Sem Ronaldo e vestido à Eusébio, Portugal divertiu-se a golear para finalmente garantir o Mundial
Jose Manuel Alvarez Rey
À terceira foi mesmo de ver. A seleção nacional goleou, por 9-1, a frágil Arménia no Estádio do Dragão para confortavelmente garantir, até que enfim, a presença no Campeonato do Mundo do próximo ano. Gonçalo Ramos teve o seu golo, Bruno Fernandes marcou um hat-trick e também João Neves, que deu ao jogo um golaço num livre que pôde bater por o capitão não estar. Quem inaugurou o marcador foi Renato Veiga, dono do número 13 que era de Eusébio da Silva Ferreira, o Rei que a seleção homenageou com uma camisola especial
O céu meio-soalheiro, meio cinzento a pairar sobre o Dragão quis condizer com o aparato recente da seleção. Ao escorregar em Lisboa e estatelar-se em Dublin, fez do Porto o palco para só à terceira tentativa, fizesse o suficiente por isso, garantir a ida ao Mundial que jogadores e treinador têm dito, em eco, quererem ganhar. Louvada por um tremendo talento per capita, Portugal adiou o bilhete para a última, como em tempos que se julgavam chutados para longe. Para dar um empurrãozinho, a força do simbolismo foi invocada.
Equipados com o preto da nova camisola da marca que calçou Eusébio da Silva Ferreira em 1966, quando deixou, em Inglaterra, nove golos na de longe melhor prestação de um jogador português em Mundiais, a homenagem na veste, exatos 60 anos após o “Rei” vencer a Bola de Ouro, pôs a seleção a invadir cedo a área da Arménia, onde Bruno Fernandes, rato a espreitar o espaço entre defesas, ver o seu remate a ser bloqueado ainda antes do estádio passar o minuto seguinte a aplaudir. Era tarde para vénias, esta dedicada a Jorge Costa, antigo número 2 do FC Porto e de Portugal.
Seria para estreias também. De início os arménios imitaram os irlandeses de dias antes, arregimentaram-se num bloco baixo, mais uma última linha com cinco jogadores colados à sua baliza. Retraídos na postura, entregaram o volante do jogo à seleção e puseram-se a jeito do que João Cancelo evidenciou, aos 7’, como dificuldade para quem se defende assim: ao recuperar uma bola, Erik Piloyan viu-se rodeado de jogadores portugueses e de arménios, eles colados a ele, sem darem uma opção de passe válida, e o lateral do Al Hilal antecipou-se para o roubar e sofrer uma falta à esquerda da área.
Soccrates Images
Lá foi Bruno Fernandes bater o livre e o esoterismo das coincidências aceitou o convite para se refastelar no Dragão. Em lugar que sugeria o cruzamento, o médio rematou à baliza, Henri Avagyan confiou no contrário, foi apanhado em contrapé e defendeu como pôde, para a frente, onde estava Renato Veiga para emendar de cabeça para golo. Era a estreia a marcar do defesa central, rapidamente abraçado pelos colegas. Nas suas costas o 13, número que era de Eusébio na seleção. Ele parecia estar mesmo a ajudar.
Sem esperanças mundialescas, os arménios abdicaram então da postura recuada. Se nada tinham a perder mais-valia deixarem ir as cautelas e fizeram as suas linhas avançar no campo. Passou a haver alguma pressão na construção das jogadas de Portugal, aqui e ali já marcavam ao homem na metade do campo nacional. Não provocou grandes incómodos à seleção, confortável a atrair adversários, tocar a bola, trocar passes curtos e ter gente a tabelar para ir avançando no relvado. Os desconfortos da seleção, a lembrar Dublin, viam-se mais sem a bola, na lenta reação à perda e a correr para trás caso não impedisse os primeiros passes da Arménia na zona onde o adversário recuperava a posse.
A passiva transição defensiva reviu-se quando os visitantes puderam jogar curto a partir de uma falta a seu favor, bem dentro do próprio meio-campo. Só quando a bola entrou no corredor direito a seleção despertou, tarde e atrasada. Cancelo acorreu à corrida de Kamo Hovhannisya, que se livrou do lateral, deitando-o à relva, com uma carga de ombro antes de cruzar e Spertsyan aproveitar a sonolência de Nélson Semedo a controlar a movimentação de quem tinha nas suas costas. A última linha portuguesa parecia adormecida. A Arménia empatava (18’), o Dragão sentiu um arrepio na espinha.
ESTELA SILVA
A tarde também haveria de ser sempre para este jogo ser extrapolado. Ausente Cristiano pela expulsão na Irlanda, esta hora e meia nada podia fazer contra o potencial de polarização. Os ronaldistas iriam estar atentos, prontos a escalpelizar a exibição de Portugal junto à baliza dos outros, ansiosos por criticar golos que não aparecessem; os alérgicos à dependência cativa no capitão e à sua manutenção religiosa entre os titulares iriam fazer figas por Gonçalo Ramos, irresponsável por esta luta: titular por não haver outro avançado, era mais uma ocasião para o homem do PSG ser julgado por comparação, arrastado para uma disputa entre barricadas que não pediu. Mas isto era dia para falar dos que estão.
E lá estava Ramos, logo após o golo arménio, a rematar na passada e contra o guardião um cruzamento de Rafael Leão. Depois, malandro e sorrateiro, lá se escondeu atrás dos centrais a antever o que Serobyan ia fazer. O descuidado atacante arménio atrasou um passe para o seu guarda-redes, o avançado português apareceu no caminho, fintou Avagyan e marcou (28’) sem grande esforço o seu oitavo golo pela seleção nacional em tão-só o mesmo número de jogos a titular (21, no total). A seleção descobrira o pedal do acelerador se não do seu jogo ofensivo, pelo menos do ritmo a que fazia as coisas.
Dois minutos passaram e Nélson Semedo, envolto na pressão alta portuguesa, roubou a bola numa tentativa de saída a jogar, fintou um adversário e passou a Vitinha, que solicitou o apoio de Bruno Fernandes para a ideia do médio não se concretizar, mas a sua ação ter sucesso: o toque de calcanhar foi intercetado, a bola ficou à mercê da chegada embalada de João Neves, cheio de estilo a rematar o 3-1 na passada. Com Cancelo a partir da esquerda para jogar mais no centro, como um médio extra, deixando Leão na largura, a seleção tinha um pouco mais imprevisibilidade com a bola do que em Dublin. Os golos e as chances que criara até então, contudo, tinham vindo do seu trabalho a pressionar alto, não da perícia a pensar as jogadas.
Com a vantagem mais gorda, a seleção tentou mudar isso. Bruno inventaria, bem longe da área, um passe que encontrou Bernardo Silva perto do segundo poste para uma oportunidade flagrante. Leão ia para cima de adversários. João Neves afastava-se mais de Vitinha, devoto às entrelinhas, a dar opção de passe entre médios e defesas. Mas o prolongar o suspiro de Portugal não viria daí. Num livre frontal à beira da área, não estando presente o batedor por decreto de qualquer bola que pare e fique com a baliza à vista, houve oportunidade para outros pés mostrarem a aptidão. Avançou o direito de João Neves para açoitar a bola e deixar um golaço (42’) no Dragão.
Gualter Fatia
Gualter Fatia
18
Num canto surgido três minutos depois, Rúben Dias foi agarrado na área para um penálti que Bruno Fernandes, no seu estilo demorado de passinhos e do saltinho, converter com calma. Portugal já tinha ao intervalo os cinco golos que demorara uma hora a marcar na Arménia. A história do jogo já era redundante, o Campeonato do Mundo não ia escapar.
Sem colocar logo a tocar a música das substituições, Roberto Martínez deixou a seleção com os mesmos para evoluir mais um pouco no jogo ofensivo. Não seriam os arménios a providenciarem um desafio para muito suor no ataque. Leão cedo rematou em corrida, Cancelo também pelo mesmo lado esquerdo. Foi pelo centro que Bruno Fernandes tabelou com Gonçalo Ramos, evasor do marcador com uma receção orientada para devolver a bola que o médio rematou (51’) de primeira. O Dragão era a sala de estar da seleção nacional, enfim a gozar de um descanso depois das lombas dos jogos anteriores.
A réplica oferecida pelo frágil adversário fragilizou o ritmo que se viu na segunda parte. A bola que pertenceu a Portugal foi sendo trocada vagarosamente, sem necessidade de a seleção acelerar muito os passes para conseguir entrar na área contrária. Não foi uma tarde para aferir se houve soluções estáveis para a falta de velocidade nas jogadas, a ausência de dinâmicas que mexessem com um bloco baixo, a incapacidade para esticar uma linha defensiva de cinco homens, ou a permeabilidade dos comportamentos defensivos demonstradas na Irlanda. Esta Arménia não era adversário para realmente testar as fundações do jogo português.
A sua oposição cadente, cada vez mais esburacada com o andar do tempo, serviu para Bruno Fernandes evidenciar as suas supremas qualidades se lhe concederem espaço para ver o jogo e, à sua frente, houver gente a pedir um passe. Ele lançou, deu toques de calcanhar, promoveu tabelas, foi o sol de qualquer criação bonita no ataque português. Deu para estrear Carlos Forbs, atrevido a escolher o 7 na camisola e a arrancar mais um penálti para quem os marca a saltar mesmo antes de rematar ser o autor (72’) do sétimo golo. Mostrou que João Neves deve ter rédea solta para vadiar perto da área em vez de estar demasiado perto do centro do jogo - e ele imitou Bruno no hat-trick, fazendo o seu (81’) ao aproveitar uma bola caída na pequena área. O médio do PSG nunca tinha marcado pela seleção.
Gualter Fatia
No final seriam nove os golos do jogo que acabou com os céus a jorrarem uma tromba de água. Era chuva para abençoar o último festejo, obra de Francisco Conceição, a castigar com o pé esquerdo, à entrada da área, outra jogada em que os arménios foram simpatiquíssimos a conceder espaço para os portugueses, mais do que jogarem, se divertirem, recriarem e quase terem momentos lúdicos de futebol. O 9-1, histórico por ser a segunda maior goleada da seleção (houve um 9-0 ao Luxemburgo, em 2023), finalmente garantiu que Portugal estará no Mundial do próximo ano. A camisola dedicada a Eusébio da Silva Ferreira ficará ligada a um carimbo no passaporte.
Será o sétimo Campeonato do Mundo no pecúlio da seleção que não falha fases finais de grandes competições desde o século passado. Será também, daqui em diante, que virão os testes a sério para as palavras de quem joga e treina, repetitivos a assumirem a intenção de conquistar o Mundial desde a morte de Diogo Jota, merecedor de palmas no Dragão ao minuto 21. Este atropelamento da Arménia não ameniza os percalços contra a Hungria em Alvalade e a Irlanda em Dublin, apenas confirma o que fora adiado por culpa própria.
Mas este jogo reavivará as discussões não pedidas por Gonçalo Ramos em torno da sua utilização. Também a polarização inútil quanto ao que vale a seleção com e sem Ronaldo, porque ele jogará sempre no verão americano onde a camisola preta em memória de Eusébio, de uso único, não estará para ajudar. Portugal vai jogar o Mundial, mas, apesar destes nove golos, terá de jogar mais se o quiser mesmo ganhar.