França e Países Baixos deram o primeiro jogo sem golos ao Europeu. E foi sonolento e pachorrento para confirmar uma teoria
Clive Mason/Getty
Quem diria que uma primeira parte que arrancou tão expedita, quase com pressa para que o jogo tivesse vários golos, desaguasse num 0-0 entre França e Países Baixos. Sem Mbappé, que ficou no banco depois de passear-se com a sua máscara no relvado, as duas seleções abrandaram na segunda parte, contentes por darem ao Euro 2024 o seu primeiro jogo sem golos. E confirmarem a vénia que tem de ser dada às seleções às quais se atribuíam menos expetativas
Kylian Mbappé é o único de pernas tapadas no relvado, um contrassenso na paisagem, caísse no estádio um desinformado adepto e visse o mais estrelado, mediático, afamado jogador em exibição no França-Países Baixos com as pernas tapadas por um justo fato de treino e julgaria ser uma heresia, como não, então o futebol usa uma bola que é usada por pontapés que por sua vez fazem uso de pernas que usam as mensagens transmitidas por um cérebro que é usuário de uma cabeça para se alojar. E olhámos para Mbappé a recriar-se casualmente no campo antes de o jogo começar com os restantes suplentes sabendo quem ele era por ser já muito reconhecível.
Porque o capitão da seleção francesa teve já a badalada máscara a tapar-lhe mais de meia cara, sobretudo o fraturado nariz que ainda estará a ir ao sítio para se refazer da pancada sofrida dias antes, ou seja, o suposto e à partida melhor jogador deste Europeu chegava ao jogo de cartaz do seu grupo sem poder jogar, com as pernas e a cara tapada, quiçá a prejudicar, mesmo que ao de leve, o realinhamento dos ossos da sua penca só com a vibração e os saltinhos causados por andar a dar uns toques na bola.
Imagine-se se fosse a sprintar freneticamente como costuma e tal e qual se viu Jeremie Frimpong, logo no arranque, para dar o primeiro aviso à baliza gaulesa, ou fazer um gesto forte e repentino de remate como o que Antoine Griezmann dispara a bola para Bart Verbruggen a defender com uma palmada.
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O prometedor jogo começou a um ritmo que seria deglutinado por Mbappé, organizado e de encaixes das peças, mas ambas as seleções a terem um ponto rebuçado nas jogadas em que acionaram a pressa, aceleravam perto da baliza e causavam o desequilíbrio a atacarem ferozmente o espaço, assim ameaçou Cody Gakpo, de fora para dentro, com um remate que forçou o guarda-redes Maignan a esticar-se na relva. E depois, na mesma relva se atrapalhou Griezmann na pequena área, servido por Rabiot apenas para encostar um suposto golo fácil que o neto de um homem de Paços de Ferreira dificultou.
Pouco tardou Marcus Thuram, lançado numa diagonal pela direita, a atirar um remate à rede lateral da baliza feito a toda a velocidade, tanta que a partida pareceu não ter mais para dar. Pelos 20 minutos o ritmo amainou, não ao ponto da insipiência, mas, e especialmente a França, deixou de ter ou quis prolongar com tanto afinco a sua superioridade a meio-campo que aprisionou os Países Baixos num espartilho de indecisão.
Com Tchouaméni junto de Kanté e Rabiot, mais Griezmann a pairar por aquelas zonas como lhe desse na real gana, a seleção de Deschamps tinha um homem livre no miolo em todas as jogadas porque Xavi Simmons, o suposto terceiro médio neerlandês, saltava mais na pressão aos centrais do que se preocupava em conter o espaço nas costas. As operações eram comandadas pelos franceses, o fastio em retirarem disso proveito alastrou-se para a segunda parte.
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Os laranjas sem a fartura de sumo de outros tempos, desprovidos até do potencial de suco que poderiam ter neste Europeu - ficaram sem os lesionados Frenkie de Jong, Marten de Roon e Teun Koopmeiners, os três prováveis titulares -, pouco existiam no meio-campo alheio, mesmo perante alguma passividade. A França tinha mais bola, dispunha dos jogadores para ferir com ela e preferia atuar ao ralenti. Apenas Marcus Thuram, em sítios cheios de pernas, corpos e ladrões, era o único que tentava acelerar além do redundante Ousmane Dembélé, pela direita, mais velocista em linha reta do que o futebolista dos pequenos engodos em forma de finta.
Neste jogar aquém das possibilidades, pachorrento para respeitar a teoria vigente deste Europeu de que as partidas mais entusiasmantes e rocambolescas não são as que têm as ditas seleções maiores envolvidas (uma vénia a Eslováquia, Geórgia, Ucrânia, Turquia, Roménia e Albânia), os franceses deixaram-se arriscar uma vez no passe, trocando vários seguidos entre linhas e por dentro até soltarem o escorregadio Griezmann, sem chuteiras calçadas mas com sacos de plástico atados nos pés, porque falharia, novamente na pequena área, um remate aparentemente fácil.
Efémera essa emoção, não tanto quanto a que prevaleceu nos minutos seguintes a Xavi Simmons, na ressaca de um remate bloqueado na outra área, emendou a bola para ela entrar na baliza com um pormenor: Dumfries estava mesmo ao lado de Mike Maignan, que ficou no resvés entre não ver o remate a partir e ir a tempo de esboçar a reação que não teve a análise do VAR deu correspondência ao braço que o guarda-redes esticou para o ar, em protesto pelo fora-de-jogo posicional que seria dado. Até essa decisão fabricada no entediante momento que as modernices vieram implantar no futebol providenciou um ponto de interesse ao encontro.
O resto do tempo, mais ou menos uns vinte minutos, procrastinou com a satisfação de França e Países Baixos de levarem um empate de Leipzig, garante para ambos de um lugar nos oitavos de final. Nem a largada dos panzers para o relvado deu agitação. Olivier Giroud ainda tentou servir Griezmann de cabeça, numa manha de pivô de área em que o francês é pródigo ao jogar de costas voltadas à baliza. Wout Weghourst limitou-se a correr atrás de tipos mais rápidos, ágeis e capazes do que o neerlandês, desembarcado numa equipa já sem meios para discutir a posse de bola. O bocejo também era imune a tanques.
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No epitáfio do primeiro 0-0 deste Europeu que está longe de se poder queixar dos golos, repleto de jogos-montanha-russa, ficará escrito que prometeu bastante já em campo e plantou uma desfeita ainda maior, uma constatação diametralmente oposta ao que tem sido oferecido por encontros entre nações que temos, no frágil papel onde rasuramos as nossas expectativas, como pisa-papéis, meros afazeres a riscar no calendário até podermos ver as seleções matulonas a presentearem-nos com o espetáculo que só elas podem montar.
Alguma relação haverá entre o calculismo e a quantidade de talento disponível, quanto maior for o segundo às vezes parece que mais gordo será o primeiro, como sobretudo demonstrou a França, uma seleção sentada em cima de tanto ouro que também se deve cansar ao jogar de uma forma que não lhe puxa o lustro. Estranho, quando sabemos porque temos visto e comprovado como albaneses, eslovenos, romenos, ucranianos, eslovacos e georgianos se revigoram no risco empolgante com que têm lançado nos seus jogos.
Salvaram-se, ao menos, as pernas e a cara e o nariz de Kylian Mbappé.