Luís Castro: “Então eu tiro um jogador porque ele não está a render e ele é que se chateia comigo? A mim é que me apetece partir-vos todos”
Luís Castro tem 55 anos e é treinador do GD Chaves
Rui Duarte Silva
Pôs o Rio Ave a jogar aquele que foi considerado por muitos como o futebol mais bonito da Liga 2016/17 e é a falar de futebol que se sente confortável, ainda que avise: “Há pessoas que falam de futebol sem perceberem nadinha. Às vezes digo: 'Vivo ao lado do hospital, mas não sou médico'”. Em 2017/18, regressa às origens, para treinar o Chaves, com as mesmas ideias que tinha em Vila do Conde e, antes, no Dragão, onde foi campeão pela equipa B e teve uma curta passagem pela equipa principal: "Quando chegamos a esse patamar, pensamos: 'Chegou a hora'. Não tinha chegado"
Porquê o Chaves? São desafios que vão aparecendo nas nossas vidas, e nós, muitas vezes, de forma impulsiva, vamos atrás deles. Tinha no Rio Ave — e também no FC Porto — uma passagem ótima, de excelentes recordações, na procura de objetivos que traçámos internamente. Tínhamos traçado qualidade de jogo, desenvolvimento de jogadores, desenvolvimento da equipa e metas classificativas. Sentíamo-nos confortáveis em dizer para fora que queríamos jogar para os oito primeiros, mas internamente queríamos jogar para os seis primeiros. Achámos que o trabalho com os jogadores e com o clube foi bom, foi uma relação ótima, mas entendemos que era altura de encerrar uma etapa. Muitas vezes não tem muita explicação. Às vezes penso para mim mesmo que talvez seja por ser transmontano, talvez seja um apelo do subconsciente. Nunca sabemos se as etapas vão ser de um ano, de dois anos ou de um dia. É a nossa vida neste momento. A inconstância da profissão é grande e a estabilidade é pouca.
Se calhar assim fica mais perto da família. É igual. Porto-Vila Real é como se fosse Chaves-Vila Real. Entendi que o desafio era interessante e a forma como nos querem e como se expressam, a quem é um pouco emocional como eu sou, muitas vezes faz diferença. Dou muita atenção a esse lado emocional das pessoas
Não acha estranho, numa altura em que ainda não acabou o campeonato, já sabermos que 'X' vai para um sítio e 'Y' para outro? Essa é a tal instabilidade de que falámos. O futebol habituou-se à avidez da troca e nós estamos inseridos na máquina e já vamos de forma natural. Mas há contratos e tudo isso é normal. Acho que não há anormalidade nenhuma. Neste caso eu terminava contrato a 30 de junho, como outros colegas terminavam, e é natural que haja trocas.
Foi o Luís que quis um contrato de apenas um ano, no Rio Ave. Sim, porque... Dez anos de FC Porto são dez anos numa casa com pouca exposição. Não sabia até que ponto as pessoas iriam ou não apreciar o meu trabalho com mais exposição, porque aparecer de vez em quando é diferente de aparecer sempre, e numa 2ª Liga só aparecemos de vez em quando e numa 1ª Liga aparecemos sempre. O trabalho tem outro peso e é bom as pessoas estarem à vontade connosco, serem livres de fazerem o que quiserem em termos de futuro.
Quando falava dos objetivos que tinha no Rio Ave, é engraçado ter mencionado primeiro o desenvolvimento dos jogadores e só depois da equipa. Essa ainda é uma visão de certa forma propícia à formação. Acho que agora é o modelo de negócio do futebol. Tem de ser pelo desenvolvimento individual.
Mas em teoria a equipa surge primeiro pela questão do rendimento coletivo, falando de futebol profissional. Para o contexto coletivo, sim, a equipa, o todo, está sempre primeiro do que as partes e é a soma das partes que nos leva ao todo e o desenvolvimento do todo para patamares cada vez maiores de qualidade. Digo sempre que tenho como objetivo desenvolver jogadores, mas nunca dissocio o contexto coletivo desse desenvolvimento individual, assente numa qualidade de jogo. Este ano acho que vai haver cinco vagas para a Europa. Normalmente quem atinge esses lugares são as equipas com estatuto europeu em Portugal, ou seja, os três grandes - FC Porto, Sporting e Benfica - e depois as duas que levam ali alguma vantagem sobre as outras - Vitória de Guimarães e Sporting de Braga. Depois há um lequezinho de três ou quatro equipas que vão aparecendo nessas lutas de vez em quando, não por estatuto, mas porque aqui e ali vão tendo bons plantéis que lhes permitem isso. Então, além de um jogo de qualidade, o grande objetivo é desenvolver jogadores, porque é o que resta a essas tais equipas sem estatuto. É consolidarem a presença na 1ª Liga, valorizando os ativos e vendendo, recrutando outros e prosseguindo o processo, até que um dia possam atingir o estatuto de jogarem para a Europa. Mas isso é um caminho que tem de ser percorrido assim. O que interessa primeiro é estarem bem sustentados na 1ª Liga, para depois partirem para outros objetivos.
Imagino então que na sua forma de treinar pouco tenha mudado do FC Porto para o Rio Ave. Não mudei nada. Apresentei a ideia de jogo que levava comigo, percebi que os jogadores estavam a recebê-la bem, percebi que eu estava confortável e eles também, e a partir daí fomos desenvolvendo cada vez mais aquilo que eram os nossos comportamentos, princípios e ideias. Foi dando resultado, as pessoas apreciaram a nossa forma de jogar e fomos evoluindo cada vez mais as propostas em cada treino, com mais complexidade, à medida que iam entendendo cada vez melhor, e acho que terminámos num nível muito bom. Isolando os 24 jogos que fizemos, ficaríamos no 5º lugar, à frente do Marítimo e do Sporting de Braga, e atrás do Vitória, a quatro pontos. Isso deixa-nos satisfeitos e deixa-nos certos de que aquele poderá ser o caminho, em função dos contextos que encontremos.
Houve muita gente a dizer que o Rio Ave era a equipa que jogava melhor na Liga. Sim. Em termos de estética, acho que produzimos um belo jogo, a par de outras equipas.
Estou a ver que não quer dizer que era a melhor. Não, não quero. Nunca o direi. Primeiro, porque não tive o tempo necessário para apreciar o que os outros jogavam, foquei-me muito na minha equipa. Depois, porque acho que devemos caminhar com uma ética de respeito para com os nossos colegas. Muitas vezes estamos a dizer que somos os melhores ou produzimos o melhor mas nem falamos que temos mais condições e melhores jogadores. O que consigo dizer é que jogávamos um futebol agradável, que acho que era um jogo estético interessante para quem estava a ver.
Em 2016/17, Luís Castro liderou o Rio Ave, depois de ter passado quatro épocas no FC Porto B - com uma passagem de três meses pela equipa principal dos portistas, em 2013/14, após a dispensa de Paulo Fonseca. Entre 2012/13 e 2006/07 foi coordenador da formação do clube
Rui Duarte Silva
Qual é essa ideia de jogo? [fala sem parar] Gosto que a minha equipa jogue com o bloco bem junto, a sair em construção por trás, com um pivô, um farol da equipa, que seja o coordenador todo do jogo, a formar triângulos à direita, à esquerda, com ligações entre os corredores feitas por vários jogadores, chegando juntos à frente. Gostamos que a nossa linha defensiva dê conforto à equipa quando estamos no momento ofensivo e que provoque os equilíbrios necessários para que quando perdemos a bola possamos, em vez de darmos passos para trás, dar passos para a frente — e isso só com uma boa colocação. Quando não temos capacidade para ganhar logo a bola, gostamos de montar linhas de cinco ou de quatro ou de três jogadores, em função da distância para a nossa baliza, e gostamos que o jogo seja interpretado por todos, sem exceção, quer no momento ofensivo quer defensivo, participando não 10 mas 11, com o nosso guarda-redes também a fazer parte desse coletivo. Gostamos de aparecer com muita gente na zona de finalização e servir quem lá está, não gostamos de cruzar para a área por cruzar, gostamos de jogar no último terço como jogamos no primeiro ou no segundo... É esta a ideia que transportamos. Umas vezes deu bem, também depende do adversário. Também damos muita importância aos pormenores, como a orientação do corpo, se está aberto, se está fechado, se tem os apoios bem colocados... Os jogadores sentiram-se muito bem com esta forma de treinar e de jogar.
Houve algum jogador surpreendido por treinar assim? O que os jogadores diziam é que se estavam a sentir bem. A minha preocupação, sempre que treino, é saber se o jogador se sente confortável. Estando ele confortável, eu também fico. Se ele sentir insegurança aqui e ali... O único problema que tive foi a linha alta. Jogarmos com 40 metros atrás da linha defensiva era um problema para algumas cabeças, porque havia ali espaço para explorar. Por exemplo, habituaste-te a ver espaço nas costas do Barcelona, e todas as equipas que jogavam contra o Barcelona chegavam com aquela ideia: “Vamos buscar aquele espaço.” Mas nunca conseguiam ir buscá-lo. Porquê? Porque aquele espaço existe mas é controlado. Nós é que estamos a dar o espaço, por isso sabemos o que estamos a dar e estamos confortáveis. Se estamos a dar é porque não precisamos daquilo para nada. Daí termos chegado ao final do campeonato sendo a quarta equipa que menos remates concedeu ao adversário — e demos aquele espaço todo... “Mister, nós a jogar tão altos, as equipas estão habituadas a jogar para ali...” “Calma, tranquilos. Vamos sofrer, mas o caminho vai ter de ser feito. Sofremos um pouco aqui e ali, mas não vamos desconfiar.” Esse foi o lado mais difícil de implementar na equipa, torná-la mais compacta e com a linha mais alta. Porque isso tem muitas implicações. Também temos de ter um guarda-redes que compreenda que espaço é aquele e que saiba controlar um espaço que normalmente era controlado por vários jogadores.
Numa entrevista que deu depois de conquistar o campeonato, Rui Vitória foi questionado sobre a lentidão de Luisão e retorquiu com o correto posicionamento dele e da linha defensiva. É isso. Para mim futebol é eficácia. Eficácia individual e coletiva, nos momentos certos e no global, no tempo todo de jogo. E quando nós temos jogadores que interpretam bem e são eficazes a perceber o que nós pensamos e o que queremos ver reproduzido, pômo-los a jogar. Acredito que seja isso mesmo que o Rui Vitória quis dizer: tinha um jogador que interpretava bem aquilo que ele pensava e que era eficaz. A eficácia não tem idade.
Quem foi o jogador que interpretou melhor as suas ideias? Todos eles perceberam bem. Mas há alguns que são bem mais rápidos do que outros, por isso é que há o período pré-competitivo. Porque é que temos 5 semanas antes de começarmos o campeonato?
Para correr na mata [risos]. [risos] Era. Ainda hoje tive uma conversa com o professor Vítor Frade e abordámos esse tempo. Eu, apesar de ser um crítico da forma como treinava enquanto jogador, fazia o mesmo enquanto treinador, porque não sabia fazer mais nada. Aquilo dava-me conforto, e eu fazia igual. Porque nós só fazemos aquilo que sabemos. Portanto, esse período pré-competitivo, que existe, porque é que ele é tão largo? Se todos compreendessem da mesma maneira, nós numa semana púnhamos a equipa a jogar. Normalmente ao fim de cinco semanas, 80% do plantel domina a ideia e é capaz de pô-la em prática com eficácia. Mas quando a ideia é integradora é mais fácil perceber. Porque, se a bola está no ala direito, toda a equipa se ajusta em função daquilo, mesmo o guarda-redes. Então, estão todos ligados ao que está a acontecer. Isso é muito desafiador para eles, e todos participam ativamente na proposta de treino, porque ela faz apelo ao que nós queremos que aconteça no jogo. Tem de acontecer no treino para acontecer no jogo, e depois do jogo volta a acontecer no treino, consoante ter sido melhor ou pior, e andamos à volta disto.
Mas quando começou a ser treinador, em 1995, ainda não pensava assim, obviamente. Não. Houve uma coisa que me marcou muito. Em Vieira de Leiria, onde vivia — a minha mãe era professora lá e o meu pai era militar na base de Monte Real —, havia um torneio de futebol de cinco em que entravam as empresas e as fábricas da Vieira e das freguesias à volta. Nós, miúdos de 14 anos, formámos uma equipa. Chamava-se “Rumo à Vitória” — pelo menos era o que achávamos [risos]. Íamos jogar contra jogadores trintões, que trabalhavam por ali, e chegámos às meias-finais, num universo de muitas equipas. Isso foi um momento marcante para mim, porque deu para perceber mais tarde que jogando bem, mesmo quando os outros são muito grandes e fortes, talvez consigamos bons resultados. O certo é que à medida que fui crescendo e jogando foi aparecendo muito esse lado de que falavas há pouco.
Da força. Era o correr na mata, ser mais forte, mais resistente... Vivenciei isso tudo e sei do que gostei e do que não gostei. Mas, voltando à pergunta anterior, só somos de determinada forma quando dominamos, quando entendemos o que fazemos. Porque eu sabia que queria jogar assim, mas não sabia como é que havia de treinar para jogar assim. Isso são coisas que só ao longo das nossas experiências de vida, vivenciando, refletindo e descobrindo, é que percebemos. Vou ser melhor treinador daqui a cinco anos do que sou hoje, não tenho dúvida nenhuma. Acho que o tempo — desde que queiramos absorver informação, conversar, partilhar, ler — ajuda sempre. Temos é de selecionar o que queremos. Não posso permitir que a televisão me entre pela casa. Não posso permitir que os sites me dêem o que eu não quero. Não posso ler todos os livros que me aparecem à frente. Tenho sempre de selecionar o que quero absorver, neste mundo de tanta oferta, se não fico totalmente perdido naquilo que é a minha profissão. Nós ouvimos tanta gente que depois já nem sabemos o que é que queremos e para onde vamos.
Antes de começar a carreira de treinador, no Águeda, onde terminou a carreira de jogador, Luís Castro representou o Vieirense, o União de Leiria, o Vitória de Guimarães, o Elvas e o Fafe
Rui Duarte Silva
Em Portugal há pouca gente a falar bem de futebol? Não, acho que há muita gente a falar bem de futebol, mas também há muita gente a falar mal. Não é mal... Vou emendar. É falar de diferentes áreas, que ficam com mais volume do que outras. Sobre o jogo não há muita gente a falar, mas sobre a arbitragem há. Acho que o futebol hoje é uma boa indústria para vender, e, façam o que fizerem, vende, mas depois nós em casa é que temos de selecionar o que realmente nos interessa. Há públicos para tudo. Mas nós que vivemos o fenómeno não nos devemos deixar perturbar por aquilo que anda à nossa volta, se não ficamos esmagados, somos triturados pela informação. Eu não tenho Facebook nem Twitter, não é por não achar importante ter, mas acho que a nossa privacidade deve ser aquela que queremos. Enquanto profissional, o que é que tenho de fazer? Criar uma boa proposta de treino, chegar lá, ser o mais competente possível naquilo que faço. Termino - recolho, vivo a minha vida familiar e depois volto lá e volto a dar. É nesta rotina que vivo.
Se calhar isso hoje já não chega para a tal indústria. Para mim, chega. Seleciono o livro que quero ler, o programa que quero ver, os amigos com quem quero falar. Não preciso de mais nada. Nem Facebook nem Twitter, não quero saber. Tenho as pessoas importantes da minha vida que consulto sempre. Consulto um adepto típico, que neste caso é a minha filha mais nova, que vê os jogos todos e diz-me sempre se jogamos bem ou mal, na opinião dela, que é uma opinião de adepto - tal como a minha outra filha e a minha esposa. "Não jogaste nada", "jogaste pouco", "estavam a dizer mal de ti"... Coisas assim [risos]. Oiço a minha equipa técnica, que faz uma análise do jogo, e oiço uma ou outra pessoa da minha confiança, ligada à área do futebol. E não quero saber de mais nada. Se fico mais contente com a crítica boa? É claro que fico. Mas não me vai desviar daquilo que quero fazer. No fundo, não quero ser poluído por ninguém.
José Mourinho, quando ganhou a Liga Europa, disse que “os poetas” ganham menos do que os outros. Vê-se como “poeta”? Não. Acho que o José Mourinho, a dizer o que disse, certamente queria atingir um alvo, algo que ele faz muito bem. Estamos a falar de um dos melhores treinadores do mundo. Para falar dele é sempre para falar de forma respeitosa. É uma das minhas referências. Podemos estar na vida de variadíssimas formas, mais poética ou menos poética. Nada é condenável. Há treinadores que são mais resultadistas e outros menos resultadistas, há imensas formas para atingir um resultado, e nós escolhemo-las. Agora, há pessoas que falam de futebol sem perceber nadinha de futebol [risos]. Às vezes digo: “Vivo ao lado do hospital há muitos anos, mas não sou médico [risos].” Há pessoas que pensam que por viverem ao lado do futebol há muitos anos já são treinadores.
Teve oportunidade de ir para a China, mas não quis... Não quis sair, porque gosto muito de Portugal. Acho que nunca vou ser capaz de sair de Portugal.
Se aparecesse o Barcelona? Isso é um absurdo [risos]. Mas uma coisa senti quando tive essa oportunidade: o dinheiro não é tudo. Senti-o na pele. Quer dizer, vou relativizar: não é tudo quando já atingimos o conforto necessário para a nossa família. Sou daqueles que, se puder treinar em Portugal, não vou a lado nenhum, mesmo que me ofereçam mais dinheiro. Vou tentar resistir ao máximo enquanto houver mercado para mim aqui. Deixando de haver, pois então tenho de ir. Mas espero que não me aconteça.
Por que razão não foi hipótese para o FC Porto esta época? Porque as pessoas competentes que estão dentro do FC Porto entendem que não tenho o perfil, neste momento. Acredito muito nisto que estou a dizer. Se o Chaves me escolheu é porque entendeu que eu era a pessoa com o melhor perfil para o lugar. Temos de esperar que alguém entenda que temos o perfil adequado. Um treinador, para mim, é uma marca. Depois, as marcas estão no stande, e quem quer compra a marca de que gosta mais.
A marca Luís Castro teve muito a ver com que aprendeu no FC Porto e com Vìtor Frade? O professor Vítor Frade está comigo ao longo de dez anos que estive no FC Porto. Ele já lá tinha estado antes, mas na altura entrou novamente ao mesmo tempo do que eu. Entenderam que nós tínhamos os perfis para estar na formação, com o professor Vítor Frade a ser o metodólogo e eu o diretor técnico. Naturalmente trabalhámos sempre em contato diário e fui ouvindo muito o professor. É verdade que muitas vezes era difícil entendê-lo.
Curiosamente, a maioria dos alunos dele diz isso. Muitas vezes peço ao professor para parar e para me deixar respirar, para eu perceber um bocadinho, ou então para não avançar mais porque não percebo mesmo nada. Para mim, explicar o meu treino numa base científica é difícil, porque não tenho curso de educação física, não estudei determinadas áreas do treino. E o professor responde-me a isto de uma forma muito interessante: "Sabe, Luís, muitas vezes a arte ultrapassa a ciência". Portanto, às vezes, não é preciso termos base, só consciência daquilo que fazemos e da arte que temos ao fazer.
Luís Castro liderou a equipa principal do FC Porto no final da época de 2013/14, após a saída de Paulo Fonseca
MIGUEL RIOPA/GETTY
Que equipas é que gosta mais de ver? Para já, gosto de consumir futebol. E gosto de ver o Barcelona, o Real, o Dortmund, o Bayern... Gosto também de ver o jogo resultadista, aquelas equipas pragmáticas, que querem é ganhar, não interessa se é para encostar atrás o bloco. Defender bem também é uma arte. E é uma arte chegar a um resultado sem jogar bem. As pessoas acham que arte é só aquilo que esteticamente é muito bonito. Não. Nós visitamos um museu e estão lá pintores das mais variadas correntes e são todos bons. Uns agradam-nos, outros não. Há diferentes formas de expressar a arte e no futebol é igual, há diferentes formas de jogar. Para ti, ganhar um jogo sem jogar bem talvez seja uma violência, mas eu também aprecio isso. Quem sou eu para andar aí a criticar aos sete ventos? A única coisa que nos resta é agirmos à imagem daquilo que nós pensamos.
Tem saudades da formação? Não tenho saudades da formação, tenho saudades dos jogadores que estiveram comigo na formação, que é diferente. Sou mais virado para a exigência do profissional, sinto-me mais realizado.
Trabalha-se bem na formação em Portugal? Muito bem. Bem melhor do que aquilo que as pessoas pensam que se trabalha. Enquanto Inglaterra tem um tempo de treino de 30 e tal horas por semana, o nosso anda pelas sete horas, e isso já diz bem daquilo que o treinador português é capaz de fazer. O treinador português é um treinador fantástico. Quando apanha miúdos que têm zero de desporto escolar, zero de atividade física na rua... Quando se pega nestes jogadores e ainda se consegue pôr uma equipa a jogar e esses jogadores são selecionados para a seleção e vão a finais de campeonatos da Europa e do Mundo, e ganham torneios sub-17 e sub-19. É fantástico. Acho que o treinador português tem uma capacidade que é reconhecida no mundo e que em Portugal também já é, mas é interessante que foi preciso o mundo reconhecer para Portugal reconhecer também, quando devia ser ao contrário.
Como é que começou a carreira de treinador? Acho que comecei a ser treinador aos 15 anos. Fui capitão de equipas nos iniciados, nos juvenis, nos juniores...
Em Leiria? Em Leiria e no Vieirense. Com 21 anos já era capitão do União de Leiria. Em Guimarães, como não jogava, era capitão das reservas. Depois fui para Elvas e fui capitão do Elvas na 1ª Liga. Acho que um capitão é um treinador. Habituei-me desde muito cedo a liderar e senti que podia ser. Quando terminei, aos 35 anos... Quer dizer, antes já tinha tido uma aventura com os sub-13 do Águeda e gostei muito, e também tinha sido assistente enquanto jogador, porque os clubes tinham menos capacidades e ainda havia aquela coisa de ajudar. Ainda hoje tenho residência em Águeda, vivi lá durante muitos anos da minha vida de jogador, inclusivamente com períodos muito difíceis. Cheguei a ter de ir, enquanto capitão, à procura de um presidente para o clube. Não tínhamos direção e eu era capitão, orientava o treino, era tudo [risos]. As dificuldades ajudam a que apareçam coisas novas em nós. Aos 35 anos, quando terminei a carreira de jogador, comecei de forma efetiva como treinador. Foi aí que começou o meu caminho, pelas várias divisões, porque percorri-as todas até chegar à 1ª Liga.
Então percebeu logo que queria ser treinador. Os meus jogadores são testemunhas disso. Mas num determinado momento da minha vida tirei o 2º nível de treinador e fiquei por ali. Estava numa zona de conforto. Treinava ali à volta de Águeda, a minha esposa era professora, eu para além do futebol tinha outra atividade, por isso financeiramente estava confortável... Então, por mim estava bem assim. Entretanto abriu o curso para o 3º nível de treinador e eu não quis ir. Mas a minha esposa disse-me: "Vai tirar porque pode aparecer uma oportunidade e vais ficar triste por não poderes pegar por não teres habilitações". E eu dizia que não, porque tinha de ir para Rio Maior um mês, em regime de internato, e era muito tempo fora da família, com a minha filha ainda pequena. Mas ela insistiu tanto que eu lá fui. E as oportunidades de facto surgiram. E o 4º nível completei quando já treinava na 1ª Liga. Ainda bem que o fiz, porque realmente as oportunidades vão surgindo e hoje quando estou com pessoas a quem posso dar conselhos digo-lhes sempre: vão a todas. Tudo o que seja de cursos, seminários, coisas para evoluir na carreira, porque pode ser tudo necessário.
Quando estava no FC Porto, chamaram-no para a equipa principal, o presidente... [interrompe] Sim, foi o senhor presidente...
Depois dessa conversa, quando ficou sozinho, pensou “consegui”? Sim. Há uma coisa ainda por cumprir. A nossa vida é cheia de vários objetivos, uns são cumpridos, outros não. Um dos meus objetivos é ser campeão nacional. Não estou a dizer que é em Portugal, em Espanha, na Finlândia... É onde for. Gostaria de ser campeão nacional, é um objetivo de vida. E nós, quando chegamos a um patamar como o FC Porto, pensamos: “Será que se vai cumprir o meu objetivo? Será que este é o caminho?” São os pensamentos que nos invadem na altura. “Se estou aqui, se calhar chegou a hora.” Mas não tinha chegado a hora [risos]. Paciência. É continuar.
É interessante que depois disse que poderia ter sido mais competente no FC Porto. Claro.
Normalmente, os treinadores não veem as causas do insucesso neles próprios. Quando as oportunidades nos surgem, é verdade que podemos ter um conjunto de condicionantes, mas nós, treinadores, é que temos de assumir as coisas. Veja bem o que vou dizer [dá mais ênfase a cada palavra]: o treinador, a treinadora. É fantástico. Está tudo nas nossas mãos. Se não conseguirmos é porque não conseguimos. Então, o que vamos fazer? Seguir caminho até conseguirmos. Haverá outras oportunidades. Não podemos ficar frustrados. Haverá tristeza porque não conseguimos, mas é seguir em frente, para um dia conseguirmos.
Luís Castro no FC Porto, em 2013/14
MIGUEL RIOPA/GETTY
Por exemplo, quando não conseguiu eliminar o Benfica da Taça... Reviu aquele jogo? Não, não vi mais. Corta. Acabou. Nem vi o jogo de Nápoles, e passámos a eliminatória. Nem o jogo em casa com o Sevilha, que ganhámos. Tenho lá os DVD, mas não peguei mais neles. Foi um flash na minha vida. Senti-me treinador na altura, mas hoje, olhando para trás, três meses da nossa vida não são nada. Agora, se me perguntar se foi um prazer, é claro que foi, foi fantástico. A eliminação do Nápoles em San Paolo é um momento marcante da minha vida enquanto treinador, mas é um flash. Toda a gente a dizer que íamos ser massacrados lá, com as adaptações que tivemos de fazer... Foi um momento fantástico, como a despedida do Dragão, quando faço o meu último jogo, uma vitória contra o Benfica num jogo que já não conta, mas para mim contou muito. Contou muito ter ganho os jogos todos no Dragão enquanto treinador, é uma coisa que fica dentro de mim. Mas está para trás e não vale a pena reviver. Siga.
Pode haver hipótese de reviver um dia... Não sei, não vivo obcecado por isso, nem por nada. Só por viver o meu dia a dia bem, para o meu trabalho ser apreciado.
Ser campeão na 2ª Liga com uma equipa B também foi um feito notável. Não foi suficientemente valorizado, mas o que tive oportunidade de dizer na altura, repito agora: valorizei e os meus jogadores valorizaram, e nós sabemos bem o que passámos para consegui-lo. Isso para mim chega. Ver os meus jogadores felizes para mim é essencial. Trabalho para progredir na carreira mas também para ver os meus jogadores felizes e confortáveis no dia a dia. São momentos inesquecíveis. Ser campeão com uma equipa B... as pessoas nem imaginam o que é isso. Porque a dinâmica de uma equipa B é ter jogadores, não ter jogadores, jogadores na seleção, jogadores para a A, convocatórias à meia-noite, depois no outro dia não sabes que equipa vais pôr porque um tem de ir de repente à equipa A... Toda essa dinâmica de equipa B só quem está dentro dela é que entende bem o significado. Mas não é... Um ponto de diferença às vezes dita um campeão. E é por um ponto que se fica mais ou menos satisfeito?
Para si, naquela altura, era mais importante o crescimento individual de cada um deles? Sim, isso era o principal.
Quem é que já conhecia desde miúdo no clube? Houve muito jogadores que cresceram comigo enquanto diretor técnico e depois entraram na B. A equipa era feita à base desses jogadores: o Rafa, o Tomás... Não me quero esquecer de alguns, porque eram muitos. O Francisco Ramos, o André Silva, o Graça...
Conhecendo esses jogadores aos 14, 15 anos, é possível dizer "este vai ser jogador" ou isso é um mito? É um mito. Não arrisco dizer isso, porque há tantas variáveis que influenciam... O contexto social, o contexto familiar, o agenciamento, o treinador, a equipa - tudo isso vai influenciar muito o crescimento dos jogadores. Muitas vezes nós treinadores pensamos que somos os grandes agentes influenciadores do jogador, mas somos os últimos agentes. Primeiro estão os amigos, depois estão os pais, depois está o agente, depois os media e só depois estamos nós. Mas nós pensamos que não, pensamos que estamos a dominar a situação por completo.
Sentiu isso? Sinto isso. Nós não dominamos por completo um grupo a nível daquilo que é a sua estabilidade emocional. Podes chegar ao balneário e teres a tua conversa com eles, uma conversa que sentes que está a fluir, estás a passar a tua mensagem, eles estão a dar um feedback porreiro através do olhar e da expressão corporal - porque quando a conversa interessa eles fixam-se em ti, parece que já estão prontos para jogar. Mas depois no outro dia já chegam de forma bem diferente, porque entretanto falaram com o agente, com a esposa, com o pai, com a família, com os amigos, leram uma notícia qualquer... Ou seja, tu puseste-os aqui [gesticula], eles voltam para ti aqui. Mas temos de ser nós a pôr tudo no sítio outra vez, por isso é que somos treinadores. Outros partem, nós arranjamos.
O lado emocional tem muita importância? Sim. O lado emocional é fantástico. Sou muito emocional, gosto de ter relações muito próximas, mesmo com os meus jogadores, sou muito afetivo. Mas não o posso ser sempre. O treinador às vezes tem de vestir outra pele, porque tem de andar a entrar e a sair do grupo, entrar, sair, entrar, sair. E toda a gente tem de perceber que estamos distantes do grupo - eles são eles, nós somos nós. O respeito que tenho por eles é o respeito que eles têm por mim. Quando isso é entendido, é meio caminho andado para termos sucesso em termos de condução de grupo. Quando não entendem, quando que pensam que por nós termos entrado já não saímos mais, então está tudo estragado. Acho que há uma palavra que tem de estar sempre presente na nossa ação diária: verdade. E esse lado emocional nunca se pode sobrepor a isso. Um jogador tem saber exatamente porque é que joga um e não outro. Tem de saber exatamente porquê e dito na frente dos colegas. "Tu jogas porque estás melhor do que ele nisto, nisto e nisto, mas não quer dizer que sejas incompetente, ele é que é melhor neste momento. Daqui a 15 dias podes ser tu melhor e cá estarei para dizer isso". Obviamente dizendo isto não de uma forma tão crua, tão cruel. Mas isto é fundamental para conduzirmos grupos. Já reparaste que nós muitas vezes substituímos um jogador e ele é que fica chateado connosco? Então mas eu estou a tirar um jogador do campo porque ele não está a render e ele é que se chateia comigo? Eu dizia-lhes: "Amigos, calma lá, vamos aqui perceber uma coisa: quem está lixado convosco sou eu. Não ponham as coisas ao contrário. Não vão por aí. A mim é que me apetece partir-vos todos, não são vocês a mim. Quem faz as substituições não sou eu, são vocês. Quem faz as equipas não sou eu, são vocês". Ok, há o lado estratégico do jogo e aí entro eu, porque ninguém é imune ao lado estratégico do jogo. Mas acho que essa verdade tem de ser regra. O jogador pode ficar triste por ser substituído ou por ficar de fora, mas chateado é que não, porque chateado fico eu, que o contratei e ele não está a render.
Isso também é válido para presidentes, quando contratam treinadores e as coisas não correm bem? Claro. Desde que se cumpra aquilo que está no contrato, tudo bem. A mim não me custa nada admitir que um presidente se possa enganar na minha contratação. Pensou que eu tinha determinado perfil, cheguei lá e não tive, então está no direito de me dispensar. Se acho bem? Isso já é outra história. Temos de perceber que não podem ganhar todos. Esqueçam. Só um é que é campeão, dois têm de descer. Muitas vezes não é uma questão de competência. Podiam estar lá todos os melhores e mesmo assim alguém perdia. É a vida. É a nossa condição humana. Não somos deuses. Falhamos e temos de ter a capacidade de perceber que falhamos e de fazer uma análise para percebê-lo.
No FC Porto não havia esse hábito de falhar e agora... Claro, a rotina instala-se no ser humano, e para retirá-la é muito difícil. Quando perdemos uma rotina de que gostamos queremos instalá-la outra vez. É isso que os clubes procuram, quer FC Porto, Sporting, Benfica, Rio Ave, Chaves... Querem rotinas de satisfação. Acho isso normal. Só não acho normal a agressão verbal e a má educação dentro da estrutura. De resto, o futebol vive da massa que aplaude, que assobia... No dia em que for ópera, o futebol está perdido. Nem nós, treinadores, sentimos a paixão da mesma forma. Gostamos de chegar a um estádio e ouvir barulho. Isso é que é viver o futebol e a nossa paixão. É o que nos faz ser [enfâse na palavra] treinadores.
Versão integral da entrevista publicada na edição de 22 de julho de 2017 do Expresso