Toni Kroos voltou a jogar futebol pela Alemanha. E a Alemanha, mais do que ganhar, fartou-se de jogar
Estes pés são de Toni Kroos, que tinha exatamente estas chuteiras calçadas no último jogo que fizera pela seleção, há três anos.
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Durante muito, muito tempo, a Alemanha era uma inevitabilidade que jogava, controlava e prevalecia. Nos últimos três anos, essa Alemanha mirrou, perdida nas suas falências e desgarrada em campo. Também havia três desde que Toni Kroos não jogava pela seleção, mas ele decidiu voltar, este sábado, contra a poderosa França. Resultado: a Alemanha foi como no antigamente, dominadora e confiante, ele mostrou como se pode mandar num jogo nunca errando no que é simples e os germânicos venceram (0-2) como já não se via faz tempo
Esta Alemanha não é a Alemanha que nos habituámos a temer, aquela Alemanha inevitável por ser implacável, a Alemanha que era uma mera questão de tempo, essa seleção que podia ver o adversário controlar as operações na posse de bola, até atrever-se a ter mais oportunidades de golo e parecer estar a um atinar com a baliza de vergar essa tal Alemanha que sempre arranjava forma de prevalecer, tão calma e impávida, e imune, sobretudo imperturbável por benfeitorias alheias, durante décadas teve essa qualidade soldada no seu âmago ao ponto de um jogador nascido noutras latitudes ter forjado um cliché ao que é a Alemanha no futebol graças a uma frase feliz que disse, com razão, que no fim ganha a Alemanha.
A Alemanha durante muito tempo era o que foi por ora neste texto, uma insistente repetição a atazanar o juízo num qualquer campo de futebol apenas com o ocasional percalço, em 2000 um deles, quando um hat-trick de Sérgio Conceição recordou os germânicos que são falíveis por serem humanos e os eliminou de um Europeu na fase de grupos. Eles reinventaram a forma de ensinarem miudagem a lidar com uma bola, das reboot, deram tempo ao tempo e em 2014 estavam a ganhar um Mundial com uma humilhação aos anfitriões brasileiros incluída. Gabou-se, então, a Alemanha, mas, pouco depois, a seleção que no fim ganhava sempre aprendeu o que era perder.
Saiu dos dois últimos Campeonatos do Mundo apequenada e eliminada na fase de grupos, die schande, a vergonha que a seleção alemã sentiu urgiu-a, tinha de mudar, só que a mudança, desta feita, vai custando. Pensou uma solução com Hansi Flick e com ele perdeu mais do que ganhou, depois recorreu a Julian Nagelsmann e tinha perdido mais do que vencido - entre ambos, foram seis derrotas em 11 jogos feitos em 2023 - na antecâmara da visita a Lyon, uma viagem espinhosa pelo anfitrião que iria ter, a França que em tempos recentes vai ameaçando ser a repetição futebolística de seleções. Não seria o ideal tentar voltar à vida frente à equipa do país com uma final de Europeu em 2016, um Mundial conquistado em 2018, outra final quatro anos volvidos e um mesmo treinador há 12 anos.
E demorar sete segundos a obliterar um trauma em gestação é um ato que dificilmente poderia ser mais exemplificativo de uma engenharia alemã a funcionar.
Portanto, a seleção moribunda teve a bola de saída em Lyon, no meio do campo, Haverty tocou-a para trás e foi logo o segundo passe do jogo a lançar Florian Wirtz no espaço vazio da equipa francesa, surpreendida pelo repentismo e castigada com um rasgo de inspiração da genica do jovem do Bayer Leverkusen, que deu um cá-vai-disto monumental para marcar o primeiro golo. Tão cedo, de rompante e com cabal intenção, a Alemanha meteu-se a ganhar com um remate ao fim de dois passes e a peça a ligar uma engrenagem que teria fiabilidade germânica durante a hora e meia seguinte esteve no saudoso nome cuja ausência da seleção coincidiu com as agruras recentes.
Genialmente malandro a olhar para o seu campo enquanto tinha um olho na metade francesa para, num ápice, tornear o corpo e lançar o tal passe em Wirtz, o pé que tocou essa bola foi de Toni Kroos, três anos depois voltou a ser o dele, o médio que reapareceu com as mesmas chuteiras calçados, o mesmo cabelo loiro e estático, a mesma calma perante qualquer berbicacho temporário que o jogo momentaneamente lhe ofereça, ali a orquestrar com três ou quatro toques na bola seguidos de cada vez, nunca mais do que isso, o estilo de jogo germânico. Porque se a Alemanha tinha uma forma de jogar antes de Kroos é esta que teve com ele de volta.
Uma receção e um passe de cada vez, curto ou longo, depressa ou a demorar o seu tempo, viu-se uma seleção submissa às botas de Toni Kroos, hoje com os braços mais tatuados como única marca da passagem dos anos, agora está com 34 e parece domar o relógio, qualquer bola que lhe foi endereçada em Lyon virou uma impossibilidade para os perdidos franceses, que tiveram a sua vertigem e pressa vergadas à insignificância exceto entre os 20 e os 30 minutos, quando o seu orgulho lhes acalentou uma reação. O capitão Mbappé esteve perto de marcar duas vezes, o ambidestro Dembelé que parte rins também rematou, às tantas encostaram a Alemanha ao sofrimento que tem pautado os seus últimos anos.
Mas, antes e depois disso, o jogo foi alemão, ostensivamente alemão, dominado pela centena de vezes que Toni Kroos terá tocado na bola e feito rolar a andadura de passes e mais passes atrás de passes com que os germânicos foram a um lado do campo, depois ao outro e regressaram ao mesmo se tal fosse preciso para cavarem o espaço que pretendiam para atacar a baliza com a paciência apreciada pelo médio do Real Madrid.
O golo aos sete segundos (o mais rápido da história da seleção da Alemanha) do tímido, mas de técnica fina, Florian Wirtz, antecipou-se à cobra ziguezagueante com bola que é Jamal Musiala, um talento para marcar uma era, à certeza que não perde bolas deslocada para lateral direito que é Joshua Kimmich e aos laboriosos trabalhos de Andrich e até de Gündongan, outro artista do passe empurrado para um papel de número 10 onde correu, pressionou, lutou e se movimentou sem a bola, sacrificando a sua essência, ambos depositados num meio-campo reformatado para existirem em função do maestro a quem Nagelsmann confiou a orquestra findo que está agora o seu período sabático.
Se isto pareceu uma eulogia a um só homem é porque o é, até onde uma exibição coletiva tão usurpadora de atenções se pode explicar por um jogador.
Na segunda parte, quando Musiala, Wirtz e Havertz deram no último terço do campo as corridas e desmarcações à supremacia que a Alemanha já exercia nos dois terços prévios de relva, os germânicos fizeram mais um golo pelo avançado do Arsenal que não o é, mas até parecia ser, tal a fluência do jogo germânico que não encravava por nada. O jogo ficaria 0-2 e vários outros dos 15 remates dos visitantes, contra os nove da França que congeminou três nos derradeiros cinco minutos, ficaram perto de aumentar o inesperado golpeio dado numa irrelevante França, em que Mbappé pareceu não existir e Tchouaméni, Rabiot e Zäire-Emery pareciam aprendizes meiocampistas.
A passear-se por entre bolsos de espaço, mestre na arte de descortinar forma de receber a bola virado de frente para todo o campo, Toni Kroos esteve em Lyon a viver o seu renascimento, deixando uma lição de como é possível ser magistral sem truques e malabarismos vistosos, mas no domínio da constância, do nunca errar na feitura das coisas simples do futebol. Assistimos à die renaissance assente na simplicidade da receção seguida de um passe de quem deu 143 toques na bola e a fez seguir viagem 128 vezes, acertando 121 delas. Há muito, muito tempo que as estatísticas são apetrechos desnecessários em Toni Kroos, um médio total, senhor do tempo e do espaço que é melhor compreendido ao ser visto em ação, a ser ele em campo, não ao serem-lhe lidos os números que nunca explicarão toda a história.
Quando foi substituído, aos 90 minutos, com o seu ar desinteressado e taciturno, abandonou o jogo como se nada fosse, apenas com a cara de mais um dia completo no escritório. A França, então já vergada, reagiu pelas mãos de uns quantos adeptos sentados nas filas da bancada mais próximas do relvado, que se prestaram a aplaudir o jogador alemão. Um simples gesto a reconhecer a simplicidade de um génio.
A Alemanha voltou a ser Alemanha porque Toni Kroos e não só e pode não ter sido em Lyon que a seleção se reencontrou. Há talento de sobra, existe uma espinha a poder ser extraída e aproveitada na seleção da única equipa das cinco grandes ligas que ainda não perdeu esta época - o central Jonathan Tah, o médio Robert Andrich e o atacante Florian Wirtz, todos titulares, vieram do imparável Bayer Leverkusen de Xabi Alonso - e um selecionador jovem e arrojado em Julian Nagelsmann que já provou ser dado a congeminar maneira de colocar uma equipa a render. O país será o anfitrião do Europeu no verão e, agora, também já tem o médio que mais capaz é de tomar as rédeas de um jogo se lhe derem a bola.Toni Kroos voltou a jogar pela Alemanha e a Alemanha voltou a jogar.