Crónica

Ser-se a favor de algo mantém-nos vivos. E ser diretor do Euro 2024 é, para Philipp Lahm, uma defesa da democracia

Ser-se a favor de algo mantém-nos vivos. E ser diretor do Euro 2024 é, para Philipp Lahm, uma defesa da democracia
Adam Davy - PA Images

O antigo campeão mundial pela Alemanha, em 2014, aceitou ser o diretor do próximo Campeonato da Europa que o seu país vai organizar. Porquê? Philipp Lahm explica: “Tento fazer com que todos percebam que o torneio pode ser usado para se criar um sentimento de convivialidade.”

Ser-se a favor de algo mantém-nos vivos. E ser diretor do Euro 2024 é, para Philipp Lahm, uma defesa da democracia

Philipp Lahm

Antigo campeão do Mundo de futebol

Durante semanas, milhões de pessoas manifestaram-se na Alemanha em prol da preservação da democracia. Esse ímpeto provém do âmago da sociedade. Ela continua a ter uma boa noção de quando está na altura de se sair para as ruas.

Isso motiva-me. Quero organizar um bom torneio no verão. O futebol junta imensas pessoas e tudo aquilo é divertido e agradável. Isso também robustece a nossa sociedade civil. O desporto pode ser um meio para se atingir um fim.

O Campeonato Europeu de Andebol na Alemanha já mostrou aquilo que o desporto pode alcançar. Em Colónia, manifestaram-se 30 mil pessoas no centro da cidade num dia e à noite havia quase outras tantas no pavilhão a aplaudirem a sua equipa. Protestar e festejar são ações diferentes, mas têm qualquer coisa em comum. Requerem presença física e exprimem apreciação. Neste caso, pelo nosso modo de viver em liberdade.

Nos tempos que correm, devemos estar gratos aos que organizam manifestações, encontros de adeptos, festivais de música ou acontecimentos desportivos pelo seu empenhamento. Todos os acontecimentos culturais assumem agora um significado diferente. É ótimo que as pessoas voltem a sair à rua após as restrições da pandemia. Continua a ser esse o melhor local para sentirmos que somos todos humanos.

A minha decisão de me juntar à candidatura da Federação Alemã (DFB) à organização do Euro após a minha carreira ter terminado em 2017 teve a ver com a crise no desporto. Nessa época havia muito ceticismo em relação aos grandes eventos. A FIFA tinha atribuído o Campeonato do Mundo à Rússia e ao Catar, enquanto o COI atribuíra os Jogos Olímpicos a Sochi e a Pequim. As democracias europeias passaram a mostrar-se consequentemente céticas sempre que eram mencionados os valores desportivos.

Isso não poderia ser do interesse da Alemanha e do mundo ocidental. Eu quis contribuir de alguma maneira para o contrariar, tanto em pequena como em grande escala. Enquanto treinador ajudei o clube da minha terra, o FT Gern, onde joga o meu filho. E tornei-me diretor do torneio do Campeonato Europeu.

Já se constatava em 2018, quando a candidatura da Alemanha triunfou na UEFA, em Nyon, sobre a da Turquia, que estava prestes a ocorrer no desporto um “Zeitenwende” (ponto de viragem). Estamos agora a experimentar uma era em que a Europa tem de viver à altura dos seus valores. O desporto pode ser uma peça desse mosaico.

Primeiro e antes de tudo, o futebol é espetáculo e entretenimento. Mas este jogo de equipa também pode ser usado para discutir muitos desenvolvimentos na sociedade, tanto bons como maus. Nenhuma equipa jamais beneficiou de que os jogadores apontassem o dedo uns aos outros depois das derrotas. Tal como não ajuda atribuir a alguns grupos de pessoas, como os migrantes, a culpa pelas crises do presente.

E no espírito de Pierre de Coubertin e de Jules Rimet, que fundaram os Jogos Olímpicos e o Campeonato do Mundo de Futebol, os acontecimentos desportivos internacionais promovem os direitos humanos e o entendimento internacional. Há já seis anos que eu tenho vindo a desempenhar os meus deveres neste sentido original.

O meu papel é o de um mediador. Tento fazer com que todos percebam que o torneio pode ser usado para se criar um sentimento de convivialidade. Pelas conversas com os nossos parceiros, sei que muitas empresas compreenderam que o futebol não é apenas um negócio, mas que ele é socialmente sustentável e nos torna resilientes. O nosso governo também nos apoia.

As instituições envolvidas precisam de representantes credíveis e devem fortalecer-se umas às outras nas suas tarefas. O papel da DFB é promover a vida dos clubes, onde os voluntários educam as crianças. A sua figura de proa, a seleção nacional, também joga como uma equipa, pelo que o futebol cumpre a sua responsabilidade social.

Experimentei isso enquanto jogador. Estava incrivelmente entusiasmado antes da partida inaugural do Campeonato do Mundo de 2006 porque sentia uma grande responsabilidade enquanto atleta. Queria ser bem-sucedido, que fôssemos longe enquanto equipa. Depois o torneio desenvolveu-se e passou a ser algo de maior. Chegara o momento de a Alemanha se apresentar ao mundo como um bom anfitrião. O “Sommermärchen” (“conto de fadas estival”) foi criado pelas pessoas, e o seu catalista foi o futebol.

Voltamos agora a ter essa oportunidade. O Euro 2024 da UEFA deverá realçar que temos as melhores condições na Europa: liberdade de viajar, liberdade de reunir, liberdade de expressão, para referir apenas as mais importantes.

O ressentimento não é uma solução; ele é destrutivo e prejudica a adaptação a novas circunstâncias. Ser-se a favor de algo mantém-nos vivos. É por isso que é necessária solidariedade, incluindo com as empresas e os políticos. Nem sempre temos de concordar, mas não deveríamos ser excessivamente críticos com os que têm estado envolvidos nos partidos centristas desde há décadas.

Trata-se agora do que é essencial, fundamental. Trata-se de defender a nossa coexistência livre e pacífica. O desporto deve dar o seu contributo para isso. Para mim essa é uma magnífica tarefa, tanto em Gern como pela Alemanha e pela Europa. Abordo-a com otimismo.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt