Ciclismo

Numa das vitórias mais sujas da carreira, Tadej Pogacar fez da Strade Bianche um certificado da sua monstruosidade

Numa das vitórias mais sujas da carreira, Tadej Pogacar fez da Strade Bianche um certificado da sua monstruosidade
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Tingindo o límpido equipamento branco com poeira e sangue, Tadej Pogacar tornou-se no primeiro ciclista a ganhar o quase-monumento em anos consecutivos. Desta vez, a experiência foi bastante diferente do solilóquio de 80 quilómetros de 2024. O campeão do mundo caiu, recuperou, trocou de bicicleta e ainda foi capaz de aniquilar a perseverança de Thomas Pidcock

O ombro raspado, os vestígios de erva e a película de pó foram consequências carnais do acidente que o vitimou a menos de 50 quilómetros do final. Tadej Pogacar, que tem como estratégia normal dizimar adversários sem grande comiseração, teve que raciocinar um pouco mais, não confiar nos impulsos e esperar que, no momento certo, os resquícios de vitalidade não lhe falhassem. Poucas dúvidas tínhamos de que é um ser sobrenatural, mas ainda bem que vimos o monstro regenerar as feridas para termos a certeza.

Parece que Michelangelo deixou um pincel mal lavado por cima da Toscana e escorreram pingos brancos sobre a região. Os percursos de gravilha clara alastram-se pelo meio das vistas campestres que ladeiam povoações de figurino medieval, um chamariz a feitos históricos.

Tim de Waele

Pogacar começou o seu magnificente ano de 2024 a vencer em Siena. O ataque a 80 quilómetros da Piazza del Campo apresentou a brutalidade das intenções que tinha para a temporada. Foi a primeira de 58 corridas e a primeira de 25 vitórias na temporada em que infetou o pelotão com uma epidemia de impotência.

Este ano, para agradar ao patrão, competiu na Volta aos Emirados onde ganhou, mas sobretudo divertiu-se. A primeira grande data da agenda do esloveno era a Strade Bianche e os seus 16 setores (81,7 quilómetros) de gravilha.

Cúmplices da ambição de Pogacar, os companheiros da UAE Emirates trataram de deixar o pelotão em grainhas. Esmiuçado que estava o conglomerado, sobrou quem nunca perdeu de vista o campeão do mundo. Thomas Pidcock era um lobo solitário na dianteira. O britânico protagonizou uma mudança surpreendente, deixando a Ineos Grenadiers para se juntar a uma equipa da segunda divisão do ciclismo mundial, a Q36.5, na qual iria ter tanto palco quanto desejasse, ainda que sem grande suporte coletivo.

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Pidcock lançou o ataque que filtrou os mais capazes. Seguiram-no Pogacar e Connor Swift. O rasto de poeira impossível de despistar erguia-se na cauda do grupo. No entanto, com tanto sterrato, foi numa zona de alcatrão – poluída por vestígios de gravilha – que Pogacar cometeu literalmente um deslize. Caindo sobre o lado esquerdo, mas com a inércia a conduzir-lhe o corpo para a direita, surgiu sentado num tufo de erva fora da estrada. Alheio aos ferimentos, trocou de bicicleta e perseguiu o oportunista Pidcock. Em menos de cinco quilómetros estavam juntos de novo.

A Via Santa Caterina, empinado acesso à Piazza del Campo, começava a ser apontado como o ponto em que possivelmente os ritmos de Pogacar e Pidcock iam descordar. O líder da UAE Emirates não esperou tanto. A sensivelmente 18 quilómetros, como se as mazelas fossem um adereço que escolheu levar para a corrida, Pogacar separou-se e seguiu numa marcha gloriosa, mais curta do que a do ano passado, e fez da Strade Bianche de novo um bastião da sua monstruosidade, neste caso, por culpa da resiliência.

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