Crónica

Julian Nagelsmann é extraordinariamente talentoso, isso já se sabia. Mas a federação alemã alinhou num excesso salarial

Julian Nagelsmann é extraordinariamente talentoso, isso já se sabia. Mas a federação alemã alinhou num excesso salarial

Philipp Lahm

Antigo campeão do Mundo de futebol

Apesar de elogiar e reconhecer valor ao novo selecionador, Philipp Lahm critica a postura da Federação Alemã de Futebol em tentar igualar os bolsos largos dos clubes (ou, em concreto, do Bayern de Munique) quando é altura de escolher treinadores

Nove meses antes do Euro 2024, a Alemanha teve de começar de novo. Julian Nagelsmann recebeu o encargo de dar à equipa equilíbrio, estabilidade, hierarquia, continuidade, estilo e um rosto, bem com o de explorar o seu enorme potencial. Ultimamente, ela tem carecido de tudo isso. Tempo é o que não falta. No Campeonato do Mundo no Catar, Walid Regragui mostrou com a seleção de Marrocos que os bons líderes conseguem afinar isso em alguns meses.

Nagelsmann era o candidato natural ao cargo que estava vago, tal como já o fora em momentos anteriores. Que ele é extraordinariamente talentoso é algo que já se sabia desde que, quando ainda não tinha 30 anos, tirou o Hoffenheim da zona de despromoção e o levou até à Liga dos Campeões. Mas ainda não provou que consegue desenvolver uma equipa de alto nível. Em Leipzig manteve-se firme, mas a distância em relação ao FC Bayern continuou na mesma. Em Munique ganhou experiência ao mais alto nível. Isso poderá ajudá-lo no seu presente cargo.

A estadia no Bayern de Munique também o ajudou nas negociações com a Federação Alemã de Futebol (DFB, na sigla germânica). O clube da minha terra natal é um dos 10 bons clubes de Inglaterra, Espanha, Alemanha, Itália e França que conseguem pagar salários exorbitantes. Neles, os melhores jogadores e treinadores ganham hoje o dobro ou o triplo do que ganhavam há uma década. E quem triunfar num desses clubes é, portanto, um dos mais bem pagos.

Essa é agora a experiência da DFB. O atual selecionador nacional e o seu antecessor mudaram-se para lá mais ou menos imediatamente após terem sido despedidos do Bayern. Diz-se que Hansi Flick terá ganhado €6,5 milhões e Nagelsmann 400 mil euros por mês. Embora a DFB se tenha encontrado recentemente numa difícil situação financeira devido à crise desportiva, entre outras coisas.

Isso não é bom, é demasiado dinheiro. Julgo que não se pode fazer nada acerca da dinâmica económica nos clubes que competem pelos melhores jogadores e melhores treinadores. Mas associações como a DFB não deveriam alinhar com esses excessos salariais. Mais de dois milhões de euros por ano, às vezes um pouco mais, dependendo do sucesso, não é necessário. Porque, como as associações têm a sua própria cultura, jogam pelas suas próprias regras, elas também têm um diferente sentido.

Começa com o facto de haver apenas 10 a 15 partidas internacionais por ano; num clube de topo, são três ou quatro vezes mais. Com os torneios bianuais, um selecionador nacional praticamente só tem de fazer trabalho sazonal. Pelo meio, fica quatro a seis semanas de cada vez sem pisar o relvado.

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A diferença decisiva entre a associação e a federação é fundamental: na federação, como proclamam os seus estatutos, o bem comum é primordial. Isso confere-lhe uma posição proeminente na sociedade. A DFB representa os clubes amadores, a Bundesliga Feminina, os árbitros e uns bons sete milhões de membros. É responsável pela organização do futebol infantil e anda a modernizar as suas formas de competição. O principal objetivo da DFB é incentivar os jovens e os idosos a fazerem exercício. Tem um mandato social, educativo.

Os líderes mais importantes da associação são os dois selecionadores nacionais das equipas seniores. Tal como a minha camarada Celia Šašić, eu gostaria de ver nesses cargos mulheres ou homens que sejam previdentes, que funcionem a longo prazo e que representem a perspetiva geral. Na Alemanha, mais de 90% do futebol é trabalho voluntário, pelo que é uma honra prestar serviço à DFB. São aqui necessários bons exemplos.

Como sempre, rever a história ajuda. Sepp Herberger assumiu funções de ensino; há fotografias dele a demonstrar a técnica correta do cabeceamento. Helmut Schön organizou cursos de formação de treinadores e fez palestras. Ambos trabalharam durante décadas como académicos do futebol para a DFB, ambos se tornaram campeões mundiais com a Alemanha. O contrato de Julian Nagelsmann, por outro lado, está limitado a nove meses; depois do Campeonato Europeu, ele provavelmente irá prosseguir a sua carreira nos clubes.

Não se pode voltar completamente atrás no tempo. Mas um pouco de “regresso às origens” não faz mal nenhum. E ajudaria a aproximar mais uma vez o futebol ao centro da sociedade.

Os jogadores também podem contribuir para isso. Os melhores ganham entre 10 e 20 milhões de euros por ano, alguns mais ainda. Para eles não deve ter importância se ganham 100 mil euros a mais ou a menos em bónus do Campeonato do Mundo. Os que auferem salários mensais com sete algarismos nem sequer notam a diferença. Ao abdicar do “princípio do ainda mais”, o jogador nacional estaria a devolver algo ao país que tornou possível a sua carreira e a sua fortuna.

Seria fácil, portanto, que a DFB instituísse a paridade de bónus entre os sexos. Com um Salário Igual, a associação estaria a enviar um forte sinal à sociedade. As mulheres inspiraram a nação com o segundo lugar que conseguiram no Euro 2022, e os seus compatriotas reconhecem-se na equipa. É exatamente isso que uma seleção nacional, masculina ou feminina, pode alcançar.

A seleção alemã masculina terá uma oportunidade no próximo ano com o torneio disputado em casa que cada geração obtém, no máximo, uma vez na vida. A vitória por 2-1 contra a França mostrou que os adeptos estão a postos. Dortmund foi o local ideal para esse prenúncio de uma grande celebração. É importante que os responsáveis pelo futebol alemão não vejam o Campeonato Europeu como uma fase para a promoção individual, mas como um serviço coletivo à causa. Se todos colocarem o “Nós” em primeiro plano, há muito boas hipóteses de conseguirmos novamente algo que seja excelente.

*texto redigido em colaboração com Oliver Fritsch, do jornal Zeit Online

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