Entrevistas Tribuna

O médico dos craques: “O Ronaldo pede-me artigos científicos para ler”

José Carlos Noronha fotografado no seu consultório na Avenida da Boavista, no Porto
José Carlos Noronha fotografado no seu consultório na Avenida da Boavista, no Porto
Rui Duarte Silva

Quando os jogadores de futebol se lesionam nos joelhos, é a este homem que ligam. No seu consultório no Porto, José Carlos Noronha já tratou de atletas de 34 países, incluindo Cristiano Ronaldo, Pepe e Di Maria. É diretor da Unidade de Saúde e Performance da Federação Portuguesa de Futebol e esteve no Europeu pela primeira vez

Já o apelidaram de “Ronaldo da ortopedia”?
[risos] Já. Creio que foi o César Peixoto, depois de o ter operado. Mas é um exagero, como é evidente. Em Portugal há excelentes profissionais, nomeadamente na medicina desportiva.

Como é que começou esta dedicação ao joelho?
Começou com uma lesão no joelho. Tinha acabado de tirar o curso de Medicina, em 1979, quando rompi o cruzado anterior. Comecei a ler sobre as roturas e, uma vez que tinha acabado de me formar, decidi engraxar as chuteiras e arrumá-las definitivamente, porque sabia que se continuasse a jogar a degradação do joelho era inevitável. Isso condicionou a minha ida para ortopedia e no quinto ano da especialidade pedi autorização para estudar melhor o joelho e fui para Barcelona fazer estágio. Na altura ganhava em Portugal 46 contos e pagava em Barcelona 250 contos.

Antes da lesão nunca tinha pensado em ir para ortopedia?
Nunca. Se não me tivesse lesionado no joelho, não era o que sou hoje. Se calhar era clínico geral.

Lesionou-se num jogo de futebol?
Não. Joguei no clube da minha terra, o Alvarenga, mas lesionei-me a tentar ajudar num acidente de viação que houve à minha frente. Vinha no carro com colegas e um camião embateu na barreira da esquerda, porque o condutor adormeceu. Fomos socorrê-lo, só que eu, que ia à frente do lado direito, saí com o carro ainda em andamento e fiz uma entorse grave no joelho. Caí e foi uma dor horrível. Na altura não percebi bem o que tinha acontecido, mas sabia que era grave, porque tinha a sensação de ter partido a perna. Depois de me dedicar ao joelho é que percebi que aquela dor terrível era tipicamente de lesão do cruzado anterior.

Perdeu-se um bom jogador de futebol?
Não [risos], perdeu-se um jogador abaixo do mediano, mas que gostava muito de jogar futebol.

Nunca mais jogou?
Não, porque tinha noção que o joelho iria sair do lugar.

Os seus pacientes são todos jogadores de futebol?
Muitos, talvez 80%.

Quem foi o primeiro?
O primeiro joelho famoso foi o do César Peixoto, em novembro de 2003. O dr. Nélson Puga, do Futebol Clube do Porto, a quem passei a dar apoio cirúrgico, telefonou-me porque tinha um jogador com uma rotura de ligamentos e queriam que o operasse. Foi aí que começou a minha relação com o Porto, que ainda se mantém. Operei o César Peixoto, e o Mourinho, que era o treinador, falou comigo porque queria assistir à cirurgia. Tive algum receio que desmaiasse, como habitualmente acontece, nomeadamente com alunos que pedem para assistir, mas não, portou-se lindamente.

Alex Livesey/Getty

Ficou mais nervoso por ter lá Mourinho?
Não. Consigo abstrair-me bem de tudo. Há uns anos, um colega perguntava-me se conseguia dormir na véspera de operar estes indivíduos que valem milhões. Respondi-lhe que, provavelmente por inconsciência, consigo abstrair-me de ter nas mãos esses milhões, sabendo que se algo corre mal um eventual processo poderá acabar comigo. Felizmente, tudo tem corrido bem.

Qualquer pessoa pode ser operada por si?
Claro que sim. Os honorários são os mesmos, mas também é verdade que para os que não têm possibilidades às vezes há que ajudar. Há dias tive uma jogadora que não pagou nada, a Jéssica Silva. Lesionou-se num jogo fora do âmbito da Federação e portanto a Federação não podia pagar, mas ela também não tinha dinheiro. Falei com o ajudante, com o anestesista e com o instrumentista e a Jéssica foi operada e não pagou nada de honorários clínicos. Pedi à casa que me fornece os parafusos que me desse dois, que custaram 400 euros, e assim se fez uma operação quase sem custos. É mais gratificante operar estes casos do que receber uma grande nota de outros. Um indivíduo do Kuwait que operei há tempos nem perguntou quanto era. E só para a Ordem da Trindade, porque gostou muito da sopa e percebeu que o hospital dá sopa a pessoas necessitadas, deu dez mil euros.

Qual foi o caso mais interessante que teve?
Foi o ligamento cruzado anterior do Derlei, no dia 27 de dezembro de 2003, creio. Passaram três meses e 15 dias, com a evolução a ser normal, e, para surpresa minha, recebo um telefonema do Mourinho a dizer que o Derlei ia jogar no domingo. Respondi: “Jogar o quê?” [risos] Ia jogar contra o Alverca, a equipa frente à qual se tinha lesionado. Disse-lhe que não podia ser, porque ainda não tinha condições. “Mas ele já está a treinar desde os dois meses”, dizia o Mourinho. O que, segundo os livros, era uma inconsciência. Fui ver esse jogo, em que o Porto já era campeão. Telefonei ao Derlei, dizendo-lhe que tivesse cuidado, porque aquilo ainda estava ‘verde’ e combinei com o Mourinho que ele jogaria os últimos cinco minutos. Ainda no intervalo o Derlei começou a aquecer. Para minha surpresa, logo no início da segunda parte o Mourinho manda-o entrar e sai o Deco. E eu a pensar: “Como é que este homem vai jogar 40 minutos?” Pior: o Derlei vai direito a alta velocidade a um defesa do Alverca, muito alto, há uma pancada forte e caem ambos. Começo a ficar com suores frios. “Ó pai, estás a sentir-te bem?”, perguntava a minha filha. Pensei: “Rebentou o joelho outra vez.“

A culpa é do médico.
Iam logo perguntar: “Quem é que o operou?” Felizmente o Derlei levantou-se e começou a correr como se nada fosse. No fim do jogo, acenou para mim e disse-me que aquela camisola era minha. Perguntei-lhe por que é que ele tinha entrado daquela maneira. “Ó doutor, disseram-me que a parte psicológica é muito importante. Se não nos libertamos logo do receio, nunca mais conseguimos. Escolhi aquele grande e fui contra ele para ver se estava curado.” Na semana seguinte, jogou nas meias-finais da Liga dos Campeões, marcou um golo e, simpaticamente, no final do jogo, dedicou-mo. E na semana seguinte foi campeão em Gelsenkirchen. São histórias interessantes, porque criamos amizades muito grandes. Ainda há dias veio visitar-me.

Clive Brunskill/Getty

Os jogadores não costumam ser assim tão corajosos?
Não, há sempre um receio. Por muito bem que o doente seja operado, ao mesmo nível pré-lesional, em alta competição, só cerca de 55% voltam a jogar. Há muito receio e problemas psicológicos nestas ocasiões. Não só o receio de pôr o pé novamente numa posição idêntica à que motivou a lesão e passar novamente pelas dores, mas também porque para alguns é um castelo de sonhos que desabou. É uma vida boa que tinham, com encargos de casa e carros, eventualmente com uma família pendurada neles, e de um dia para o outro tudo muda. Daí que atualmente se tenha em atenção que aqueles com mentes mais vulneráveis, mais receosas de terem dores, não podem ser logo operados. Deve-se solicitar a colaboração de um psicológo e o contacto com colegas que passaram por situações idênticas e que conseguiram ultrapassá-las.

O doutor trata disso tudo?
Sim, não se trata apenas da cirurgia. Tenho com quase todos eles um laço de amizade muito grande, porque o operar um doente não é ato cirúrgico em si só, é dar-lhe também o apoio moral, quer antes quer depois. Se há alguns, como o César Peixoto, que tinha poucas lesões e uma disposição para aceitar tudo o que a cirurgia lhe trouxesse, há outros casos em que temos de esperar semanas para poder fazer algo.

Teve casos assim?
Há um, cujo nome não vou referir. Foi operado há cinco anos e está aí ao mais alto nível no estrangeiro. Mas esteve cinco semanas, antes da operação, a readquirir a mobilidade do joelho para que desaparecessem os sinais inflamatórios e o derrame. Avisei o empresário que, com grande probabilidade, aquele jogador não mais voltaria a jogar ao nível pré-lesional. Era um jogador de top mundial. Voltou a jogar, depois de uma recuperação muito difícil e de um espírito de sacrifício que teve de ser muito grande, também porque tinha acabado de ser pai, e tudo isso influencia.

Então acabou em caso de sucesso, pode dizer o nome do jogador.
Foi um caso de sucesso mas não é um sucesso cirúrgico. Não convém dizer o nome dele porque poderá influenciar um contrato futuro, por exemplo. É claro que tem um bom historial nos últimos cinco anos mas um clube pode pôr essa questão.

Se lhe aparecesse agora o Jonas para ser operado, o que fazia?
[risos] Não me parece que isso acontecesse, porque devo dizer que o Benfica tem um departamento médico de elevadíssima categoria.

Qual foi o pedido mais surpreendente que recebeu?
Olhe, já operei atletas de 34 países, quase sempre aqui. Mas também já operei no Vietname, em Ho Chi Minh, quando fui lá tratar seis jogadores da seleção, em 2006. Ligou-me na altura o Henrique Calisto, que era treinador do Dong Tam e depois passou a ser selecionador nacional. É uma figura que para o trânsito no Vietname, e isto já acontecia no Dong Tam, antes de ser selecionador. Ele foi campeão no Dong Tam e vivi esse momento com ele lá, porque o Henrique jogava comigo quando eu me lesionei - ele era central e eu era defesa esquerdo. Quando íamos na rua e alguém se apercebia da presença dele, era uma alegria imensa. O trânsito parava mesmo. A esposa dele, uma das vezes em que foi visitá-lo, foi recebida com honras de estado.

Operou nas condições ideiais?
Fui operar ao hospital francovietnamita e as condições eram excelentes, era um hospital novo dirigido por colegas de Bordéus. O doutor Courtois era o diretor de ortopedia e contactei com ele previamente porque receei poder não ser muito bem recebido, por ir um indivíduo de Portugal operar jogadores de lá, mas não. O problema que houve é que no intervalo de cada cirurgia, como eles estavam numa fase de treino de pessoal do Vietname, havia ali muita coisa que falhava. Quem lucrou com esses intervalos longos foi a minha mulher e a minha filha, que passaram o tempo nas compras, nomeadamente nas sedas [risos].

Quanto tempo demora a cirurgia, em média?
A cirurgia de um ligamento cruzado anterior, só, de pele a pele - ou seja, desde que abre até que fecha -, demora na casa dos 50 minutos. O que interessa é que seja bem feito. Às vezes demora menos, às vezes demora mais. Há pormenores técnicos que alongam o tempo da cirurgia mas que são extremamente benéficos. Pena é que não haja em Portugal quem faça todas as cirurgias sem garrote, isto é, eleva-se a perna durante alguns minutos e faz-se uma compressão para que não haja sangramento. Só que isso leva a uma falta de irrigação, o que num atleta de alta competição ou num idoso com alterações vasculares, dá incondicionalmente lesões e a recuperação é diferente. Nós nunca usamos garrote e a recuperação é muito melhor. Felizmente os mais jovens, nomedamente os que vão passando pela Ordem da Trindade, já se apercebem desta diferença.

Rui Duarte Silva

Também ficou com suores quando viu a pancada que o Ronaldo levou na final do Euro?
Estava no banco e receei que fosse bem pior. Foi um traumatismo violento que não teve consequências maiores. A ressonância magnética foi feita quando o jogador já estava a cargo do Real Madrid e, como compreende, são situações que se mantêm em sigilo.

Gostou de estar no Europeu?
Muito. A minha vida é no Porto, é o meu consultório e a Ordem da Trindade. A minha colaboração com a Federação iniciou-se no Europeu e foi um part time [risos], onde estive 50 dias. Foi uma vivência muito interessante. É um caso de estudo: 63 homens a conviverem tanto tempo num ambiente de grande amizade, desde os técnicos de equipamentos até ao presidente, passando pelo Fernando Santos. Foi um grande ambiente, que tinha um único destino: a vitória. E cumpriu-se.

Também sentiu essa crença?
Havia uma crença que foi criada de início fundamentalmente pelo Fernando Santos e por todas as pessoas que lá estavam. É preciso ver que havia vários rivais, nomeadamente portugueses, jogadores do Porto, Benfica, Sporting, e é de admirar o grau de amizade que se constatava entre eles. Não houve qualquer atrito no Europeu, foi um ambiente de irmandade.

O Ronaldo é um modelo de atleta ideal?
É. Tem uma compleição física ímpar. É como aqueles carros que fazem milhões de quilómetros sem qualquer avaria. Conheço o Ronaldo há 11 anos, desde que foi para o Manchester. Teve algumas pequenas lesões e pediu aconselhamento. Além de ter um lado humano do melhor, é um atleta que cumpre tudo aquilo que é exigível para manter uma forma física e psíquica elevada ao máximo, desde a alimentação, ao sono e ao preparo físico. Ele é estudioso, de vez em quando pergunta-me se não há artigos científicos novos que possa ler, sobre a alimentação e outros temas. É um exemplo. Como colega, também é excecional. É notável o apoio que dá aos jogadores mais novos na seleção, para integrá-los e tirar-lhes qualquer receio ou pudor por estarem ali ao lado de um monstro. Notava-se às vezes aquele olhar de lado dos miúdos para ele.

Lá está, como os jovens médicos que vêm ter consigo para aprender.
[risos] Já lhe disse para não me pôr ao nível do Ronaldo. Só vou fazendo o melhor que posso. Hoje prezo muito mais a minha qualidade de vida. Segunda-feira opero, terça vou ao hospital dar altas e quarta estou no consultório. Assim fico com tempo livre. Tiro um dia para ler artigos e revistas e ouvir o noticiário. E depois vou ter com os meus pais, que moram em Arouca e já estão velhinhos. O melhor mesmo é este tempo de vivência com a família. A quinta e a sexta-feira, em que não trabalho e não ganho dinheiro, são dias muito mais felizes pelas vivências que tenho do que aqueles em que levo uma dúzia de tostões para casa.

Versão integral da entrevista publicada na edição de 20 de agosto de 2016 da revista E do Expresso

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