Crónica de Jogo

Quando esteve para aí virada, a França esmagou a Bélgica. E agora fica à espera de Portugal

Quando esteve para aí virada, a França esmagou a Bélgica. E agora fica à espera de Portugal
Stefan Matzke - sampics

A França começou cautelosa e sem correr riscos (como é costume), mas, quando chegou a segunda parte, por fim não se importou em dizer um adeus momentâneo à prudência (como é raro). Sem problemas em assumirem as superioridades que um plantel tão talentoso lhes dá, os franceses encostaram a também cautelosa Bélgica à área e ganharam (1-0) com mais um auto-golo. Estão nos quartos de final do Europeu - e com um encontro anunciado com Portugal, caso a seleção nacional lá chegue

Vinte e cinco minutos é tempo suficiente para a sonolência alastrar por um corpo e há jogos que têm o dom soporífero de nem precisarem de tanto para causarem letargia em quem os vê. Na soalheira Düsseldorf, uma fatia de campo ainda era iluminada pela razia dos raios solares que progressivamente abandonavam o relvado rumo à bancada, condenando adeptos na bancada à contra-luz com a inevitabilidade de estarem ali quietos durante a movimentação da Terra quando, finalmente, na partida se deu algo que resgatasse esta deriva de atenção para a forma como o Sol dava iluminação natural ao cenário.

Envolto no colete de forças da contenção, a partida, então, parava como que para providenciar uma ligeira arrelia a quem o joga, sinónimo de um esgar de entusiasmo para quem a ele assiste: houve uma falta perto da quina da área à esquerda, Kevin de Bruyne tomou a bola com o seu longo cabelo engelhado para trás e as suas chuteiras rosa, tirou um esquizofrénico cruzamento com laivos de remate que ainda desviou na cabeça de alguém que formava a barreira e Mike Maignan, o guarda-redes francês, ao ver a bola ressaltar mesmo à sua frente, deu-lhe um chuto de qualquer maneira. Não foi um perigo de meter medo ao susto, mas, por fim, algum rasgo surgia no jogo.

Maignan atirou aquele cambalacho das suas imediações como se fosse um estranho às artes da baliza, alguém empurrado para lá por amigos por ser quem tem menos jeito com uma bola. Defendeu como pôde ao invés de como devia segundo os manuais o que, num guarda-redes, apraz ver, porque livrou a Bélgica de sarilhos sem, porém, inocentar o jogo da tal sonolência a que a prudência de ambas as seleções o prendiam.

À exceção dos 10 minutos prévios aos jogadores irem descansar da falta de arrojo para o balneário, quando Kylian Mbappé lá se atreveu a fugir um pouco da esquerda, Antoine Griezmann atirou às urtigas a sua prisão à direita, como um extremo, vetado a de lá partir em vez de ser deixado a mandriar livremente pelas entre linhas, a França foi a redundância representada por uma seleção. Pareciam obrigados a trocas de bola em ‘u’, sem colocarem um passe no centro do campo, preferindo ir de um lateral ao outro pequenos passes cautelosos e prudentes e a olharem várias vezes para ambos os sentidos antes de atravessarem de uns pés para outros. Quando se afastaram um pouco dessa ideia, Tchouaméni rematou de longe um par de vezes.

O insonso jogo, até então, foi um depósito de conservadorismo. Cheios de teórica ameaça posta na frente, com Openda a atacar os espaços pelas costas de Lukaku para aproveitar uma fixação dos centrais franceses no corpulento avançado, ainda havia Ferreira-Carrasco e Doku a juntarem-se a partir das alas, quatro atacantes cuja coincidência cheirava a arrojo. Era um engano.

Com eles em campo, Kevin De Bruyne era puxado contra-intuitivamente para trás, levando à sua anormal aptidão de meter uma bola de futebol onde os olhos visualizam o centro de uma mira, tarefa que milhões atrás de milhões de humanos se frustram a entender que tal não é possível cada vez que jogam futebol, para longe dos últimos 30 metros do ataque onde se decidem as jogadas. Ao ser um médio para fazer companhia ao trator Onana, a Bélgica tinha-o demasiado afastado das condições ideais, e terrenos, onde pode ser genial e não apenas presente, um corpo a ser certinho nas ações.

Os remates à distância de Tchouméni (aos 40’ e 45’+1) foram, durante muito tempo, a fonte de entusiasmo num jogo enfadonho de tão preso à cautela.

Mbappé tapava a cara tapada pela máscara com o susto de levar com a bola no fraturado nariz quando esta era cortada por um adversário, escorregava ao aprontar uma finta e saltava para dar um toque de calcanhar de bailarino para uma inofensiva tabela a meio-campo. Doku mostrava aqui e ali o seu frenesim de dribles supersónicos, demasiadas vezes antes até da linha do meio-campo. Do mesmo lado do campo, via-se Jules Koundé, um central de ofício a quem pedem que seja lateral, que mal costuma atacar, a atacar bastante para aproveitar a pouca queda de Doku a afazeres defensivos. A primeira parte vestia-se como uma exposição de eventos estrambólicos.

DeFodi Images

Não era de todo esperado que a contida França de Didier Deschamps, finalista de dois dos últimos três grandes torneios de seleções por obra do conservadorismo pragmático do seu treinador, se transmutasse tanto na atitude com que regressou ao campo. Em vez de a graça irromper, à força, no meio do cinzentismo aplicado à abordagem da equipa às partidas por haver tanta gente talentosa a espernear para o fazer, a França retornou decidida a agitar o jogo pelo colarinho, definitivamente alterada face à postura inicial.

Aos poucos, os gauleses arrepiaram caminho rumo à sua versão que guardam para certos momentos, certos períodos dentro dos jogos em que os santos dos jogadores batem certo com os do treinador, todos se rendem à evidência de França ter uma profundidade de talento quase batoteira de levar a um Europeu e entram, por fim, em sintonia na intenção. Quando Kanté e Rabiot se dedicaram a ser médios para receberem a bola ao centro, por onde Griezmann espreitava nas sobras das desatenções dos belgas, e todos passaram a jogar com a intenção de ferir o adversário em vez de o adormecer no controlo, a França soltou o seu potencial.

E Mbappé entortou os olhos e os nervos a Castagne, o lateral do seu lado, porque Théo Hernández, antes e depois de se lançar na rasteira que cortou a única entrada na área da Bélgica com a bola controlada - De Bruyne lançou Ferreira-Carrasco, que tardou um segundo a rematar -, já surgia a acompanhar o homem da máscara em todas as jogadas em que os franceses empurraram os belgas para o seu último reduto, eles invadidos pelo talento supremo que apeteceu aos vice-campeões soltarem sem freios para verem no que dava.

Deu uma demonstração de virtudes constante, não só na multiplicação de combinações no ataque como na assunção, sem vergonhas, das superioridades na defesa: os centrais Saliba e Upamecano minimizaram o corpanzil de Lukaku em praticamente todas as vezes em que a Bélgica, sufocada lá atrás, colocou passes no avançado para que ele aguentasse a bola e desse tempo à equipa para o alcançar. Koundé ‘secou’ a ameaça dos dribles de Doku e ter o poderio físico e a capacidade de antecipação destes três foi a almofada na qual assentou a pujança com que a França se atirou para o ataque como raramente o tem feito.

Nunca foram particularmente geniais, de todo especialmente criativos a forçarem espaços em torno da área belga para onde até de Bruyne tinha de recuar, mesmo quando deixou de ser um médio (aos 63’, saiu Carrasco para entrar Mangala e depositar o capitão na frente de ataque). Porque a França, apetrechada até ao tutano de talento, coletivamente não se pauta pelo rasgo imprevisível dos seus: é sabido que as jogadas irão dar a Mbappé, na esquerda, para fintar e dar o último passe ou rematar, ou que Griezmann andará escondido no lado cego dos adversários para desbloquear combinações. Menos expectável é, perto da área, Kanté rasgar um passe em Kolo Muani - e menos ainda que o avançado, já dentro desse retângulo, tenha tempo e espaço para receber a bola, rodar e rematar.

Nesse último gesto, responsabilidade de Vertonghen e dos 37 anos do defesa central que foi lento a reagir ao acontecimento e quando despertou para o prejuízo esticou a perna que desviou do seu guarda-redes a bola batida por Kolo Muani. Foi apenas o terceiro golo de França neste Europeu, e o segundo auto-golo.

O esvaecer da luz da Bélgica precipitou-se na desatenção do mais velho representante da sua geração de ouro que neste torneio jogou os últimos fogachos. Esse brilho, no entanto, há muito que era cadente e as suas falências - De Bruyne à deriva e sem um papel definido, a especificidade de Lukaku demasiado separada dos extremos dribladores que abundam na equipa - foram esmagadas a partir do momento em que o adversário entendeu não fazer sentido prolongar o seu jogo ao ralenti.

Em frente, para os quartos de final, seguiu a França, mas sem que continue a dar sentido à enormidade de talento de que dispõe. A seleção de Dider Deschamps não brilha, nem sequer reluz assim tanto. Precisa é de quem a ordena lhe conceda soltura em campo como regra e não como resgate quando já não tem vagar para esperar que a precaução resolva as coisas.

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