Tadej Pogačar, o melhor do mundo, quiçá da Europa: esloveno junta título continental à camisola arco-íris
Billy Ceusters
Uma semana depois do título mundial, chegou o europeu. E de novo a atacar desde longe, deixando todos os rivais sem resposta. O canibalismo de Tadej Pogačar não tem limites e a época ainda nem acabou. Remco Evenepoel foi prata e o luso-descendente Paul Seixas, de 19 anos, conquistou o bronze
O filme parece uma daquelas projeções num museu, que vão passando em loop dias, meses a fio, mas uma novidade para quem por ali passa pela primeira vez. Tadej Pogačar a atacar, a dezenas e dezenas de quilómetros da meta, para sacar mais uma vitória, uma medalha, uma camisola. Vimos a fita há uma semana nos Mundiais, na mesma prova, no ano anterior, tinha sido a mesmíssima coisa: o esloveno a desembaraçar-se muito cedo de companhia, rumando ao sol sozinho, como um solista de uma orquestra que se esfalfa, sem conseguir, para o acompanhar.
Só o que o filme nunca é igual, é sempre distinto, como distintas são as capacidades deste ciclista extraordinário. Vale títulos diferentes, um engordar cada vez mais obeso de um CV não tarda mais extenso que o Padrinho II. Há uma semana, Pogačar foi campeão do mundo pela segunda vez consecutiva. Agora, junta à camisola arco-íris uma outra inédita, mas que, na verdade, não irá usar: a de campeão europeu de estrada, no percurso acidentado de Guilherand-Granges, no centro-sul de França.
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Diz-se por brincadeira, quando se quer exagerar ironicamente o feito de alguém, que é “o melhor do mundo, quiçá da Europa”. Com Pogačar, diga-se, não há qualquer exagero ou ironia. Tem graça que a distinção de campeão mundial chegue antes de um Europeu tantas vezes olhado de lado pelos melhores, mas assim é Pogačar: o ciclista que tornou o canibalismo legal, um triturador de adversários, seja qual for a prova, seja qual for o adversário.
Este domingo, uma semana depois de destroçar rivais no Monte Kigali, no Ruanda, fez o mesmo num Europeu onde esteve a nata da nata do ciclismo, mais até do que nos Mundiais. A Pogačar e Remco Evenepoel juntaram-se Jonas Vingegaard e João Almeida, ausentes dos Mundiais depois de terem partilhado o pódio, em primeiro e segundo lugares, da Vuelta. A nenhum deles correu particularmente bem a prova, diga-se, já que ambos nem chegaram ao fim - Rui Costa e Tiago Antunes também desistiram e António Morgado nem começou a prova, com problemas gastrointestinais.
Como que farto de perder na estrada para Pogačar (no contrarrelógio é outra história), Evenepoel mandatou a equipa belga para atacar a corrida desde bem cedo. O endurecido ritmo estilhaçaria a corrida, de facto - João Almeida foi uma das vítimas, descolando a 90 quilómetros da meta -, mas não quebrou o homem que pretendiam matar de esforço.
O esloveno respondeu da forma que bem conhecemos. Mesmo sem colegas para ajudar - na verdade, por causa disso -, atacou a 75 quilómetros da meta, até com requintes de sadismo, deixando para trás Remco Evenepoel precisamente num pedaço de asfalto pejado de mensagens de apoio ao belga. Atacar para não ser atacado, o ataque como melhor defesa.
Daí para a frente, a prova foi um longuíssimo solo de guitarra numa opera rock n’ roll, com Pogačar voando no sobe e desce do percurso, enquanto atrás não houve entendimento suficiente para seguir o quatro vezes vencedor do Tour. Uma vantagem de 30 segundos transformou-se rapidamente no dobro, impossível de alcançar.
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Evenepoel seguiu com a companhia de Juan Ayuso, de Christian Scaroni e do prodígio luso-francês Paul Seixas, mas entre todos imperou a desconfiança e a marcação homem a homem. O belga cansou-se e a faltarem 38 quilómetros empreendeu uma busca solitária pela prata, a mesma medalha conquistada há uma semana em Kigali, como se o ciclismo se tivesse tornado, de repente, numa inevitabilidade - chegou a 31 segundos de Pogačar, que nos últimos quilómetros já seguia em modo passeio, oferencendo bidões a quem o apoiava na estrada. Atacando na derradeira dificuldade, Paul Seixas garantiu, aos 19 anos, a medalha de bronze para a seleção da casa. Vencedor da Volta a França do Futuro, o miúdo de Lyon, com avô português, confirma-se como uma das esperanças da modalidade.
Só desde 2016 os Europeus abriram as portas aos ciclistas de elite e daí para cá têm lutado pela relevância, num calendário cheio de voltas, clássicas, monumentos. Tadej Pogačar chegou para lhe dar a importância devida, guardando-lhe um espacinho no seu palmarés dourado. Paradoxalmente, por ser campeão mundial, Pogačar não irá luzir as estrelas da bandeira europeia no peito, mas os Europeus já ganharam.
Para o esloveno foi a 106 vitória na carreira, mais uma feita de uma superioridade incomparável, juntando assim o título europeu de estrada ao mundial, à Volta a França, Critério do Dauphiné, Liège-Bastogne-Liège, Flèche Wallonne, Volta à Flandres, Strade Bianche e a Volta aos Emirados. E na próxima semana há Volta à Lombardia, onde vence há quatro edições consecutivas. Até cansa.