A história da “mimalha” que idolatra Ronaldo mas que não quer ser como ele
Jéssica Silva é jogadora do Sporting de Braga, 2º classificado da Liga Allianz de futebol feminino
José Caria
A mãe não tinha dinheiro para comprar bolas, mas Jéssica Silva cresceu sempre com uma redondinha no pé, mesmo que fosse feita de jornais enrolados. Deveu-o ao pai, ex-jogador do Belenenses que morreu quando ela tinha apenas dois anos. Aos 22 anos, Jéssica já é uma das melhores jogadoras portuguesas mas diz que ainda tem muito que crescer para conseguir escrever a própria história, como Cristiano Ronaldo: “Quando me picavam e diziam coisas feias e más, desatava a chorar em campo”
Nasceu em Vila Nova de Milfontes há 22 anos, tem uma irmã gémea (verdadeira) e outros quatro irmãos, todos mais novos, que ajuda a sustentar. O pai faleceu quando ela tinha apenas dois anos e apesar das memórias serem quase nenhumas, diz que foi a ele que foi buscar o jeito e a paixão pelo futebol. Valter Silva foi jogador do Belenenses mas um acidente de viação acabou por ditar-lhe uma morte precoce.
Jéssica Silva, a filha, foi eleita em dois anos consecutivos a melhor jogadora do campeonato nacional, ao serviço do Clube de Albergaria. Mas no último jogo que fez pelo clube do coração sofreu uma lesão no joelho que a afastou dos relvados durante quase oito meses.
Regressou em dezembro à competição pela nova equipa, o Sporting de Braga, num jogo em que marcou dois golos e fez uma assistência. O maior sonho agora é regressar à seleção e fazer boa figura no Europeu da Holanda, já que não pôde participar na parte final do apuramento histórico da seleção feminina.
Como foi assistir do lado de fora ao apuramento de Portugal para o Euro-2017? Custou-me a valer. É difícil transmitir em palavras aquilo que senti. Tentei sempre manter-me presente. Ia falando com as minhas colegas, com os treinadores e quis fazer-lhes sentir que estava com eles. Da parte deles senti o mesmo.
Qual foi o jogo em que tiveste mais vontade de saltar para dentro do campo? Foi contra a Finlândia, lá. Estava a ver o jogo pela televisão. Empatámos aquele jogo, mas era um jogo que esteve muito ao nosso alcance. Jogámos bem, só nos faltava mesmo marcar golo. Gritei tanto com a televisão [risos].
Quando achas que voltas a ser convocada para a seleção? Julgo que lá para março.
Não estás à espera de ser chamada para o estágio deste mês? Não, julgo que ainda é cedo. Afinal só tenho 90 minutos nas pernas desde regressei. Mas nunca se sabe. O que quero é reintegrar a seleção o mais rápido possível.
O que seria uma boa prestação da seleção no Europeu? É fazermos boas exibições contra as melhores seleções da Europa. Acho que temos seleção e jogadoras capazes de fazer frente a grandes jogadoras da Europa. Podemos surpreender. Não estou a dizer que vamos ganhar o Europeu, mas deixem-nos sonhar, deixem-nos continuar a lutar e a acreditar, porque acho que podemos fazer algo bonito na Holanda.
Sentes que a seleção melhorou com o selecionador Francisco Neto? Sim, o professor Francisco é um selecionador novo, acho que toda a estrutura da federação nos ajudou, mesmo em campo, a termos maior rendimento. Francisco Neto marcou a diferença, assim como a professora Marisa Gomes, que é muito inteligente, e que nos ajudou muito a não ter medo, a encarar as melhores seleções olhos nos olhos. Temos noção das nossas fragilidades, mas também sabemos temos pontos muito fortes. A jogadora portuguesa tem muita qualidade e acrescenta um bocado de alma àquilo que faz. Por isso a nossa seleção tem um espírito muito peculiar, uma garra.
A seleção feminina qualificou-se pela primeira vez para um Europeu
FPF
Passaste a tua infância em Vila Nova de Milfontes. Sim, até aos oito anos, depois mudamo-nos para Águeda, porque o meu padrasto, ex-marido da minha mãe, tinha lá família e as condições eram melhores.
Sentiste muito essa mudança? Sim, foi muito estranho mudar do Alentejo para o norte. Custou-me deixar os amigos e a escola. O ambiente era muito diferente. Em Vila Nova ia para a escola de chinelos sem problemas, cheguei a ir descalça porque a minha mãe tirou-me as sapatilhas que eu tinha estragado, e ninguém dizia nada. Em Águeda as pessoas olhavam mais para o que vestia ou deixava de vestir. Mas acabei por adaptar-me, receberam-me muito bem.
Como e quando começa a tua atividade desportiva? Sempre joguei à bola na rua e no recreio com os rapazes. Era a menina da bola. Quando cheguei a Águeda frequentava o desporto escolar, o futsal, ia às provas de atletismo. Numa prova de desporto escolar, quando estava a fazer o salto em comprimento fui abordada por um treinador nacional, o professor José Teixeira (que treinou o Arnaldo Abrantes). Convidou-me para ir fazer atletismo. Mas foi uma questão de meses, porque um dia estava a jogar à bola na escola, uma rapariga veio ter comigo e perguntou-me se não queria fazer um treino numa equipa. Na altura nem sabia que havia equipas de futebol para raparigas. Fiquei toda contente e fui. Era o Ferreirense. Foi o meu primeiro clube.
O que te fascinava no futebol? Acho que foi uma coisa que nasceu comigo. Sempre andei com uma bola atrás. Se não era uma bola grande, porque a minha mãe não tinha dinheiro para comprar, eram as bolas saltitonas, ou então fazia uma bola grande com papel de jornais. Acho que nasceu comigo por causa do meu pai. Se calhar esta minha habilidade veio dele.
No ano em que te inscreves no Ferreirense és logo chamada à seleção nacional de sub-19. É verdade. Nem sabia que existia seleção nacional. Quando me disseram fiquei feliz. A partir daí nunca mais deixei as seleções.
Lembras-te do teu primeiro jogo pela seleção? Lembro, foi contra o País de Gales. Chorei baba e ranho no banco quando ouvi o hino. Quando entrei, na segunda parte, estava muito perdida [risos]. Foi uma experiência única. Sempre que estou na seleção sinto as coisas de uma maneira muito peculiar.
É verdade que em campo, quando te provocam, começas a chorar? [risos] É verdade. Era assim, agora já não. Não sou mimada, mas sou uma pessoa mimalha, que gosta de carinho. E quando me picavam e diziam coisas feias e más, eu não gostava. Mesmo em grande ainda não consegui perceber porque fazem isso.
Que tipo de coisas dizem ou chamam em campo? Coisas do género “ó preta. vai para a tua terra”. Às vezes chamavam-me “filha da p…”, eu desatava a chorar, e quando me perguntavam porque chorava, eu respondia: “porque chamaram p… à minha mãe”. [risos].
Ainda choras em campo quando és provocada? Hoje já não, mas não vou mentir, há coisas que continuam a fazer-me impressão. Custa-me menos estar um jogo inteiro a levar porrada porque têm de me cortar as pernas para eu não passar, do que quando o fazem por pura maldade. Fui para a Suécia jogar, em 2014, lesionada, porque uma colega minha entrou mal de propósito para me magoar, isso custa-me. Não só a mim. Custa-me ter em campo uma colega que sei que vai dar só para magoar. Custa-me perceber que fazem com o intuito de magoar.
Estiveste duas épocas no Ferreirense e vais para o Clube de Albergaria. É o clube do teu coração? É. Fui para lá com 17 anos, foi o clube onde cresci, onde tive uma grande evolução, enquanto jogadora e como pessoa. Era muito pequenina no Ferreirense.
No Albergaria, a determinada altura, treinaste com o técnico de guarda redes. Porquê? As minhas colegas treinavam três vezes por semana, mas eu sabia que não chegava. Tinha de encarar uma realidade a nível internacional quando ia à seleção e devia treinar mais vezes. Por isso passei a treinar mais duas vezes com os rapazes, no Porto, na escola Hernâni Gonçalves, e treinava mais uma ou duas vezes com o Paulo, o treinador de guarda redes. Ele ia de propósito para o estádio do Albergaria para treinar comigo aspectos técnicos, como o remate, o último passe, etc.
Quando é que percebeste que querias ser jogadora profissional de futebol? Dos 16 para os 17 anos. As coisas aconteceram muito rápido, fui logo chamada às seleções nacionais, depois de perceber o ambiente, de perceber a competição e que podia fazer disto a minha vida, comecei a dedicar-me mais. Só queria acabar cá a escola e ir-me embora.
Estudaste? Até ao 12ª ano.
Nunca pensaste em ir para faculdade? Pensar pensei, fui contactada muito cedo por alguns agentes no sentido de ir para os EUA jogar e estudar, mas a minha ideia era terminar o 12º ano em Portugal e depois ir-me embora. E foi isso que aconteceu. Fui para a Suécia.
Quando começaram a surgir os convites do exterior? Desde os meus 17 anos que fui abordada por vários agentes. Mas o primeiro convite a sério foi do Linköpings FC.
O que te levou a aceitar ir para a Suécia? Sair para crescer como jogadora, ser profissional, porque sabia que em Portugal já não podia fazer mais do que fazia, já treinava com os rapazes, mas sentia-me estagnada.
Como foi a experiência? Foi boa. Tinha os meus 18 anos e ainda era uma gaiata. Fui com a Cláudia Neto, que também foi contratada nessa altura. Mas ela já tinha uma experiência muito grande.
Só lá estiveste cinco meses. Porquê? Porque se tinha sido contratada, ainda por cima a meio da época, foi porque o treinador devia considerar que eu era uma mais valia, mas a partir de determinada altura comecei a ficar no banco. E pensei: estou longe, não estou a jogar, este futebol não faz valer as minhas capacidades porque é um futebol muito físico, não é criativo, as coisas não estão a ser como tinha pensado, por isso o melhor é ir embora.
Que cenário tinhas traçado? Pensava que ia jogar mais. O que me custou mesmo foi não jogar. E sabia que podia estar num bom clube fora de Portugal a treinar e jogar mais. E houve também uma questão emocional que ajudou ao meu regresso.
O que aconteceu? Continuava muito ligada ao Albergaria e o clube estava a passar uma fase muito difícil, a perder jogos e eu sentia muito isso. Isso pesou na decisão, porque quando sai da Suécia podia ter ido para o campeonato espanhol, que é um campeonato intermédio, mas pesou muito a questão emocional.
E voltas ao Albergaria. Sim, mas passado pouco tempo avisei que queria sair novamente, porque além de ter as minhas ambições, precisava começar a ganhar dinheiro para ajudar a minha mãe e os meus irmãos. O Albergaria queria tanto que ficasse que arranjou-me uma espécie de estágio remunerado no clube, na área de gestão, mas avisei que assim que abrisse a janela de contratações ia aproveitar. Estava em excelente forma e sabia que conseguia.
José Caria
Só que sofres a lesão que te afasta da fase final de qualificação para o Europeu deste ano. E logo naquele que supostamente devia ser o último jogo pelo Albergaria e praticamente no último lance. E já tinha as coisas encaminhadas para ir para Inglaterra. Foi caricato, até porque o agente tinha-me dito que eu já não podia jogar mais pelo Albergaria. Mas, como ainda não tinha assinado, feita parva acabei por jogar.
Qual era o clube? Prefiro não dizer, porque pode haver hipótese de voltar lá...
Percebeste logo que era uma situação grave? Percebi logo que estaria fora de competição quatro semanas, ou seja, ficava de fora do Mundialito o que para mim já era um drama. Depois percebi, com a ressonância, que tinha uma rotura do ligamento cruzado anterior do joelho direito e que as coisas não iam ser fáceis. Foi um grande murro. Grande mesmo.
Demoraste algum tempo a ser operada. Porquê? Sabia que tinha de ser operada por um bom médico e tinha de fazer uma boa recuperação caso quisesse continuar a ser futebolista. E levei algum tempo a perceber que opções tinha, porque as seguradoras são muito manhosas. Falei com um tio de Angola, que tem algumas posses, mas era muito dinheiro. Até que, em conversa com o Humberto Coelho, ele acabou por conseguir que o Dr. Noronha me operasse, sem custos para mim. Foram cinco estrelas comigo [pode ler AQUI a história, contada pelo médico José Carlos Noronha].
A recuperação já foi feita no Sporting de Braga. Sim, porque entretanto o treinador do Braga contacta-me, ainda eu não tinha sido operada.
O que é que o clube te ofereceu? Um contrato de um ano, alojamento, a recuperação da lesão. Mais tarde até fui contactada pelo Sporting, mas já tinha dado a minha palavra ao Braga. Quis ir para a operação com a minha situação definida. E agradeço muito ao Braga, porque acreditaram em mim e recuperaram-me.
Regressas à competição… No dia dos meus anos, a 11 de dezembro. Senti-me bem, marquei dois golos e ainda fiz uma assistência.
Qual o teu objetivo agora? Depois desta lesão, já não planeio as coisas a tão longo prazo. Tenho as minhas ambições, mas agora quero é fazer um bom resto de época, quero voltar à seleção e ter a visibilidade que a seleção me dá.
Mas continuas a sonhar em jogar lá fora? Sim, claro. Não tenho um clube concreto. Mas quero estar entre as melhores do mundo. Como agora falam da Ana Borges e da Cláudia Neto, que está no top 100 das melhores do mundo, eu quero que ser uma referência a nível internacional. E para isso tenho de sair de Portugal. Gosto muito do campeonato inglês, mas um dia quero chegar ao campeonato alemão. Só que com mais bagagem do que a tenho agora.
Tens contrato com o Braga até maio. Já sabes como vai ser o futuro, vais renovar? Não. Tenho umas coisas por alto. Agora quero é fazer o maior número de minutos possível, quero ajudar o Braga, estou com vontade de marcar muitos golos.
Para ti quem é a melhor jogadora do mundo? A Carli Lloyd, dos EUA. Mas também gosto muito da Tobin Heath, porque me identifico bastante com ela.
Quais são os teus pontos mais fortes? A rapidez e imprevisibilidade.
E os fracos? O último passe. Acho que cresci muito de há dois anos para cá, mas sem dúvida que tenho de melhorar mais. E o remate também. Não tenho a técnica de remate que muitas miúdas mais novas têm, porque comecei a formação de futebol muito tarde, com 14/15 anos. Se tivesse começado desde pequenina a treinar com os rapazes ou num clube bom, se calhar era melhor.
Também achas que o facto de clubes como o Sporting e o Sporting de Braga terem apostado no futebol feminino vai ajudar ao crescimento da modalidade? Claro que sim. Os grandes dão melhores condições às jogadoras e comportamentos geram comportamentos. Mesmo os clubes mais pequenos que não têm os mesmos orçamentos vão tentar e preocupar-se em dar melhores e mais condições às jogadoras.
O que falta ao futebol feminino português é a profissionalização? Honestamente acho que não é isso. Claro que irá ajudar, porque a maior parte das jogadoras trabalha e ou estuda e sai a correr para ir treinar às 20h - no Braga treinamos de manhã, o que é muito bom. A profissionalização ia ajudar nesse ponto. Mas, por outro lado, acho que a seriedade individual de cada uma é que é fundamental. Sinto que ainda somos muito pequeninos. Há muita jogadora nova que, sem ter noção da qualidade que tem, acaba por perder-se porque não leva as coisas a sério como eu levei. Eu por acaso estava muito focada porque gostava e queria muito, por ambição. Mas têm que aparecer mais jogadoras.
Consideras injustas as diferenças a nível salarial e de promoção, entre o futebol feminino e masculino ? Não exijo que recebamos tanto dinheiro como os homens, mas devia haver maior investimento no futebol feminino.
Para ti o dinheiro não é tudo. Não. Mas claro que tenho de ganhar dinheiro, a minha mãe não é rica e tenho mais cinco irmãos. Tenho de ajudar. Mas, ao mesmo tempo, o que interessa é a paixão, até posso ir para fora e ir ganhar menos que no Braga, mas o facto de ir treinar mais vezes e ganhar projeção… Se quisesse só ganhar dinheiro ia para a China, que eles dão muito dinheiro. O que eu quero agora é evoluir como jogadora.
Quem são os teus ídolos? O Cristiano Ronaldo. É o expoente máximo do futebol. É o melhor do mundo.
Um dia gostavas de ser como ele? Não. Quero ter a minha história.