Como o vento, surgiu sem aviso. Eduardo Quaresma antecipou-se ao avançado de azul, ao vento dos outros, à história que parecia estar contra ele. Depois, fez uma tabela com Hidemasa Morita, fluente nessa linguagem belíssima do futebol. O rapaz que só tinha uns quantos minutos nesta temporada, chamado para substituir um tal de Sebastián Coates, levantou a cabeça e com a canhota meteu a bola no segundo poste, onde Viktor Gyökeres meteu a testa, para o 2-0.
Os colegas foram a correr para abraçar e convocar o amor das gentes para o benjamim questionado, a razão das sobrancelhas levantadas uma hora antes do clássico começar. E ele chorou, chorou como o menino que é, como o bom menino da casa que é, o sonhador, o menino que sentiu a pressão de ser antes de tempo quem ainda não era, que pode ser, que será, sabe-se lá. Chorou de alegria, chorou ao libertar a tensão. Alívio. Mas o árbitro, chamado pelos colegas, foi ao VAR ver as imagens que dificilmente comprovaram uma falta do defesa no momento em que passou por João Mário em corrida, depois da tabela com Morita, o senhor pausa. Doloroso ver uma história de amor assim rasgada, mas ficam as sensações. E o segundo golo chegou mesmo, mais tarde, por Pedro Gonçalves, mas já lá vamos.
Como o arranque deste texto já destapou, a surpresa maior deste clássico, que colocava frente a frente dois concorrentes pela liderança da Liga, foi a titularidade de Eduardo Quaresma (sairia tocado ou arruinado fisicamente aos 61’ e Amorim, na conferência de imprensa, cobraria mais jogos assim ao futebolista). Coates estava indisponível e o segredo ficou bem guardado até bem perto do apito inicial. O defesa, de 21 anos e com apenas três presenças como suplente utilizado esta época, fez uma primeira parte histórica, maldiniana, se quiserem alinhar no exagero. Secou de uma forma elegante e precisa Galeno, perdido perante a glória do jovem adversário.
O FC Porto voltou a ser quem tem sido este ano, com dúvidas quanto ao que fazer com a bola. Os criativos, que não são assim tantos, têm problemas para receber a bola em situações vantajosas, mas também para dar seguimento à jogada. Taremi e Evanilson, uma dupla assombrosa, não teve muito jogo. Mesmo no segmento da agressividade, os leões foram mais leões. E a bola também os preferiu, com a coragem de Diomande e Gonçalo Inácio a merecer uma estátua. Houve paciência e valentia para jogar desde o guarda-redes, Antonio Adán, mas, quando foi preciso (e quando não foi preciso e foi conveniente), lançaram-se bolas longas e venenosas para o futebolista autossuficiente Gyokeres, uma pérola com pernas de mamute e coração de escriba romântico. As transições pareciam quase sempre prometedoras, quando o espaço era descoberto, mas foi-se pecando no último passe.
Pepe, de 40 anos e com 10 deles ao serviço do Real Madrid (com três Champions pelo meio), teve talvez das noites mais difíceis da carreira. E tudo graças ao sueco, que aos 12’ o ultrapassou com facilidade, embora com felicidade também, e bateu Diogo Costa, quem sabe mal colocado. Décimo golo na Liga para Gyökeres, o ex-Coventry que tem o futuro imenso escrito nas estrelas e que ao longo dos 90 minutos serviu os colegas com a generosidade que marca os grandes homens: fez a assistência para o golo de Pedro Gonçalves, na segunda parte, e voltou a isolar um ou outro companheiro até ao final. No golo de Pote (que festejou como Gyökeres), o nórdico foi lançado por Geny Catamo, a fazer o corredor direito, que no início da jogada fez a sua finta característica, típica de canhoto virtuoso.
O meio-campo do FC Porto não aparecia, os defesas também não apresentavam capacidade para jogar e fazer jogar. Não havia ligação. Pouco futebol. Alan Varela não pegava na bola. Stephen Eustáquio ia-se mostrando e andava à bulha, com a sua dignidade inatacável, contra Hjulmand e Morita (uma dupla que mete fisicalidade e qualidade no jogo), mas os sportinguistas estavam melhor. Alvalade gostava do que via e Rúben Amorim, que não vencia um clássico ou dérbi contra FC Porto e Benfica há 10 jogos, lá imaginava que a sua história estava a mudar. A certa altura levantou exuberantemente os braços a pedir mais decibéis ao verde povo.
O jogo, que teve momentos mui delirantes e caóticos, sobretudo até à meia hora (para miséria dos treinadores obcecados pelo controlo), ficaria muito mais fácil para o Sporting quando Pepe, completamente superado por Gyokeres durante o jogo e já amarelado, foi expulso por uma imprudência com o braço no rosto de Matheus Reis, que ficou com o lábio a sangrar. O intervalo, ainda assim, não chegou sem uma flagrante oportunidade para os visitantes: Galeno testou Adán, que respondeu bem e evitou a aterragem de fantasmas desavindos para os da casa.
Na segunda parte, o Porto até entrou com mais bola e habitando durante mais tempo o meio-campo rival. Já se sabe, jogando bem ou mal, nunca se pode dar por acabado um jogo contra o FC Porto de Sérgio Conceição antes de tempo. Já nos derradeiros minutos, ouviram-se “olés”, com o 2-0 no marcador, e isso parece sempre imprudente contra esta gente que exibe um dragão no peito. Mas a expulsão de Pepe, que também foi expulso no clássico contra o Benfica, afogou a reação e o orgulho portistas. Que estranha é essa postura, supostamente admirada por aqueles que batem no peito perante a adversidade, por parte de uma lenda do clube e da seleção portuguesa. Quando Eduardo Quaresma nasceu, Pepe já enchia os relvados com a farda do Marítimo.
E o Sporting, à boleia do futebol e da disponibilidade de uma besta impecavelmente penteada, foi ameaçando somar golos ao festim. Diomande, Marcus Edwards, depois Pote uma e outra vez (continua infeliz, apesar do golo), enfim. A goleada não pareceu um cenário improvável, mas o resultado não sairia do 2-0, por mérito do desafinanço dos lisboetas mas também por mais uma exibição quase imaculada de Diogo Costa, e garantia, depois da derrota em Guimarães, o regresso do Sporting à liderança isolada da Liga.
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