Crónica de Jogo

Um papagaio, uma expulsão e um desastre na Irlanda adiaram o Mundial a Portugal

Um papagaio, uma expulsão e um desastre na Irlanda adiaram o Mundial a Portugal
Liam McBurney - PA Images

Ganhando em Dublin, a seleção sabia que garantiria a qualificação para o Campeonato do Mundo. Sabíamos como não se falou de outra coisa nos últimos dias, agora falar-se-á da exibição passiva, previsível e anti-competitiva que Portugal lá deixou. Paciente a jogar o seu jogo, na retranca, a Irlanda ganhou, por 2-0. Um avançado pouco conhecido, Troy Parrott, marcou os dois golos. O mais famoso, Cristiano Ronaldo, foi expulso por agredir um adversário. Agora a seleção sabe que tem de ganhar à Arménia, no domingo

Já sabíamos que o tipo que chuta de longe com força, à bujarda e cá vai disto, o que barafusta a preceito por feitio, não por defeito, que olha bastante à frente e por isso tende a jogar muito para a frente, estava suspenso (era Bruno Fernandes). Sabíamos que Dublin ficaria com as sobras do apuramento que se falhou em Lisboa. Era igualmente sabido há muito que a cidade abeirada dos balcões dos pubs, sedenta por cerveja escura, não seria onde Roberto Martínez, um cultor do hábito, inventaria grande coisa na seleção nacional que reveste com uma capa de alergia à experimentação.

Sabíamos ainda que a míngua de talento da Irlanda a obrigaria a jogar como se apresentou, defendendo lá atrás, em bloco baixo, uma equipa recuada para perto da sua área e encostada à sua baliza com cinco defesas. Fechadinha em copas verdes, nem uma nesga de espaço a querer dar enquanto dava a iniciativa, a bola e necessariamente o risco a Portugal, que aceitou a mordomia desse conforto aparente no jogo. Por obrigação, seria sempre assim. E era impossível não saber que perante este plano, os irlandeses esperariam por brechas para atacarem rápido, com pressa, poucos passes e de forma direta.

Num cruzamento agarrado por Kelleher, o guarda-redes chutou logo a bola para Ogbene correr esbaforido lá longe e só João Neves o apanhar, já na área. Um passe que Gonçalo Inácio arriscou foi intercetado e rapidamente Finn Azaz foi posto a correr em direção à baliza de Diogo Costa, o descabido guardião português que pouco depois, ao receber um passe atrasado, deixou o avançado irlandês roubá-lo ao hesitar na escolha do que fazer à bola. A atrapalhação deu canto. Lá nas alturas onde os de verde encontram o seu conforto, Scales cabeceou ao segundo poste, nas costas de Félix, para o sorrateiro Troy Parrott (17’), escondido na molhada de corpos, desviar o golo.

Ficámos então a saber que a seleção nacional teria uma noite complicada, às vezes frustrante, mas, à maior, passiva e inerte.

O empolgado jogo, cheio de reverberações nas bancadas do estádio a ferver com cada carrinho de um homem da casa para cortar uma bola ou passe para a frente com o mais ligeiro semblante de um irlandês o poder alcançar, acentuou as suas tendências depois do golo. Portugal abusou da posse de bola, espremeu ainda mais o adversário contra à sua área. Eram 11 irlandeses comprimidos em 30 metros de campo, com o médio Rúben Neves improvisado, se a seleção tivesse a bola, a terceiro central, para com Vitinha dar uns primeiros passes limpos, mas com ambos a sobreporem-se, a pisarem os mesmos espaços e a empurrarem Inácio e Rúben Dias cada um para seu lado já na metade irlandesa.

Não se pode dizer que à seleção faltaram tentativas, ou remates. Seriam 15 até ao intervalo, mas apenas três acertados no alvo, um deles cheio de estilo de Vitinha, acrobata a dar uma tesourada em suspensão na bola e Kelleher, igual no apuro, esticar-se para evitar o golo. Esse pontapé aconteceu na ressaca de um cruzamento, de um corte e de uma carambola, trejeitos pouco bonitos. Foi assim que Portugal arranjou forma de ameaçar: Diogo Dalot por um par de vezes, e João Félix noutra, tiveram boas chances dentro da área após a bola andar a visitar várias capelinhas atabalhoadas de cortes. Fora isso, só João Neves ousou rematar de longe, sem assustar por aí além.

A genica com que a seleção iniciara a partida cedo se esfumou. Félix esgotou os seus pézinhos de lã por entre as armaduras de músculo que o travaram. Ronaldo estava sempre cercado. Vitinha corria muito com a bola para atrair a pressão sem que alguém lhe desse uma desmarcação no espaço, todos queria um passe no pé. Dalot era redundante a dar largura na esquerda, sabíamos todos que procurava só o pé direito e fácil era saber que do outro lado Portugal tinha o único capaz de desequilibrar em fintas, diabruras e algo divergente. Mas só João Cancelo não chegava.

Com a bola de que dispunha, a equipa de Roberto Martínez era vagarosa e sem ideias, a perder-se num vaivém de passes da esquerda para a direita, depois da direita de volta à espera, por fora do bloco paciente, e ciente, da Irlanda, que pode ter um estilo de jogo simples e prático, mas executa-o bem.

Niall Carson - PA Images

Por mais que o selecionador nacional tivesse dito saber como o adversário iria jogar, não soube preparar a equipa para o travar. Cada bola perdida não tardou a ser uma arrelia tremenda: os irlandeses lançavam um passe na frente, lançavam-se a correr nos quase 50 metros de campo aberto e os lançamentos longos encontravam sempre uma camisola verde. Uma diagonal de Ogbene, da direita para o centro, deixou-o em posição para rematar ao poste. Aos 45’, num pontapé de baliza cujo ressalto Portugal ficou a contemplar, Troy Parrott foi posto a correr e deixado, cheio de espaço, procurar o remate. Não foi difícil ao avançado que só tem o 't' a mais no inglês para papagaio e joga no AZ Alkmaar marcar o seu segundo golo.

Sem agressividade, sem competitividade, sem um tempo de reação aguçado, a seleção nacional era um hino à passividade em Dublin.

O Mundial que preencheu o falatório antes do jogo, repleto de perguntas e respostas sobre a iminente qualificação e a em breve meia-dúzia de presenças para Ronaldo, era, ao intervalo, uma badalada inevitabilidade forçada a ser adiada, mais uma vez.

Para tentar que assim não fosse, Martínez abdicou de Inácio para ter Renato Veiga e tirou o desequilibrador Cancelo (tinha um cartão amarelo), despindo a seleção do único capaz de agitar as coisas sozinho, colocando Nélson Semedo. Com tração à frente, nada. Mas Vitinha teve uma oportunidade flagrante, embora não acertasse em cheio na bola. Encafuado entre centrais ou a fugir da área para dar toques inócuos na bola, Ronaldo dispôs de um espacinho para rematar. Sobretudo, a seleção manteve a toada, crescendo apenas num aspeto: os constantes cruzamentos.

JOSE SENA GOULAO

Nada a seleção congeminou além de confiar a bola a Vitinha, esperar pelas direções do pequeno maestro e trocar passes inofensivos, de uma ala à outra, até alguém receber a bola nas imediações da área, dar-se um meio segundo para a mirar, por certo reparar na catrefada de irlandeses por lá espalhados e, mesmo assim, cruzar. Era a reincidência num abuso que em nada resultou além de cortes dos centrais da Irlanda. Nada era proveitoso, nada de novo se tentava, mas tudo acontecia, até os atos descabidos.

Na véspera, o treinador islandês da Irlanda espicaçara Portugal com uma pequena farpa, dizendo que Cristiano Ronaldo controlara o árbitro no jogo de Lisboa. Pois em Dublin não soube controlar a própria cabeça, ao agredir Dara O’Shea na área, aos 61’. Ao jogo agreste, às marcações cerradas, à incapacidade geral, o capitão deu uma resposta desmiolada. À 226ª internacionalização, foi expulso pela primeira vez. Saiu de campo a aplaudir o estádio e a dirigir, com uma mão, o gesto de quem fala muito ao técnico Heimir Hallgrímsson. Ronaldo jogou pouco. E Portugal ficou a penar, na sua pouquidão, durante quase meia-hora com 10 jogadores devido à cabeça quente do capitão - que pedira à equipa para a ter fria após o primeiro golo sofrido.

Martínez reagiu ao acentuar do descalabro inventando Rafael Leão, a gazela das fintas pela esquerda, como avançado, pondo-o em zonas centrais para facilitar a vida às marcações dos corpulentos centrais irlandeses, limitados de bola embora não a cumprir vigilâncias defensivas. Pareceram leões de fila a cerrar espaços. Francisco Trincão tão-pouco surtiu efeitos. Diz-se que as qualidades do indivíduo devem sujeitar-se ao bem geral. Em Dublin, a pobreza do coletivo português tornou irrelevante quem o selecionador colocou em campo, tão maus que foram todos os processos.

Com mais um em campo, a Irlanda não se desviou um milímetro do seu plano, manteve-se fechada, fileiras cerradas, à espera de Portugal e com Troy Parrott, Ogbene e Finn Azaz a postos a zarparem atrás de lançamentos diretos como fisgas com o elástico já puxado. Com 10, a seleção nacional continuou a ter a bola, a jogar com os centrais no campo irlandês, a rondar a área, a tirar cruzamentos aos pirolitos, a engordar as estatísticas inúteis que costumam ser subvertidas quando alguém se agarra a tudo para aligeirar as suas culpas. Acabou com mais de 700 passes feitos, 27 remates e 77% da bola. Mas isso não torna as escolhas inocentes.

Dois dos três pontapés perigosos que Portugal logrou ter na segunda parte (o outro coube a Rúben Neves) vieram de Gonçalo Ramos, o único ponta de lança nado e criado para o ser, que só entrou aos 78 minutos numa demonstração do quão contará na estima do treinador. Forçosamente terá que contar daqui por três dias, quando a seleção jogar no Estádio do Dragão, contra a Arménia, sem Ronaldo que sabemos ser intocável. De fora verá os restantes jogadores que, com ele, deixaram a provável pior exibição da era Martínez em Dublin, onde todos sabíamos que isto não eram favas contadas.

Agora sabemos que a seleção abanou sem atitude contra a Hungria em Lisboa, ruiu descaracterizada e anti-competitiva na capital da Irlanda e que tem uma terceira oportunidade para fechar, no Porto, a ida ao Mundial de 2026. Lá Portugal já terá Bruno Fernandes e os tantos apetrechos de talento de que dispõe, mesmo com Roberto Martínez a prezar fechar o grupo como se de um clube fosse, doseando com critério as vezes em que abre a porta a experimentar outras soluções a espreitar no fértil que o futebol português está.

Mas, não havendo uma boa agressividade em todos, umas antenas dos jogadores sintonizadas em como podem ser competitivos e uma estratégia pensada com acerto, a partir do banco, para ajudar a equipa nestes momentos de desvario, ficámos a saber o que se poderá passar. Foi a Irlanda que todos parecia saber como ia jogar que fez questão que soubéssemos.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt