No dia em que os incêndios e as sirenes interromperam a Volta, a impiedosa Senhora da Graça pôs a amarela em Artem Nych
TIAGO PETINGA
Devido ao incêndio que devorava a Serra do Alvão, a quarta etapa da Volta esteve mais de uma hora suspensa e obrigou o pelotão a desviar caminho, em Vila Real, rumo à Senhora da Graça. Depois de partilharem estranha com ambulâncias e camiões de bombeiros, os ciclistas tiveram que atacar a subida mais temida da prova por outro caminho. Quando o fizeram, ganhou o sul-africano Byron Munton e a camisola amarela passou para o russo Artem Nych. O português Lucas Lopes foi o 4.º mais rápido a escalar a mais temível subida da prova
Cedo houve cinco atrevidos fugitivos, cedo descolados do pelotão, entre os quais o americano aventureiro Caleb Classen, pelos vistos refeito do esforço da véspera ou pelo menos a transbordar de vontade porque já estivera na fuga de sábado, mas discorrer sobre eles, ou acerca do grupo de três ciclistas que os perseguiu até faltarem mais ou menos uns 50 quilómetros, seria um exercício a roçar a redundância, a ver a futilidade não me muito longe.
A razão estaria, em circunstâncias normais, na imperatriz de cada Volta a Portugal.
Etapa maior da Grandíssima, a Senhora da Graça usurparia sempre todas as atenções com a sua espera estática, no lugar do costume, para vislumbrar a colheita de 2025 dos audazes que a iam visitar, formiguinhas em cima de duas rodas a trepá-la. Teve de esperar um pouco mais e olhar de esguelha para outros caminhos: pouco antes das 16h, à passagem por Vila Real, a etapa foi neutralizada, termo mais técnico para suspensa, devido ao incêndio de Sirarelhos que ameaçava as estradas por onde a rota da etapa previa passar.
Mais de 200 operacionais lutavam contra o fogo quando se abanaram bandeiras vermelhas e os ciclistas tiveram que parar. A caminho de Mondim de Basto já não passariam pela Serra do Alvão, onde o seu verde era ameaçado por laranja incandescente.
Significou que as chamas retiraram à jornada uma contagem de primeira categoria, acrescentando maior ênfase à Senhora da Graça. Ficou ainda mais singela a senhora de granito para os senhores de pedais. A etapa parou ao quilómetro 132, a tragédia fogosa concedeu descanso, refresco e confraternização aos homens, poupou-lhes uma subida. Chefes de equipa e comissários da corrida conversaram com cara séria nas ruas de Vila Real, os atletas procuraram o abrigo de sombra. O céu enegrecia com o fumo a envolver o horizonte, os ouvidos tremiam com o som das hélices dos helicópteros urgentes a irem deitar água sobre as catástrofes.
Uns 20 minutos após a paragem, os ciclistas regressaram aos selins, pés nos pedais, retomaram a movida rumo ao local onde a etapa seria retomada. Apesar de sorrisos ocasionais nas tertúlias que trocavam entre eles, pouco demorou a serem relembrados da severidade do que estava em causa, ao terem de se espremer à direita da estrada, mais do que uma vez, para ambulâncias e camiões dos bombeiros os ultrapassarem. Iam velozes, com sirenes ligadas, acudir ao tanto que se perde nos incêndios, iam tentar que se perdesse um bocadinho menos.
Os ciclistas ganhariam cerca de mais uma hora montados nas bicicletas, sob o sol e envoltos no calor, pelo desvio forçado. “Isto não é bom para ninguém, especialmente para as pessoas que habitam aqui”, lamentou Rubén Plaza, diretor da Israel Premier Tech Academy Pedalador, em conversa ambulante com a RTP.
Pedalador de muitas Voltas no seu tempo, Vidal Fitas, hoje diretor da AP Hotels & Resorts-Tavira-Farense, lembrou ao mesmo microfone que“uma tragédia não se sobrepõe ao espetáculo desportivo, isso é a menor das preocupações de toda a gente”, antes de falar sobre as consequências para os atletas enquanto conduzia a carrinha da equipa. Essas seriam descobertas mais adiante.
TIAGO PETINGA
O tempo tinha 17 horas e nove minutos quando a etapa se retomou. Faltavam 43 quilómetros para a Senhora da Graça. Em faseados pirolitos zarparam primeiro os cinco fugitivos, cronometrou-se o quão atrasados zarpariam, de seguida, os três perseguidores e o mesmo para só depois o pelotão os imitar, com as devidas diferenças que havia aquando da suspensão da etapa.
Devolvida à estranhada, a Volta flanqueou a chamuscada Serra do Alvão e os seus desceram ao sopé da Senhora da Graça a velocidades que chegaram a roçar os 80 km/h, vertiginosos em direção a onde a inclinação funcionaria no seu desfavor. Em Mondim de Basto, uma catrefada de gente ruidosa abeirada do alcatrão boavindou-os com o alento que precisavam para o ataque à senhora maior da Volta.
Naqueles 10 derradeiros quilómetros ascendentes repletos de carros, tendas e geleiras cheias, ladeados por gente com pouca roupa que oferecia garrafas de água aos desafiadores da inclinação ou as despejava sobre os seus corpos, as caras sôfregas surgiram. Com seis quilómetros em falta o pelotão estava esquartejado pela subida, corpos perdidos em esforço a serem engolidos pelo ritmo que impunham os guerreiros da Anicolor / Tien 21 que resistiam por Artem Nych, chefe de fila que pretendiam apoiar.
O russo atacou a quatro quilómetros do cume, na sua ronda seguiu Jesús Peña e quando o pequeno grupo engoliu o esforço isolado contra o sacrifício de Francisco Peñuela, que há muito seguia sozinho na frente, viria a força de Byron Munton. O paciente sul-africano esperou pelo seu momento para golpear no pedal os convivas da subida, foi-se embora, era a vez do em tempos campeão de contrarrelógio do seu país dar um safanão por entre as tendas, os fãs aos berros, os tresloucados a correrem estrada acima para puxarem pelos lesados da gravidade.
TIAGO PETINGA
Já dentro do quilómetro final, o ciclista do Clube Desportivo Feirense tirava o traseiro do selim, não permitiu que Artem Nych, o campeão em título da Volta, tivesse melhor do que vê-lo ali tão perto. Quando o homem da África do Sul alcançou os quase mil metros nem uma pitada de energia teve para uma centelha de celebração, nada, nem um milímetro de sorriso. A Senhora da Graça não lhe deixou nada no tanque - nenhum dos 10, 15, 20 ou outros ciclistas que logo o sucederam teve reação mais expansiva. O Monte Farinha não reserva piedade para quem seja.
Em altitude superior ao fumo, às chamas e aos bombeiros que ainda os combatiam, a Volta conheceu novo líder. A licra amarela saiu do corpo de Pau Martí para vestir o de Artem Nych, terceiro na etapa atrás também de Jesús Peña. O melhor português foi Lucas Lopes, quarto classificado a 18 segundos da façanha de Munton. Tiago Antunes foi o outro (7.º) entre os dez primeiros.
Ambos os ciclistas que cresceram a admirar quem se fazia à madame lá de cima do monte ficam, também, como os melhores portugueses na tabela geral, Lucas é 5.º e Tiago o 6.º, com Emanuel Duarte em 9.º e Pedro Pinto como o 10.º de uma ordem que a Senhora da Graça baralhou, alcoviteira como é nisto de trocar as voltas à Volta: atrás do líder Artem Nych fica Byron Munton, a oito segundos, e Jesús Peña a 12.
Custou muito ao pelotão chegar lá. Uma prova, se mais faltassem: o ainda camisola amarela, Pau Martí, só conheceria a rainha da Volta quase oito minutos após a chegada do mais rápido. E a provar que o fulcral não são as rodas, as pedaladas e as bicicletas com que humanos continuam a desafiar esta senhora, o vencedor Munton, que tem uma irmã a recuperar de um atropelamento, fez questão de o dizer:
“Quero dedicar a vitória aos homens e mulheres que estão a dedicar a vida ao combate aos incêndios.”