Queria ser aviador, foi sapateiro e transformou-se num dos maiores do futebol brasileiro: Djalma Santos morreu há 10 anos
PA Images Archive
O colossal defesa que colocava no seu lançamento lateral “toda a paixão de um Cristo Negro”, segundo Nelson Rodrigues, foi campeão do mundo em 1958 e 1962, estando ainda presente nas Copas de 1954 e 1966, sendo que ele e Pelé são os únicos futebolistas daquele país com jogos a titular em quatro Mundiais. “O Djalma Santos era tão bom, mas tão bom, que jogou só um jogo na Copa do Mundo de 1958 e foi eleito o melhor lateral-direito do torneio”, lembra o jornalista brasileiro Juca Kfouri
Da telefonia saía a voz distante de Oduvaldo Cozzi, como se estivesse envolvido num lençol sonoro. “Procuro Nacka Skoglund, o deus louro dos estádios escandinavos, e encontro o negro Djalma Santos, velho lobo de outras batalhas”, debitava o radialista, segundos depois de o Brasil se tornar campeão do mundo pela primeira vez, em 1958, na Suécia.
Faz este domingo, 23 de julho, exatamente 10 anos que o futebolista brasileiro morreu. Hospitalizado em Uberaba, onde vivia há uns anos, desapareceu aos 84 anos, na sequência de uma pneumonia grave.
“O Djalma Santos era tão bom, mas tão bom, que jogou só um jogo na Copa do Mundo de 1958 e foi eleito o melhor lateral-direito do torneio”, contextualiza Juca Kfouri, um histórico jornalista daquele país. “Era tão bom, mas tão bom, que há polémica no Brasil sobre se não era melhor do que o Carlos Alberto Torres”, acrescentou. Este último foi o lateral do Mundial de 1970, no México, o último conquistado por Pelé.
A tal Copa de 1958 – em que Garrincha, Didi e o moleque Pelé, de apenas 17 anos, vergaram à força do amor qualquer pedaço de relva nórdico –, revelou Ruy Castro na sua obra sobre o anjo das pernas tortas, contou com o alegado conhecimento científico para ajudar o selecionador a tomar decisões. Pelé e Garrincha não tiveram resultados muito favoráveis nesses relatórios sobre predisposição para competir e capacidade intelectual. Quem queremos enganar? Foram realmente insultuosos. E o futebolista negro sofreu mais do que qualquer outro.
Mondadori Portfolio
O lateral titular foi sempre Nílton de Sordi, até que este ficou indisponível para a final. E entrou Djalma Santos, um homem que colocava a fisicalidade e a técnica ao serviço do seu jogo, apimentado por um lançamento lateral que mais parecia uma catapulta humana, um resultado dos treinos com bolas medicinais. “Djalma Santos põe no seu arremesso lateral toda a paixão de um Cristo Negro”, escreveu em tempos idos, muito idos, Nelson Rodrigues, o mítico cronista e dramaturgo. Santos jogou realmente o último jogo e a coisa saiu-lhe tão bem que, para além da já mencionada distinção, ganhou aí, segundo o próprio, a convocatória para o seguinte Campeonato do Mundo, no Chile, em 1962, quando já contava com 33 anos.
O mais difícil não foi ganhar a Copa, contou numa entrevista à TV Cultura, mas sim chegar ao Brasil. Só imaginavam, depois de arquivarem o tal complexo de vira-lata, tão badalado por Nelson Rodrigues, como estaria o país e as suas cidades. Depois deu escala em Lisboa, onde visitaram os estádios da Luz e Alvalade, lá chegaram ao Rio de Janeiro. “Via mulher, homem, criança, era espectacular. É uma imagem que você não perde, não sai da sua cabeça.”
“O Djalma Santos é lembrado como um lateral de muita qualidade técnica, de bom passe, bom cruzamento, boa visão de jogo, o que caracterizava os laterais brasileiros, porque todos tinham grande poderio técnico, tomavam decisões interessantes, jogavam muito bem com a bola nos pés”, explica Leonardo Miranda, jornalista do “Globo Esporte”.
E continuou: “Em termos de tática, ele não era o lateral de apoio [direto ao ponta, ou extremo], segurava um pouco mais o posicionamento e às vezes, principalmente na seleção, era usado como esse apoio, para cruzar a bola. Não era um lateral que fazia o que Júnior e o Carlos Alberto Torres faziam, de querer ir para dentro, era mais de cumprir na linha defensiva, mas com grande qualidade técnica.”
Keystone
O futebol não lhe esteve sempre debaixo da pele. Ainda por cima não tinha sossego devido a uma bronquite asmática violenta. Garoto, com meros 12 anos, tentava dormir ao lado da janela para “procurar ar”. Os aviões e a aeronáutica, sim, eram o maior desejo, ia seguir as pisadas do pai, militar. Um acidente terrível afetou-lhe a mão e essa ideia foi arrumada para canto. Frustrado e chateado, foi aí que se dedicou definitivamente ao futebol. Os testes em alguns clubes não eram compatíveis com a labuta de sapateiro, o ganha-pão enquanto anónimo, mas certa vez, num destino que estava escrito quem sabe nos astros, nos signos, nos búzios, teve a possibilidade de ir tentar a sorte no Portuguesa dos Desporto. “Bem-vindo ao futebol, Djalma Santos”, sussuraram os livros de história ainda com as páginas em branco.
Este homem, natural de São Paulo, nunca foi expulso ao longo da carreira que terminou aos 42 anos e com passagens por Portuguesa, Palmeiras e Atlético Paranaense, mais 114 jogos pela seleção brasileira (é o único, a par de Pelé, com um jogo como titular em quatro Mundiais). Perguntaram-lhe se ficou a dever alguma coisa à carreira. “Não, disputei quatro Copas, ganhei duas [1958, 1962], perdi duas [1954, 1966 – ficou no banco contra Portugal], empatei, até logo, saí limpo, né? Nem devendo, nem ganhando”, gargalhou malandramente na entrevista à TV Cultura. Até logo? Génio. “Joguei 16 anos na seleção brasileira, entre 1952 e 1968, fui reserva, titular, voltei a reserva, titular, mas sempre dentro daquela batalha com os laterais direitos… Eram todos meus amigos.”
A humanidade desta pessoa é exuberante. A sua senhora, Mercedes, não adorava os jogos que ele teimava em manter ao domingo. “É o meu gang de velhinhos. Ainda tem de aturar 10 anos, deixa isso para lá”, atirou assim secamente. Nessa altura, já com uma idade avançada, dava treinos diariamente a meninos e isso encantava-o, olhava para eles como se fossem seus filhos. Queria muito dar-lhes alguma estrutura e disciplina, mas principalmente que vivessem o jogo com diversão. Afinal, era o que Garrincha fazia, “o Charlie Chaplin do futebol”, queria palhaçada, queria divertir-se”. Amém.
Num artigo do “Globo”, o jornalista João Máximo resumiu a figura que até começou como defesa central: “Excecional condição atlética, com o seu jeito de jogar de cabeça erguida, a forma implacável de marcar o adversário sem tocá-lo, a inteligência e, temperando tudo isso, o amor à camisa que vestia, pouco importa de que equipa fosse”. A camisola que usou na final de 1958 foi guardada como se fosse o tesouro mais especial que algum dia teve por perto.