Não houve tocata, mas a fuga de Francisco Conceição desatou o nó que Portugal tinha atado a si próprio
Alex Livesey
Vitória suada de Portugal por 2-1 frente à Chéquia na estreia no Euro 2024, num jogo em que a seleção nacional recusou, durante demasiado tempo, jogar aquilo que sabe. Foi já nos descontos que Francisco Conceição, acabado de chegar ao jogo, garantiu a entrada a ganhar, mas ficam pontos de interrogação para o que aí vem
Há uma estátua muito curiosa no centro de Leipzig, a de Johann Sebastian Bach, junto à igreja de São Tomás, onde dirigiu o coro local. Um dos bolsos do compositor está saído, vazio, só pano - ou, neste caso, cobre. Diz-se por cá que é porque Bach tinha muitos filhos e, por isso, sempre muito pouco dinheiro para alimentar tantas bocas. Nunca pensaríamos tal coisa a ouvir, por exemplo, a “Tocata e Fuga em Ré Menor”, uma das obras intemporais de Bach, que aqui morreu em 1750.
Esta noite, na Red Bull Arena, não houve tocatas, peças que normalmente exigem virtuosos de um instrumento - Vitinha terá sido quem mais se aproximou. Porque não foi um bom jogo de Portugal contra a Chéquia. Mas a vitória chegou já para lá dos 90’, com a fuga de Francisco Conceição em direção à baliza, num golo construído por dois jogadores que tinham acabado de entrar — Pedro Neto ganhou a bola e fez o passe. Um golpe de asa, talvez também de sorte, que dá a Portugal uma vitória por 2-1, sofrida, talvez até pouco merecida. Ficam lições para tirar deste jogo, em que Portugal atou um nó a si próprio e só no esforço o conseguiu desatar. Mas três pontos já cá estão. Segue-se a Turquia, galvanizada pela vitória frente à Geórgia.
Faltou quase sempre jogo interior a Portugal, com Bruno Fernandes e Bernardo Silva desaparecidos nos primeiros minutos e, nesta fase, o jogo teimosamente a pender para a esquerda, onde Roberto Martínez colocou Nuno Mendes como central canhoto, Cancelo na lateral (mas a aparecer quase sempre pelo meio) e Rafael Leão junto à linha para desequilibrar. O talento do avançado do AC Milan conhecemos todos, mas nem sempre as decisões acompanham tamanha habilidade. Leão foi perdendo discernimento com o passar dos minutos. Depois do amarelo que recebeu (e bem) por simulação, mais ainda.
Alex Livesey
Alex Livesey
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A chuva apareceu aos 10 minutos, criando novo momento de adaptação. A Chéquia, de quem se esperava pressão alta e coragem, fechou-se com seis junto à sua baliza. Quando tentava sair, Portugal permitia-lhe pouco, é verdade — Vitinha muito seguro na reação —, mas faltavam ideias com a bola nos pés. Na frustração da falta de espaços, Bruno Fernandes rematou de longe, antes de uma primeira transição ofensiva de Portugal deixar Leão perto do golo — o passe de Bruno, lançado por Bernardo a meio-campo, saiu um niquinho antes do tempo.
Os primeiros 20 minutos foram, portanto, estranhos, com duas equipas a jogar um jogo que não é o seu. Tudo melhorou com o regresso do mundo dos falecidos do jogo interior português. Vitinha já estava a ser um dos melhores e aumentou o torque, rodopiando por entre os médios checos naquele seu baixo centro de gravidade, com a bola a nunca abandonar-lhe aquele pé. A linha de defesa portuguesa já jogava perto do meio-campo. Com meia-hora no relógio, Bruno Fernandes encontrou a desmarcação de Ronaldo, com Stanek a fechar bem a baliza. O capitão de Portugal estaria em fora de jogo, mas era uma primeira amostra do que a seleção nacional deveria tentar, atacar o espaço entrelinhas, poucos toques para desestabilizar o adversário. Minutos depois, Cristiano, de calcanhar, lançou Vitinha em direção à baliza, mas o remate do médio do PSG encontraria um mar de pernas checo. Pouco depois, apareceria o primeiro lance de algum perigo da Chéquia, num cruzamento de Coufal que não levou visto bom da cabeça de Schick.
No final da 1.ª parte, Portugal tinha 73% de posse.
O mapa do tesouro estava mais ou menos decifrado. A Chéquia pressionava com menos vontade do que se esperaria e o perigo de Portugal vinha pelo meio. Mas faltou sempre atacar os espaços, não desejar sempre ardentemente a bola no pé. E num momento de apatia geral de Portugal, que entrou mal na 2.ª parte, a Chéquia, até então com produção atacante nula, marcaria num remate colocado de Lukas Provod à entrada da área, numa daquelas segundas bolas que a seleção nacional sabia serem proibidas de oferecer ao adversário.
Ian MacNicol
Ian MacNicol
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A reação chegou com a entrada imediata de Jota e Inácio, para os lugares de Leão e Dalot. O avançado esteve sempre muito em jogo, poucas vezes bem. Do lateral, pouco se viu. O empate demoraria apenas sete minutos, mas Portugal pode agradecer a infelicidade checa. Bernardo cruzou para o poste mais afastado, Nuno Mendes ganhou de cabeça e Stanek defendeu a bola em direção às pernas de Robin Hranác. Um autogolo funesto, é sempre um azar, e para os checos apareceria em péssima altura, quando podiam colocar mais pressão emocional sobre Portugal.
Daí até final, Portugal nunca se encontrou verdadeiramente. Ainda marcou por Jota aos 87’, mas Ronaldo, que antes havia rematado ao poste, estava adiantado. As ideias, essas, abandonaram o jogo, voltaram os cruzamentos da 1.ª parte e o jogo interior, a pedir Félix como pão para a boca, regressou ao reino dos falecidos. A Chéquia, em transição, não esteve assim tão longe de novo golo, antes e depois do golo da vitória, naquela entrada de rompante de Francisco Conceição pelo meio, rato a aproveitar também o erro do adversário. O esforço final de Conceição deu a recompensa a um jogador que não desiste e que pode dar importantes tónicos à equipa em momentos desesperados. Que estreia em grandes competições. Hranác voltou a estar no lance, agora a cair na altura do cruzamento de Neto, e fica indelevelmente ligado à reviravolta de Portugal.
Face aos acontecimentos de Leipzig, cidade de compositores, escritores, de complexa história e agora também no coração de Francisco Conceição, é seguro dizer que em Dortmund, contra a Turquia, teremos um Portugal diferente. É possível, também, que os espaços sejam outros. Mas ser candidato exige um pouco mais. Ficou o aviso.