Crónica

Messi: o filho da experiência mais bem-sucedida de socialismo utópico da história da humanidade

Lionel Messi tem 30 anos - e 1,70m - e espantou o mundo ao estrear-se no Barcelona em 2004/05
Lionel Messi tem 30 anos - e 1,70m - e espantou o mundo ao estrear-se no Barcelona em 2004/05
Foto DEAN MOUHTAROPOULOS/GETTY
O Sporting recebe o Barcelona esta noite, na 2ª jornada da Liga dos Campeões, e isto obriga-nos a discorrer sobre Lionel Messi, o “génio que floresceu e sobressaiu na mais organizada e coletivista das equipas, essa bizarra mistura de colónia de formigas e kibutz povoada de génios altruístas”, explica o escritor Bruno Vieira Amaral. Este artigo foi publicado originalmente em setembro de 2017 e a Tribuna republica-o por ocasião do 32.º aniversário de Messi

Cheguei a Barcelona no dia 20 de abril de 2007, instalei-me num simpático hotel na Via Laietana, liguei o pequeno televisor do quarto e vi como os noticiários passavam repetidamente as imagens de um jogo realizado dois dias antes, Barcelona-Getafe, a primeira mão da meia-final da Taça do Rei.

A equipa da cidade condal ganhou 5-2, mas o que interessava era a jogada do segundo golo, onze estranhos segundos, treze toques do mesmo jogador na bola, seis adversários, incluindo o guarda-redes, ultrapassados em velocidade ou caídos no chão, e a bola dentro da baliza.

Na bancada, os rostos transpareciam a habitual alegria do golo e uma rara incredulidade: aquilo tinha mesmo acontecido? Eu, defendido pela distância de dois dias e por um televisor arcaico, fiquei perplexo. Era um 'déjà vu', aquela jogada já tinha sido feita.

As semelhanças eram tantas que era quase uma paródia, um simulacro, uma reconstituição nocturna do “golo do século” que Diego Armando Maradona tinha marcado à Inglaterra, no Mundial de 1986. O locutor gritava “Es Maradona! Es Maradona! Es Maradona!”, mas era impossível que 'El Pibe' ainda corresse e driblasse da mesma maneira. Maradona tinha encarnado no autor do golo, um miúdo de dezanove anos e 1,70 m, chamado Lionel Messi.

Era essa a razão da incredulidade extasiada dos espectadores: Messi, um dos muitos a receber o nefasto rótulo de “novo Maradona”, reclamava para si, com uma falsificação quase perfeita, o título de legítimo herdeiro de D10S. Com aquele golo extraordinário num jogo menor no dealbar da sua carreira Messi libertou-se a tempo do peso que sufocara tantos talentos argentinos: foi Maradona durante onze segundos para daí em diante poder ser Messi. No campo, claro está.

Uma foto, dois ídolos: Messi nos braços de Maradona
Foto DAVID GRAY/REUTERS

Aquela jogada não funcionou apenas como consagração e libertação do legado de Maradona, plantou indícios do génio futebolístico de Messi, da mesma maneira que nas incipientes apropriações que os jovens poetas fazem dos mestres já existe uma marca do seu talento singular. Mesmo quando finta no meio-campo, Messi está a pensar na baliza. Era assim já naquela época em que o Barcelona de Frank Rijkaard se ia desintegrando, apesar dos múltiplos talentos que o habitavam, como Ronaldinho Gaúcho. Este, outro génio, muitas vezes fintava para se divertir, para se recrear com a bola e não era raro que a jogada ficasse por ali, sem outra função que não a de maravilhar os adeptos.

De todos os grandes jogadores com que se pode comparar, Messi é talvez o menos lúdico, e não por falta de talento. As suas fintas, mesmo as que desafiam as leis da física, não são truques, são o meio mais eficaz para atingir um objectivo. Ronaldinho brincava como uma foca, Messi é quase sempre tubarão. Não é o jogador romântico, contemplativo, o maestro que dita o ritmo de jogo, que dá um passinho de dança, que oferece brindes à plateia. Também não é um daqueles 10 aristocráticos, donos do campo e do tempo. Esses extinguiram-se, engolidos pela reforma agrária que exige que os ‘6’ sejam ‘8’, que os ‘8’ pensem como ‘10’ e como extremos, que os extremos apareçam na zona do ponta-de-lança e que o ponta-de-lança seja o primeiro a defender e dê um saltinho à casa das máquinas quando for preciso atirar carvão para a fornalha.

Messi, irrequieto como uma pulga, é dono da bola, o campo é apenas o baldio por onde ele a leva a passear. Do meio-campo para a frente, pode ser o que quiser e essa verdade estava escrita naquela jogada: ali ele foi tudo, de extremo a ponta-de-lança, de 'meneur de jeu' a segundo avançado. Há aqueles pontas-de-lança famosos por aparecerem no lugar certo, por adivinharem onde a bola vai cair. Messi tem esse instinto, mas na maioria das vezes nem tem de o usar. Para quê calcular onde irá a bola cair se ele, sozinho, a pode levar até lá?

É uma fábrica individual de improvisos, uma linha de montagem de genialidades, um génio que inventa soluções como um operário aperta parafusos. O seu futebol não tem a beleza diletante dos passes-poema de Pirlo nem a elegância dos bailados de Zidane, mas a beleza mecânica, imparável de quem resolve problemas matemáticos em catadupa, de xadrezista a enfrentar onze adversários ao mesmo tempo e a fazer-lhes xeque-mate em três jogadas.

O número 10 do Barcelona já leva 12 golos marcados em 9 jogos esta época
DAVID RAMOS/GETTY

Quando Guardiola procedeu à regeneração espiritual do Barcelona, o talento de Messi floresceu e sobressaiu na mais organizada e colectivista das equipas, essa bizarra mistura de colónia de formigas e kibutz povoada de génios altruístas. O falanstério futebolístico de Guardiola e seus operários, radicado na filosofia de Cruyff leccionada em La Masia, foi a experiência mais bem-sucedida de socialismo utópico da história da humanidade. (Como conta o escritor brasileiro Ruy Castro, em 1958, no Mundial da Suécia, a equipa da União Soviética era temida pelo “futebol científico” – no paraíso comunista tudo era científico, os foguetões eram científicos, o futebol era científico, a fome também era científica e até a tristeza generalizada cabia numa fórmula química; Garrincha, com a esperteza nada científica do índio, toda ela manha e riso, reduziu a pó a sobranceria científica dos soviéticos.) Mas Guardiola sabia que a ciência do futebol precisa de artistas e, durante quatro anos, transformou-o num jogo de onze futebolistas de azul-grená contra onze espectadores equipados a preceito. Até os adversários mais qualificados pareciam tribos remotas que tivessem visto uma bola de futebol pela primeira vez.

No interior daquele sistema prodigioso de progressão geométrica, destacavam-se as invenções de Messi, como se à perfeição gregária e laboriosa fosse ainda possível acrescentar uma nova velocidade, uma centelha imprevisível de inteligência. O 'tiki-taka', nas suas infindáveis e infalíveis trocas de bola que aborreciam de morte, tinha algo de hipnose colectiva. Com a bola nos pés, cada jogador tinha sempre duas ou mais linhas de passe, numa genial simplificação dos processos. O instinto treinado dos jogadores do Barcelona era o de passar a bola, o gesto de altruísmo cristão e comunal que sabe que há mais alegria em dar do que em receber. Só que, 'primus inter pares', havia Messi, a descarga elétrica no croché soporífero da equipa. Com o sucesso constante e os números a atingirem uma escala absurda de vez em quando o mundo parava para sincronizar os relógios da grandeza futebolística: Messi já tinha superado Maradona?

Messi ultrapassa Maradona em practicamente todos os dados estatísticos relevantes: número de golos, troféus, distinções individuais. Maradona nunca venceu a Liga dos Campeões, Messi tem quatro. Messi tem cinco Bolas de Ouro, Maradona não ganhou nenhuma porque, naquele tempo, o prémio destinava-se a jogadores europeus. A Messi falta apenas uma conquista colectiva com a sua selecção, esse pináculo fugidio, o 'Eldorado' que Maradona atingiu numa demanda quase pessoal. (Na eterna discussão sobre o melhor de sempre em que uns defendem Pelé e outros Maradona, os defensores do brasileiro exibem as credenciais dos três Campeonatos do Mundo que ele ganhou. Mas é precisamente por ter conquistado apenas um que o mito de Maradona é tão persistente e fascinante, como se a percepção do talento se diluísse nas conquistas múltiplas e se concentrasse quando a vitória é solitária. Só se rouba o fogo uma vez.) Então, e fora a questão da conquista de um título com a Argentina, porque é que temos a sensação de que Messi não suplantou totalmente o antecessor? A explicação está fora do campo.

Havia em Maradona uma força demiúrgica e um impulso destrutivo que transcendiam os apertados limites de um campo de futebol. Numa altura em que o alcance global do futebol é inédito, os deuses da bola, como Messi e Cristiano Ronaldo, são conhecidos e reconhecidos a uma escala impensável há trinta anos.

Cristiano Ronaldo já foi campeão europeu com Portugal, mas Lionel Messi continua sem conquistas significativas com a Argentina. Mas o Mundial está aí à porta
PAUL ELLIS/AFP

Mas o impacto de Maradona na cultura e na imaginação populares é incomparável. Com dois golos míticos numa célebre tarde mexicana, vingou uma nação derrotada pelas armas. Chegou a uma cidade pobre do mediterrâneo, levantou-a do chão e deu-lhe aquilo que ninguém tinha dado e que ninguém voltou a dar. Na meia-final contra o país anfitrião no Mundial de 90, partiu em dois o coração dos que o amavam.

Quatro anos depois, num último voo de Fénix renascida, recuperou o sonho de uma nação para logo se fazer despenhar no seu abismo pessoal, confundindo as suas glórias e tragédias com as glórias e tragédias da Argentina. Contra essa força genesíaca, nada podem os modernos milhões de likes no Facebook ou no Instagram, os contratos milionários, as campanhas globais de publicidade. Apesar de todos os esforços de companheiros de equipa e dirigentes, Messi não tem o carisma nem o espírito de liderança de Maradona. Além disso, coube-lhe viver num tempo em que todas as arestas de personalidade são limadas ou atenuadas em nome dos proventos.

Vigiados e apaparicados por departamentos de comunicação e relações públicas, os ídolos de hoje não têm espessura nem densidade humanas, são figuras virtuais sem dramas nem abismos. São, acima de tudo, profissionais e reclamam esse estatuto para justificar uma mudança de clube mas também para garantir o empenho em campo. Na era dos clubes-empresa, aderem alegremente à mentalidade do funcionário e à falta de mentalidade da mercadoria porque é isso que lhes garante mais dividendos.

Isto cria uma desvinculação entre os heróis e as massas que os idolatram. Ao fim de anos de convívio e dedicação, de centenas de golos e inúmeros troféus, os adeptos do Real Madrid assobiam Ronaldo a meio de um jogo fraco e foi preciso conquistar o Europeu para que os portugueses lhe concedessem o benefício de uma trégua que deve mais à conveniência do que ao amor. Em Barcelona, Messi é unânime, mas na Argentina é quase um estranho, um apátrida que, por um acidente geográfico, enverga a alviceleste.

Messi tem 577 golos marcados em 712 jogos enquanto jogador do Barcelona
DEAN MOUHTAROPOULOS/GETTY

Os dramas dos novos heróis são as encenações estivais da renovação do contrato, as escapadelas fiscais, as polémicas inofensivas de 'reality show'. Ídolos universais como nunca houve são, paradoxalmente, cada vez mais apenas aquilo que fazem em campo, máquinas de pulverizar recordes, de uma criatividade que, de tão regular, se tornou monótona (não é muito diferente do que se passa noutros desportos, como no ténis, em que os “intempestivos” são rapidamente postos na ordem e o modelo Federer do bom rapaz se impôs como um arquétipo).

Por um lado, é assim que deve ser. Não é legítimo pedir-lhes mais do que aquilo que o dom com que nasceram lhes permite dar. Por outro lado, reduzir figuras de tão vasto alcance às suas qualidades profissionais, meramente técnicas, parece obedecer mais a uma estratégia publicitária universal do que a uma súbita conversão dos desportistas a ideais coubertinianos de comportamento. Esta aparente dedicação maníaca à “profissão” não deriva certamente de qualquer transtorno psicológico (durante muito tempo, falou-se do suposto autismo de Messi) e também não se explica somente por uma obstinação ilimitada que, no caso de Ronaldo, ainda assim é o que lhe confere uma perturbante dimensão agonística e trágica. No fundo, é aquilo que o humaniza.

No caso de Messi, a dimensão humana por vezes até parece atrapalhar a narrativa construída à volta da sua figura. Como o seu talento é tido como mais puro, menos contaminado pelo trabalho e pela vontade de superação, chamam-lhe “extraterrestre”, enquanto a metáfora mais utilizada para caracterizar Ronaldo é a da “máquina”, como se um fosse o resultado de um projeto e o outro um acaso cósmico e irrepetível.

E é nessa esfera menos sobre-humana do que desumana que o marketing, os agentes, os pais e os clubes os mantêm a flutuar. Após os noventa minutos de futebol, desaparecem no éter virtual, recolhidos no Olimpo de onde saem para publicar um vídeo nas redes sociais ou para cumprir os “compromissos publicitários.”

O Barcelona orgulha-se de ser mais que um clube. Messi, como a grande maioria dos desportistas da sua geração, é só um jogador, um profissional. Talvez o melhor de sempre, mas só um profissional. Sai-se do estádio, desliga-se o televisor e desaparece da nossa imaginação. Como se não existisse fora disso. Maradona, por seu lado, continua aí, gordo, louco, patético, grande, muito depois de ter marcado aquele golo que Messi só pôde copiar.

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