Do frio da Sibéria para a dupla glória no calor de Portugal: Artem Nych volta a conquistar a Volta
TIAGO PETINGA
Repetindo o êxito de 2024, o russo da Anicolor/Tien 21 confirmou, no contrarrelógio final, o triunfo na Grandíssima. Rafael Reis ganhou a etapa que terminou à frente do Mosteiro dos Jerónimos, num dia de contrastes em Belém
Kemerovo é distante, fica na Sibéria, na longa Sibéria. Lá as temperaturas no inverno já superaram os 40°C negativos, andando, em média, na casa dos 20°C abaixo de zero. Tudo isto principia um texto de ciclismo porque é de Kemerovo que vem Artem Nych, o novo dominador da Volta a Portugal.
Vencedor em 2024, o russo repetiu vitória amarelada em 2025. Foi um êxito sem repelões ou esticões, sempre no controlo, confiante e sereno na Senhora da Graça, na Torre, no Montejunto.
Nych, do alto dos seus 1,95 metros, pedalou nos 16,7 quilómetros do contrarrelógio final, com partida e chegada à Praça do Império, ao seu estilo. Regular, sem arrasar. Foi segundo na meta, a 15 segundos do companheiro Rafael Reis. Terminou entre os cinco primeiros em sete dos 11 dias de competição, ainda que sem nunca erguer os braços em triunfo.
Nas contas da geral, Byron Munton, o sul-africano da Feirense-Beeceler, conseguiu roubar o mais baixo lugar do pódio a Jesús David Peña, o colombiano da APHotels & Resorts/Tavira/SC Farense que desceu a 4.º. O 5.º foi Tiago Antunes, da Efapel Cycling, o melhor português à geral.
TIAGO PETINGA
A tarde de verão lisboeta apresentava-se abafada, ainda que não com os níveis de temperatura de alguns dos últimos dias. O sol não brilhava resplandecente, havia uma certa camada de pó no ar, um toque cinzento que tem sido costumeiro na capital. O calor tinha um toque tropical, desconfortável.
A luz sobre o Mosteiro dos Jerónimos não era propriamente clara, era menos brilhante, mais triste. As horas antes do começo do desfile dos corredores foram de interessantes contrastes em Belém: turistas fazendo longas filas para entrar em monumentos eram o pano de fundo da caravana, uns parecendo olhar a Volta curiosos, outros indiferentes. "Há aqui uma prova qualquer de bicicletas, nem sei bem o que é", dizia ao telefone uma trabalhadora do café em frente aos Jerónimos
Um pouco mais distante da Praça do Império parecia desenhar-se um encontro de culturas. Nas ruas calmas do Restelo, nas avenidas que sobem desde o alto até perto do Tejo, os camiões das equipas estacionavam à frente das vivendas da classe alta da cidade. Mecânicos em afinações quebravam o silêncio do bairro, uma zona não muito habituada a este folclore. Entre paletes de água e ventoinhas que refrescavam quem fazia aquecimentos em bicicletas estáticas, carros de preço considerável tentavam entrar nas casas com jardins.
A Volta, que o ano passado visitou Marvila, este ano terminou na ponta oposta — geográfica e simbolicamente — de Lisboa, como que manifestando o seu carácter interclassista. Foi entre os diferentes graus de interesse que havia em redor da Praça do Império, do aplauso de uns ao incómodo de outros por verem um aparato que não aparecia no Google Maps quando planearam a viagem, que se decidiu a 86.ª edição da Grandíssima.
O desfile individual dos corredores não foi tão extenso como noutras ocasiões. O pelotão da Volta, já originalmente reduzido, chegou com menos de 100 ciclistas a Lisboa. O engripado Iuri Leitão, que abandonou antes da conclusão, foi um dos que, ao longo do dia, procurou as sombras dos jardins da Praça do Império, sendo reconhecido pelas pessoas para fotografias como mais nenhum outro protagonistas das bicicletas.
A competição chegou à derradeira tirada apenas com dois vencedores portugueses. Rafael Reis não falhou ao seu encontro com os prólogos, Hugo Nunes surpreendeu em Bragança. Pelo segundo ano seguido, o pódio foi totalmente estrangeiro, uma ausência de portugueses entre os três primeiros em edições consecutivas que não se via desde 2010, no auge do domínio espanhol, quando três nuestros hermanos subiram ao desejado palanque.
Para fechar uma Volta sem muito protagonismo nacional, o especialista na luta contra o tempo colocou a bandeira portuguesa em glória, desenhando um dia perfeito para a Anicolor/Tien 21. Rafael Reis foi o mais rápido, chegando às 11 vitórias na Grandíssima na carreira. São sete prólogos, dois contrarrelógios e duas tiradas em linha.
A 86.ª edição da Volta a Portugal concluiu entalada entre os Jerónimos e o Tejo. Numa fase de transição e reflexão no ciclismo nacional, com nova liderança na federação e o contrato de concessão da organização à Podium a entrar na reta final, muito se fala em "refletir" e "pensar o que se quer para o futuro" entre o pelotão. Veremos se o desejo se torna realidade ou se as intenções perder-se-ão entre o suor das tardes de agosto.