Crónica de Jogo

Quem diz que nos jogos a eliminar não há eletricidade pode sempre ver como a Turquia afastou a Áustria

Quem diz que nos jogos a eliminar não há eletricidade pode sempre ver como a Turquia afastou a Áustria
Ralf Ibing - firo sportphoto

A animação do jogo pedia que os três golos não tivessem todos sido marcados de canto. Foi o que se arranjou e Demiral, o turco com passagem por Portugal, resolveu este elogio ao futebol bravio com um bis. A Turquia deixa a Áustria pelo caminho (2-1) e vai medir forças nos quartos de final contra os Países Baixos

Ainda há equipas que sabem que as balizas não precisam de ser dois elefantes na sala. Os dois monos de ferro especados nas extremidades do campo servem para levarem um aperto de mão à Marcelo Rebelo de Sousa, não para serem cumprimentados com um aceno à distância.

Na incessante procura de interagirem com as balizas, aos 30 segundos dos oitavos de final do Euro 2024, Áustria e Turquia já tinham levado a bola às duas áreas e aos 57’’ o marcador, que fez um bom aquecimento para entrar no ritmo assim que o cronómetro começou a contar, deu o primeiro sinal de vida.

Merih Demiral fez o golo mais rápido de sempre na fase a eliminar de um Europeu. O canto de Arda Güler tilintou em três defesas empenhados em evitar que entrasse diretamente na baliza. O central que passou por Portugal no início da carreira deu a verdadeira martelada no sino e chamou todos para os festejos.

Para a Áustria, jogar em Leipzig é um pedido aceite pelos pais para ir dormir a casa do melhor amigo. A cidade é o albergue do RB Leipzig, o irmão gémeo de outra nacionalidade do RB Salzburgo, que os comparacionistas dizem ser a família que inspira o estilo de jogo da seleção austríaca.

A equipa de Ralf Rangnick é certo que bateu com o nariz na porta, mas não ficou muito tempo a caturrar sobre o acidente. Christoph Baumgartner respondeu com um remate que passou a largura de um pneu de bicicleta ao lado. A demonstração de que a Áustria precisava de confiar nas pernas para andar. Não é assim tão complexo. É apenas esperar que algo cumpra a função para o que foi concebido. E sim, os austríacos também podiam esperar melhorias se igualassem o nível médio que apresentaram quando venceram o grupo D onde estavam França e Países Baixos.

A Turquia queria manter o caldo na tijela e acabar com a agitação. Barış Yılmaz, a cair sobre a direita – Arda Güler era o atacante mais centralizado, coordenadas que prejudicaram a sua intervenção no encontro – massacrava Mwene, lateral que acabaria por sair ao intervalo. Orkun Kökçü esteve de regresso à titularidade que só lhe tinha sido concedida na estreia dos turcos no Euro 2024. Não terá sido alheia à sorte do jogador do Benfica a ausência de Hakan Çalhanoğlu, devido a castigo, no meio-campo do 4x2x3x1 de Vincenzo Montella.

Stu Forster

A permanência dos movimentos verticais sem bola dos austríacos, aspeto em que Arnautović e Baumgartner foram constantes, pedia a presença de mais um isco ao qual os defesas turcos também tivessem que dar atenção. Ralf Rangnick lançou Michael Gregoritsch para empanturrar os esforços do setor recuado adversário. Baumgartner, o suposto número dez de costas guardadas por Seiwald e Sabitzer, passou a romper no sentido centro-direita. Arnautović passou a ter alguém ao seu lado, só a eficácia é que não lhe fez companhia.

Logo no começo da segunda parte, a Áustria lá encontrou ligação com Arnautović. Mert Günoko saiu-lhe aos pés para impedir o empate. Do outro lado, Merih Demiral já tinha demonstrado que reserva grande parte das mais-valias do seu reportório na agressividade no ataque ao jogo aéreo. Ao desviar um canto ao primeiro poste e fazer o 2-0, parecia que estava encontrada a machadada lenitiva para um resultado favorável aos turcos, mais conservadores com o passar dos minutos.

A pressão austríaca para tentar uma reviravolta hercúlea obrigou Vincenzo Montella a encarrilar mais um central na reta final. Acontece que, também através de pontapé de canto, Michael Gregoritsch apareceu numa solidão profunda ao segundo poste e reduziu. Aí sim, atacar deixou de ser politicamente correto para a Turquia.

RONNY HARTMANN

Não havia outra forma de terminar este elogio ao futebol bravio, ao futebol que refuta o axioma de que nos jogos a eliminar tem sempre que haver uma overdose de cautela para que o rigor tenha lugar à mesa, do que com duas oportunidades que se anularam entre si. Barış Yılmaz que, reza a lenda, ainda tem força para ir a correr para o hotel não conseguiu o terceiro golo numa jogada de transição. Então, quando Baumgartner, na resposta, cabeceou de cima para baixo e Mert Günoko voou majestosamente para segurar o apuramento, o vulcão de turcos no estádio quase entrou em erupção de nervos.

Aos jogadores de Vincenzo Montella, caídos no relvado após o silvo de Artur Soares Dias, correu tudo pelo melhor. Pela terceira vez na história, a Turquia avança para os quartos de final. Jogará com os Países Baixos, em Berlim. Argumentos não lhe faltam para darem seguimento a uma caminhada apenas manchada pela goleada sofrida contra Portugal no grupo F, onde foram segundos. Quem diria.

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