia deixar de ser físico, bruto e ofegante.

A ida de Maradona para o Barcelona foi um pouco desapontante. Primeiro teve uma hepatite e partilharam-lhe o tornozelo numa entrada tão violenta do basco Goikoetxea que ainda é difícil ver em vídeo.

Mal voltava aos campos, recuperado das lesões, Maradona, o número dez, baixote e cabelo comprido (mas não demasiado comprido, como o de Kempes, por exemplo), pegava na bola e tentava progredir, mas era imediatamente massacrado pelos adversários. Lutava com eles, fintando-os e humilhando-os, mas também ao soco e ao pontapé, que lhe valia suspensões e agravos. No futebol de hoje, os cartões serenam depressa os jogadores maldosos porque as leis do jogo foram reescritas, mas na altura os cartões saíam pouco do bolso dos árbitros.

Maradona ficou dois anos na Catalunha e, se era o maior da Argentina, de Espanha saiu quase com o rabo entre as pernas. Maradona ficara de fora no Mundial de 1978, que a Argentina venceu na Argentina e em Espanha, no verão de 1982, nos quartos de final, caiu com a Itália.

O defesa Gentile levou a sua missão muito a sério, cometeu 23 faltas sobre o pequeno Diego, conseguiu não ser expulso e a Itália seria a inesperada campeã do mundo. A favor dos argentinos, o impacto que a verdade sobre a Guerra das Malvinas teve sobre a equipa. Mais tarde soube-se que os jogadores e toda a comitiva julgavam que estavam a ganhar a guerra com os ingleses e mal chegaram à Europa perceberam o contrário e desmoralizaram.

Peter Robinson - EMPICS/Getty Images

O futebol dos anos 80 era para gladiadores e aos artistas cabia serem melhores, mas também mais fortes. Pedia-se-lhes que aguentassem de tudo. Ninguém os protegia. Sempre a levar pancada dos defesas, sozinho na luta contra o inimigo e falido, Diego Armando Maradona vai para um clube pequeno, que nunca na sua história fora campeão italiano e termina o primeiro campeonato em oitavo.

No Norte de Itália, rico e arrogante, faziam-se contas à vida do argentino. Três anos de Europa, três campeonatos que não venceu. Na época seguinte, ainda pelo Nápoles, também não é campeão.

E chega o verão de 1986.

Depois do Mundial do Naranjito, o Espanha 82 para os amigos, o mundo tinha mudado bastante à entrada para o Mexico 86. Era no tempo em que as pessoas iam às poupanças ou combinavam prestações com o homem da loja de eletrodomésticos e mudavam para um melhor televisor porque havia Mundiais, Europeus ou Olímpicos. A indústria gráfica também evoluía e os cromos eram muito melhores.

Com Portugal arredado deste tipo de provas, a dor durava menos que possam pensar porque havia poucas coisas mais excitantes naquele tempo que um Mundial de Futebol.
Ansiosos por ver Diego, o tal que nunca fora campeão na Europa, que se lesionava muito e andava sempre metido em confusões em campo? Talvez não. Em Portugal só tínhamos olhos para o Brasil e sempre havíamos de ver se a Itália se aguentava nas canetas, depois da vitória inesperada de há quatro anos.

Ao contrário do que se possa pensar, chegou a haver críticas por Maradona ter sido convocado para o Mundial do México. Falhara no Barcelona e em Itália era visto como o típico jogador sul-americano, individualista, quezilento, agressivo, mas de eficácia relativa. Ainda por cima, capitão?

A Argentina dividia-se e os outros não ligavam muito. A nossa aliança era com Falcão, Sócrates, Zico e Muller (que os comentadores pronunciavam Miller, sabe Deus porquê), que não estando lá nós, os brasileiros eram como se fosse. Quem ouvisse rádio em maio de 1986, gramava com Whitney Houston em “The Greatest Love of All” mas também com esse hit enervante, “All I Need Is A Miracle”, de Mike and The Mechanics.

Talvez saturado de ouvir o apelo insistente, Deus tenha precisado de companhia para se distrair e decidiu colocar a Argentina no caminho na Inglaterra, a 22 de junho. Entraria em campo, vestido de azul, todo um povo que perdera a guerra das Malvinas contra o país que os humilhara.

No fim, a história é fácil de contar porque foi escrita por alguém que quis que se tornasse fácil de contar por muitos, muitos anos. Maradona ganhou o jogo, com dois golos memoráveis. Um em que driblou meia equipa e outro em que conseguiu saltar mais alto do que o guarda-redes. Há quem diga que usou a mão, mas ninguém sabe e Deus não conta. Os ingleses estavam fora, os argentinos riam por último e estava encontrado o melhor jogador de todos os tempos da TV a cores. Para não ficarem sem os detalhes, seguiu-se a Bélgica, que vencera a Argentina em 82 e que deu direito a outra vingança de Diego.

Na final, contra a Alemanha, Maradona não marcou, mas levantou o troféu de campeão do mundo. Os companheiros de equipa nem conseguiam acreditar que Maradona os tinha incluído na conquista. Diego Armando Maradona, o homem que nasceu em Lanús, província de Buenos Aires, em outubro de 1960, tornou-se no primeiro individuo a vencer um desporto coletivo.

Na época seguinte, o Nápoles ao colo de Maradona é finalmente campeão italiano e o jogador argentino arrasava em campo. As suas fintas, velocidade de execução, inventividade, potência e direção de remate, inteligência de jogo, atitude e confiança eram sobrenaturais. Em 1986 e 1987, os melhores anos da sua carreira, Diego podia jogar na terra, mas transformou-se numa divindade. O pequenote com ganas e cabelo pelos ombros a tentar levar um Barcelona estagnado à glória sem que ninguém o tenha ajudado, atravessou os anos 80 e ficou maior que aqueles anos.

Etsuo Hara

O futebol era tão diferente naquela altura que as transferências eram raras e Maradona foi ficando no sul do Itália, tornou-se no líder dos napolitanos embora só tenha voltado a a ser campeão em 1989-1990.

Para o fim, o jogador argentino era tão popular que pediu aos italianos que puxassem pela seleção argentina no Mundial que se realizaria precisamente em Itália e no qual Maradona e a Argentina eliminariam a seleção transalpina e chegariam à final, onde, num jogo chato como ver um ovo a cozer, perderam para a Alemanha.

Dir-se-ia que a carreira de Maradona acaba por ali. A seguir há de tudo, menos glória, futebol e consistência. Ligações à Máfia, controles anti-doping positivos, uso de drogas, polémicas com dirigentes, filhos ilegítimos, separações e divórcios, peso a mais e todos os disparates e peripécias imagináveis, uma mini estadia em Sevilha, um regresso ao Boca, um mundial de 1994 onde foi suspenso e expulso da equipa por tomar efedrina, uma carreira quase ridícula como treinador, dichotes, bocas e declarações bizarras, escândalos e achaques.

O seu papel na novela terminou hoje com a sua morte, aos 60 anos. Sabemos para onde foi e também sabemos que não se calará.

Maradona, o mais difícil dos bonecos da bola, como dizíamos na altura em que fazíamos as coleções de cromos sem encontros marcados pela internet para trocar repetidos, foi dos poucos jogadores a criar uma era própria. É espantoso como jogou muito menos jogos e conquistou muitos menos títulos do que poderíamos imaginar.

Ou talvez não. Era maior que o futebol.

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