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Crónica

Para festejar o seu milésimo jogo, a Alemanha escolheu receber a Ucrânia. Para celebrar e fortalecer os valores europeus (por Philipp Lahm)

Para festejar o seu milésimo jogo, a Alemanha escolheu receber a Ucrânia. Para celebrar e fortalecer os valores europeus (por Philipp Lahm)

Philipp Lahm

Antigo campeão do Mundo de futebol

O antigo capitão da seleção alemã escreve sobre o jogo particular entre a Alemanha e a Ucrânia, um encontro especial para os germânicos e que envia um sinal pela paz e pelo entendimento internacional. O melhor modo de fazer isso é com jogos internacionais, que se tornam cada vez mais importantes nestes tempos de mudança

Entre 2004 e 2014 joguei em seis grandes torneios, três Campeonatos do Mundo e três Campeonatos Europeus. O Euro 2012 decorreu na Polónia e na Ucrânia. Jogámos a fase preliminar em Kharkiv e em Lviv. A Ucrânia tem uma grande cultura futebolística, isso foi notório.

Também teve grandes futebolistas na sua história. Andriy Shevchenko, Igor Belanov e Oleh Blokhin foram todos eles futebolistas europeus do ano. Valery Lobanovsky, a lenda do banco do Dínamo Kiev, ainda hoje continua a influenciar o futebol europeu; muitos treinadores do sistema referem-se a ele. Naqueles tempos em que eu estava a caminho da equipa profissional do FC Bayern o onze alemão tinha uma tarefa difícil para resolver. Michael Ballack e Oliver Kahn chegaram a temer pela sua participação no Campeonato do Mundo de 2002; a Ucrânia foi um forte adversário nos playoffs.

Enquanto capitão da seleção nacional, eu via-me como um representante da Alemanha. E por isso, antes dos torneios lidava com o país anfitrião. Antes de viajarmos para o Euro 2012 falei sobre a situação política na Ucrânia para a revista alemã “Der Spiegel”. A jovem democracia estava em perigo, eu achava muito duvidosa a maneira como Viktor Yanukovych tratava a líder da oposição, Yulia Tymoshenko. Por isso pedi a Michel Platini que defendesse os direitos humanos e a liberdade de imprensa na Ucrânia. O presidente da UEFA respondeu: “Não me interessa o que diz o senhor Lahm. Eu não sou da política, sou futebol.”

Naquela época as pessoas pensavam: irá a Ucrânia continuar a ser um país democrático? E hoje em dia a Ucrânia está a lutar pela liberdade da Europa.

Esta segunda-feira irá ter lugar o milésimo jogo internacional na história do futebol alemão. A DFB (Federação Alemã de Futebol, Deutscher Fußball Bund) escolheu o adversário certo: a Ucrânia. O futebol é uma boa maneira de se enviar um sinal pela paz e pelo entendimento internacional. O melhor modo de fazer isso é com jogos internacionais, os quais se tornam cada vez mais importantes nestes tempos de mudança.

Graças a Deus, especialmente na Europa, onde o futebol tem as suas raízes, existem estas competições transfronteiriças. É nelas que passamos a conhecer-nos uns aos outros, é nelas que se cultiva o companheirismo. Nos próximos dias e semanas, milhões de pessoas voltarão a estar aqui em trânsito. Os croatas vão encontrar-se com os holandeses, os espanhóis com os italianos. O Kosovo joga contra a Roménia, a Bélgica contra a Áustria, a Islândia contra a Eslováquia. Gibraltar e França irão competir, ainda que estejam separados por 200 posições na classificação mundial. A Alemanha viaja até à Polónia para mais uma partida de teste, e um dos oponentes dos sub-21 da Alemanha no Campeonato Europeu é Israel. Nestes encontros, a Europa está a reconciliar-se com o seu passado – e com o seu futuro.

O futebol, que é um desporto de equipa e envolve muitos tipos e forças diferentes, pode conseguir muito mais do que um resultado para a tabela classificativa. A Polónia, por exemplo, acolheu acima de um milhão e meio de refugiados ucranianos, mais do que qualquer outra nação. O facto de esses dois países vizinhos terem organizado em conjunto um torneio internacional de futebol dez anos antes decerto contribuiu um pouco para essa solidariedade.

A seleção nacional é algo de especial. E isso deve-se às regras com que todos concordaram: os treinadores não podem contratar estrelas, os gestores não estão autorizados a repreender as equipas. E os jogadores não podem escolher para quem jogam. Na seleção nacional, recorda-se a cada futebolista o seu desenvolvimento pessoal. Ele cresce no seu ambiente, vai para o clube mais próximo. Sendo um talento, é então descoberto por um clube maior, mais distante, e com o tempo ele próprio descobre que vive como cidadão de um país que dispõe de certas oportunidades e recursos, mas não de outros.

Vesti a camisola da Alemanha 113 vezes. Era diferente de vestir a do clube. Quando eu era criança, poucas coisas tinham mais importância para mim do que a seleção nacional. Ter de esperar dois anos pelo torneio seguinte parecia-me uma eternidade. O Campeonato do Mundo de 1990 moldou-me enquanto adepto do futebol, e as minhas memórias do pontapé de penálti de Andy Brehme ainda hoje continuam muito vívidas. Durante a minha época de atividade elas confundiam-se com os acontecimentos reais. Em todos os jogos internacionais em que participei, eu fazia desfilar na minha mente os meus ídolos Matthäus, Brehme e Littbarski.

Em 2006, no meu primeiro Campeonato do Mundo, organizámos na Alemanha o “Sommermärchen”. Foi então que percebi pela primeira vez que fazia parte de uma equipa que representava o meu país – amigável e de espírito aberto. Senti-me unido às minhas origens, jogar futebol passou a ter um significado mais profundo. No próximo ano voltaremos a encontrar-nos no meu país natal, a partir do dia 14 de junho passa a faltar um ano. É bom que o Euro seja disputado com 24 nações. Estar ali na Europa é o que mais importa. Este lema olímpico voltou a ter mais procura, porque ele implica participação. Em 2006 as massas andavam nas ruas, no próximo ano iremos repetir essa celebração de diferentes nações, gerações, e de todos, simplesmente.

O futebol, graças à popularidade que tem, é um meio de atingir um fim. As pessoas distraem-se, festejam exuberantemente e, apesar de toda a sua rivalidade, unem-se. Esta combinação de entretenimento e comunidade é única, não se obtém em mais nenhum sítio. É sob esses auspícios que eu assisto ao futebol hoje em dia.

Eis o meu desenvolvimento: de um adepto que admira os seus ídolos, para um jogador que entra em campo com eles em mente 113 vezes e que sente a responsabilidade de representar o seu país democrático, para um capitão que vê para onde vai a sua equipa. E agora sou o diretor de um torneio em que queremos celebrar e fortalecer os valores europeus. Isso também determina o meu ponto de vista sobre a Ucrânia. O que está a acontecer por lá não ameaça apenas esses valores, mas a nós também. É por isso que um jogo internacional contra a Ucrânia é uma excelente ideia.

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