Vuelta. No monte dos vendavais, João Almeida teve instinto de sobrevivência. Faltou o de matador
Tim de Waele
Quando se esperava que fosse ele a tomar a iniciativa, João Almeida perdeu o contacto com Jonas Vingegaard na subida ao Alto de El Morredero. Ainda assim, num dia de sofrimento, o líder da UAE conseguiu recuperar. Numa das últimas hipóteses para anular o atraso que tem na classificação geral, o português viu a vantagem do camisola vermelha aumentar para os 50 segundos. Giulio Pellizzari venceu a etapa 17
A largura da estrada tostava as bicicletas entre as rochas e uma ribanceira. No meio do sofrimento causado pela tentativa de convencer as rodas a treparem os escorregas invertidos, alguns até prefeririam ter que escolher entre a espada e a parede. João Almeida foi um desses casos.
Quem escapava ao funil era filtrado pela pendente que obnubilou as pedaladas de tantos. Rodeados pelas montanhas cheias de cicatrizes dos incêndios, os ciclistas subiam até ao topo do monte dos vendavais, onde as rajadas eram de 22 km/h, confiando no site da organização. 48 segundos, numa grande volta, é a diferença entre tirar o tempo ao pára-choques de um carro ou ao respaldo do seu reboque. João Almeida tinha que fazer algo para a anular. Não conseguiu e, para piorar, saiu a 50’’ do camisola vermelha, Jonas Vingegaard.
O Alto de El Morredero (9,7 %, 8,8 km) é uma daquelas subidas mentirosas, que mesmo antes de se começar a percorrer já está a ser percorrida. Previamente ao início oficial da rampa, os ciclistas iam bebericando a altimetria introdutória ao segmento em que teriam toda a liberdade para se despegarem uns dos outros.
Apesar de ter pedais para andar, a fuga não vingou como na véspera. O ajuntamento de gente conhecida por se deixar levar por esses caminhos, como Antonio Tiberi ou Harold Tejada, foi apanhado a 12 km. Aliás, nunca escaparam substancialmente ao radar da Visma. Os líderes da perseguição sustiveram a diferença (1:50) e o grupo da frente foi engolido antes da fase decisiva, entregando aos candidatos à classificação geral a luta pela etapa.
Dario Belingheri
Ivo Oliveira foi o primeiro elemento da UAE, desta vez sem a avareza de colocar alguém na fuga, a perfurar o vento. Num ápice, tornou o grupo numa zona VIP de acesso limitado a quem vinha para a festa. A Red Bull, a querer colocar Jai Hindley no pódio, também ajudou.
As movimentações do australiano para destronar Thomas Pidcock (não conseguiu) levaram o quebranto João Almeida a perder terreno a cerca de 6 km. Jonas Vingegaard, que teve dois pulmões – Sepp Kuss e Bem Tulett – junto dele durante um tempo considerável, guardava ligeiramente mais oxigénio. A energia que o português usou para anular o espaço, faltou-lhe para atacar. Giulio Pellizzari (Red Bull) passou pelas fendas do vento e disparou para a vitória na etapa. Os de trás rendiam-se à forte brisa. João Almeida não teve instinto matador, apenas de sobrevivência.
Por mais atómica que seja a diferença para Vingegaard, esta vai subsistindo, não seca. O sonho ainda está vivo, mas está menos convicto do que antes aquele que defende a candidatura de João Almeida à camisola vermelha. A classificação geral ainda pode ser agitada em dois momentos: na etapa 18, na quinta-feira, um contrarrelógio em Valladolid, e na etapa 20, com chegada à Bola del Mundo. Eficácia precisa-se.