Entrevistas Tribuna

Joana Schenker: bodyboarder, vegetariana e anárquica pacífica

Joana Schenker: bodyboarder, vegetariana e anárquica pacífica
Marcos Borga

É tricampeã nacional e europeia de bodyboard, e houve um tempo em que mesmo ganhando e sendo a melhor de todas não podia receber o título. Joana Schenker nasceu em Sagres, filha de pais alemães há 28 anos, mas só em 2014 obteve nacionalidade portuguesa para competir e ganhar por Portugal. É vegetariana desde os 10, faz exercício todos os dias, dentro ou fora de água, embora recusasse ir às aulas de Educação Física quando era miúda

De onde vem o Schenker?
É alemão. Os meus pais são ambos alemães, vieram para o Algarve há mais de 30 anos, assentaram lá para criar a família e as filhas todas. Sou a mais velha de quatro. E pronto.

Porque escolheram ficar perto de Sagres?
Hum, não sei, foi um bocadinho por acaso. Acho que gostaram da aura do lugar, porque, realmente, é um sítio muito especial. Muitos estrangeiros gostam daquilo e ficam lá. Foi o meu destino, nasci lá.

E como apareceu o bodyboard?
Sagres é uma terra com grande tradição no bodyboard. Aliás, praticamente todos os locais e jovens o fazem, quase ninguém faz surf. Temos ondas muito boas, dentro de Portugal e da Europa, é dos melhores lugares para o bodyboard, especificamente, por causa da forma das ondas. Então, os meus amigos da escola faziam todos bodyboard e eu não tive muita hipótese. Comecei também.

Pergunto porque, em Portugal, o mais provável é que seja o surf a apanhar qualquer miúdo.
Lá há uma comunidade de bodyboard muito forte e, por influência dos amigos, os jovens acabam por enveredar por essa modalidade, automaticamente.

Sendo alemães, os teus pais acharam piada a ver a filha no mar?
Acho que não. A minha mãe sempre me levou à praia e ficava lá comigo. Foi das primeiras pessoas a investir muito tempo nisto, quando percebeu que eu gostava. Ao início, ela achava estranho o facto de eu não ir à água, quando os meus amigos rapazes iam. Perguntava-me: “Então, não queres ir também?”. E eu, pá, quero. E foi assim. Os meus pais sempre me apoiaram a 100%.

Nunca ficaram com o coração nas mãos?
Algumas vezes, de certeza [ri-se]. Mas a minha mãe não me dizia, ficava lá caladinha.

Soube que, quando eras miúda, não gostavas muito de fazer exercício na escola.
Não fazia Educação Física, recusava-me. Do quinto ao nono ano não fiz uma única aula, o que é estranho, porque adorava exercício físico. Já na altura corria muito, fazia montes de atividades. Mas não gostava daquele ambiente de teres de fazer uma coisa só porque o professor manda. Sempre tive a mania do ninguém manda em mim, um bocadinho [ri-se de novo]. Não me conformava com alguém a impor-me algo, então foi assim, fiz uma espécie de boicote.

E os professores?
Não gostavam muito de mim. Mas eu não faltava às aulas: ia e aproveitava o tempo em que lá estava para estudar para outras disciplinas para, depois, ir para a praia fazer bodyboard.

Mas essa aversão a serem-te impostas coisas existia em outras disciplinas?
Não, porque era a questão física. Nós somos donos dos nossos corpos. Não sei, foi uma fase de rebeldia [volta a rir-se]. Como tinha muito boas notas em todas as outras disciplinas não havia problema em chumbar a Educação Física. Chumbava, literalmente. No 7º ano em que tive 5 a tudo e 1 a Educação Física. Aliás, o diretor da escola até chamou a minha mãe ao Conselho Diretivo e disse que eu era o exemplo de anarquia pacífica.

Como são umas 24 horas normais para ti?
O meu dia anda sempre à volta do mar, o mar é que manda. Basicamente, acordo cedo, vejo como estão as condições, se estiverem boas como rapidamente e vou para a praia; surfo dois ou três horas, volto para casa e almoço, se o mar estiver bom outra vez, volto a surfar à tarde; se à tarde o vento roda e o mar fica mau, fico em casa e faço treino fora de água. Dou sempre prioridade ao mar, acho que o treino dentro de água é o mais importante. Depois, consoante as ondas, faço todas as outras coisas que a minha vida exige. Se estiverem ondas todos os dias, estou todos os dias a surfar.

E o bom de Sagres é ter praias orientadas para todo o lado, todas as direções de vento e ondulação.
Exatamente. Há tanta escolha que é difícil haver um dia em que não vá à água. Isso só aconteceu quando tenho obrigações que me tiram dali. Geralmente, surfo todos os dias.

Quando isso não acontece, ficas a bater mal?
Um dia inteiro aguento. Mas se forem três dias começo a ficar nervosa. “Epá, há três dias que não vou à água!”. Acho que já faz parte do meu dia-a-dia, é como tomar o pequeno-almoço.

Chega ao ponto de te afetar o humor?
Se for muito tempo, sim. Às tantas, a pessoa começa a sentir aquela energia que não está a ser gasta. É muito importante manter o ritmo de estar dentro de água, sinto logo quando fico quatro ou cinco dias sem ir à água, por causa de uma viagem, por exemplo. É mau, detesto fazer isso. Tenho de ir à água nem que seja só para remar.

Tornaste-te vegetariana muito nova. Como?
Desde miudinha que senti que era um bocado estranho comer os animais, que era errado. Gostava tanto deles que me fazia confusão. No entanto, gostava do sabor, é bom, não tenho nada contra o sabor da carne e do peixe. Mas só aos 10 anos é que tive a força de vontade para parar de comer. Depois, com essa idade, a minha mãe levou-me à Índia e, quando voltei, nunca mais toquei em carne ou em peixe. Tive uma espécie de momento de crescimento na viagem e tomei essa decisão. Nunca mais comi, já faz 20 anos.

Os teus pais são vegetarianos?
Não, não, o meu pai comia carne e peixe, as minhas irmãs também, a minha mãe é que só não comia carne vermelha.

Achas difícil ser vegetariana em Portugal?
Hoje já não, mas na altura, sim. Era e tive muitos anos a correr os campeonatos nacionais e comer fora, num restaurante, era complicado [ri-se um pouco]. Comia sopa de legumes, saladas e omeletes, basicamente. Comi muitas omeletes. Agora já há cada vez mais. Como era miúda também não tinha muita noção de como pedir as coisas. Hoje, como gosto de cozinhar, sei como pedir um prato, mesmo que as pessoas do restaurante não saibam, eu sei que eles têm alguma coisa para mim [mais um riso].

Porque achas que não há mais atletas de alta competição que sejam vegetarianos?
Não há muitos casos, mas acho que, nos últimos dois anos, houve um boom. Não tanto no bodyboard ou no surf, mas no fisio-culturismo há muita gente a tornar-se vegan. As pessoas dos músculos. O homem mais forte do mundo é vegan, por exemplo. Há muitas pessoas que sentem que recuperam melhor, sentem-se mais leves, mais ágeis. Acho que estamos num ponto de viragem.

Consideras uma vantagem ser vegetariana e atleta?
Sim, tenho tudo o que preciso, sinto-me sempre bem e não tenho qualquer deficiência. Como cresci a alimentar-me assim, já é uma coisa normal. Claro que uma alimentação vegan ou vegetariana tem que ser equilibrada, não pode ser à base de coca-cola e batata frita, que também é vegetariano [solta uma gargalhada]. Os legumes e as leguminosas têm tudo.

Tens uma página de Facebook em que partilhas receitas. Um dia vais fazer negócio disso?
Gostava! Gosto muito de cozinhar e sou super curiosa com tudo o que é comida. A página surgiu porque, às tantas, no meu Facebook, recebia mensagens todos os dias sobre comida. Tirava fotografias aos meus pratos, todos coloridos e bonitos, e as pessoas ficaram curiosas. “Tenho aqui um alho francês, o que é que eu faço?”, e eu, “Pronto, corta às rodelas!”. Assim é mais fácil. Agora a página está um bocadinho parada porque é difícil, não tenho tempo para fazer tudo, mas noto uma abertura enorme das pessoas para aprenderem. Ser vegetariano não é muito difícil, há uns truques na cozinha que fazem com que, de repente, todos os pratos saibam bem. Faço pratos diferentes e ninguém se queixa [ri-se].

Voltando ao bodyboard, só em 2016 conseguiste fazer o circuito mundial na íntegra. Já tinhas 28 anos. Isso não foi frustrante?
Foi. Acho que se o tivesse feito há cinco anos, ou mesmo mais cedo, a minha evolução tinha sido melhor, obviamente. Há atletas no tour que têm 20 anos e já lá competem e eu tenho quase mais 10 anos do que elas e estou a começar. Por outro lado, estou muito feliz por, finalmente, ter conseguido. Estive tantos anos a correr os nacionais e os europeus e nunca consegui ter os apoios necessários para fazer o Mundial. Só quando a cerveja Sagres entrou, e quando o município começou a apostar mais forte em mim, é que foi possível. E no meu primeiro ano acabei logo em 4º. Percebi logo que é ali que tenho de estar.

Quanto custa fazer o circuito mundial?
À volta de 15 mil euros. E estou a contar por baixo. Só para terem uma noção, este ano já estive no Chile, durante três semanas, no Japão, agora estou em Portugal e depois ainda faltam as Canárias, a Madeira e uma data de coisas. Eu não paro em casa.

O que poderia ser feito para o surf não atrair quase toda a atenção que vai para os desportos de mar?
Acho que as marcas têm de começar a olhar para os atletas em si, para o potencial que eles têm. Muitas vezes apenas se olha para a modalidade e esquece-se que há ali personalidade que são muito rentáveis se fossem trabalhadas. Têm que ser expostas. As marcas têm de pegar nos atletas, dar-lhes destaque, e depois é quase como uma bola que se trabalha sozinha.

Porque achas que o surf pega mais do que o bodyboard em Portugal?
Acho que é uma questão de moda, mas não sei. Ainda hoje estou para descobrir, também. É algo que nem começou em Portugal, porque nós temos mesmo muitos praticantes de bodyboard, por isso é que me custa a perceber. Não sei se é fixe, ou se não fica fixe, se é uma questão de imagem…

Em teoria, o bodyboard é mais espetacular que o surf, por ter mais manobras aéreas.
Exatamente. E, se olharmos para o circuito mundial, as ondas, muitas vezes, até são mais impressionantes, como El Frontón, nas Canárias. Até há bem pouco tempo, o bodyboard deu muito mais alegrias a Portugal do que o surf. Mas os bodyboarders têm que lutar o triplo para conseguirem as mesmas condições. Senti isso: já fui patrocinada por uma marca de surf, tinha muito melhores resultados e não recebia uma décima parte do que os surfistas recebiam. De tal maneira que me fui embora. Mas, no fundo, não há uma explicação. São rivalidades que se criam lá fora e que são importadas para cá. O surfista, por norma, tem uma personalidade um pouco mais arrogante. O bodyboard é uma modalidade muito humilde.

Antes até se sentia um bocado clima de guerra dentro de água, certo?
Era, mas acho que agora está melhor. Cada vez mais as pessoas respeitam o que as outras fazem no mar. Num dia bom, com ondas muita boas, estão lá surfistas e bodyboarders, estão todos a fazer a mesma coisa, há um respeito mútuo. Mas, normalmente, a questão mais divisória está no surfista mediano. Não são os mesmos bons que julgam os outros. É mais aquele wannabe, de fim de semana, do cabelo e tal.

Mas não chegámos ao ponto do Havai, por exemplo, onde há praias para surf e outras para bodyboard.
Nem nunca vamos chegar, espero. Não faz sentido nenhum. Cada vez mais temos que ver os que as pessoas fazem na água e julgá-las pela performance, não pela prancha. É como tudo no mundo, temos que ser mais abertos às diferenças.

Marcos Borga

Como te está a correr o circuito este ano?
Neste momento estou no quarto lugar, mas ainda faltam quatro etapas, muita coisa pode mudar ainda. A etapa no Chile correu-me mal, fiquei em 12º, mas com o 4º lugar no Japão consegui subir na tabela.

Joana Schenker campeã do mundo, é expectável?
Não sei, é um sonho e um objetivo. Quando as pessoas me perguntam não gosto de dizer que sim, vou ser campeã do mundo. Não gosto de prometer coisas que não controlo. Mas o sonho é esse.

Quando te comparas a outras bodyboarders que já lá estão há muitas anos, vês nelas algo que não conseguirias fazer?
Não, acho que está tudo ao alcance. A maior diferença é a experiência em vários tipos de ondas. O circuito passa por ondas muito distintas umas das outras. Em Portugal treino muito em fundo de areia, em ondas como esta [estamos na Praia Grande e Joana aponta para o mar], e se chego ao Chile e tenho uma onda com fundo de pedra, onde nunca surfei, é quase como uma aprendizagem do zero. Isso é o maior desafio sempre que saio para fora - adaptar-me a condições para as quais nem tempo tive para treinar. Chego lá e estou logo no campeonato.

Há uns anos falou-se muito no facto de seres luso-alemã. Chegaste a ser campeã nacional sem ganhar, oficialmente, o título. Chateava-te?
No início não, porque não era por não ter um título oficial que sentia que não tinha ganhado. Mas, depois, comecei a perceber que isso me estava a prejudicar em termos de patrocinadores. Até nas entrevistas, porque não podia dizer que era campeã nacional quando não era. Explicar esta situação toda era um bocado chato. Não podia representar a seleção nacional…

Só há três anos é que o começaste a fazer.
Sim, desde 2014. Até que comecei o processo de nacionalização, que demorou um ano a concluir até conseguir tooodos os papéis. Agora é muito melhor, estou em pé de igualdade com todos os atletas, não tenho de explicar nada. Sempre foi um bocado estranho - nasci em Portugal, fiz toda a minha vida em Portugal, o meu percuso todo também, e não poder receber um título era um pouco ingrato. Mas pronto, fazia sentido porque não tinha a nacionalidade [ri-se].

Mas deixavam-te competir, o que também não fazia muito sentido.
Pois, prejudicava imediatamente outros atletas portugueses, porque no meu percurso acabaria por eliminar alguém. Não fazia muito sentido.

Nessa altura, alguma marca chegou a dizer que não te ia apoiar por não seres portuguesa?
Não diretamente, mas percebi. Mesmo em toda a comunicação social, senti que não tinha o retorno que podia ter enquanto não fosse oficialmente campeã. As coisas estavam assim um bocado em águas de bacalhau. Durante tudo isto, havia atletas que eram mesmo as campeã nacionais enquanto era eu quem ganhava o circuito. Era muito estranho, porque claro que eu me sinto portuguesa, nasci em Portugal, os meus pais é que, por acaso, são alemães. Fiz o meu percurso todo aqui. Até tenho sotaque algarvio [gargalhada].

Marcos Borga

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