Pareceu um daqueles treinos em que uma equipa mostra à outra o que se deve fazer. Mais do que um jogo, foi uma exibição, um passear de virtudes contra um circo de defeitos, como se estivessem em campo não duas equipas, mas duas entidades de natureza oposta.
De um lado, a convicção, os processos consolidados, a máquina bem trabalhada. Saídas de pressão, circulação de bola, nuances táticas, confiança. Muita confiança. Lição 1: aqui está uma equipa.
Do outro, a dúvida, a hesitação. Começar o Europeu de uma forma, com vários criativos. Passar depois para uma linha de cinco, voltar à linha de quatro, mas num onze que parecia uma manta de retalhos. Apostar em El Shaarawy em 2024, fazer a aposta durar 45 minutos, tirá-lo ao intervalo. Não defender bem, não atacar bem. Não era uma equipa, era uma não estrutura, a negação do coletivo.
A Europa terá nova campeã. Itália, a vencedora do passado torneio continental, caiu em Berlim, que em 2006 foi território de consagração mundial para a azzurra. Agora foi como uma sala de aulas, na qual os transalpinos foram aprender de um adversário muito superior.
Adversário? Talvez seja expressão mal aplicada, porque não estiveram propriamente duas equipas em campo, não foi um verdadeiro jogo. Neste arraso de resultado simpático para Itália, Suíça ganhou 2-0.
Nos primeiros 70 minutos, o único lance de verdadeiro perigo para os homens de Spalletti foi um corte mal medido de Schär, que quase fazia um auto-golo. Sommer só fez uma defesa durante toda a quente tarde de Berlim. A Suíça fica à espera do vencedor do Inglaterra-Eslováquia.
A Suíça jogou como uma seleção que não quer desperdiçar o que sente ser “a oportunidade de uma vida”. Têm a melhor geração da história do país, campeões alemães, italianos e ingleses, e estão do lado mais favorável do quadro. E possuem uma engrenagem bem oleada, organizada.
Ver Xhaka no meio-campo é pensar que, mais do que uma extensão de Yakin no campo, ali está um verdadeiro treinador. Joga com os pés, pensa com a cabeça, gesticula com as mãos. Vai dando passos para a trás ou para a frente segundo seja necessário ajudar na saída de bola ou ter presença mais na frente.
A superioridade suíça manifestou-se desde cedo. Nos primeiros 35', havia 65% de posse para os helvéticos e 8-1 em remates. Donnarumma evitou um resultado mais pesado, começando a transformar-se no melhor italiano aos 25', quando evitou o golo de Embolo.
Aos 37', a arte da Suíça surgiu em forma coletiva. Perante a passividade azzurra, a equipa de Yakin atriu para ferir. Fez Itália sair da toca, convidou-a a avançar, circulou a bola pelos centrais. Akanji e Xhaka lideraram o feitiço até que…Vrum!
Velocidade. Bola na frente, Vargas recebe na ala, Freuler movimenta-se com rapidez para entrar na área. Remate, 1-0. Lição 2: Confiar em toda a estrutura, utilizar toda a equipa, ser paciente e venenoso.
Nas bancadas, Marco Materazzi, herói de 2006, autor do golo italiano na final contra a França, assistia com descrença. Nesta palestra num campo de futebol, neste pequeno show, a única equipa em campo esteve perto de aumentar a vantagem em cima do intervalo, quando Rieder obrigou Donnarumma a uma defesa apertada.
No primeiro tempo, Scamacca, o isolado ponta de lança italiano, só tocou sete vezes na bola. A Suíça teve 20 ações na área do adversário — perdão, do assistente à palestra, do aluno —, quatro vezes mais do que a Itália.
Spalletti, nas trocas e baldrocas que foi fazendo durante o Europeu, ia baralhando para voltar a dar, fazendo mudanças, parecendo um homem que vai juntando ingredientes a uma receita que não funciona. Para a segunda parte, lançou Zaccagni para o lugar de El Shaarawy.
Não funcionou, como não funcionaram as entradas de Retegui, Cambiasso, Pellegrini ou Frattesi. Sem equipa, é difícil defender um título.
A Suíça demorou escassos segundos para, depois do descanso, chegar ao 2-0. Depois da arte coletiva do 1-0, veio a individual.
Com os italianos a olhar, como estudantes atentos, calados, quietos e sossegados, a Suíça trocou a bola na face dos vestidos de azul. Vargas olhou então para a baliza e rematou em arco, numa pequena maravilha para confirmar a passagem aos quartos de final.
Lição 3: Quem se mantém fiel ao seu guião, seguindo-o, melhorando-o, extraindo o melhor dele, tem mais prémio do que quem vai improvisando, alterando. Do que quem não sabe, sequer, que guião tem.
Aos 50', um lance ajudou a resumir o futebol de Itália. Bastoni, sem soluções de passe, tentou colocar em Mancini, mas com demasiada força. A bola perdeu-se, Chiesa protestou com os companheiros, a Suíça recuperou a posse. E voltou à sua aula, circulando com calma, utilizando os centrais para oxigenar o jogo, tendo em Xhaka o coração que fazia tudo fluir pelas artérias da equipa. Da única equipa em campo.
Lição 4: Ser uma equipa.
Aos 74', Scamacca ainda acertou no poste, mas nunca houve um assomo de rebeldia italiana, uma hipótese de reviravolta. O jogo terminou com um remate de Chiesa que saiu pela linha final. A geração de ouro da Suíça, com os seus padrões, nuances e harmonias, está nos quartos de final do Europeu.
Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt