O futebol português é novidade para si?
Não, não... Eu acompanho o futebol português desde sempre. Pela televisão, pela net. Conheço todos os clubes portugueses da I Liga. A II Liga um pouco menos, também acompanhava tudo o que era seleção. Há mais ou menos 10 anos também comecei a interessar-me por formação, pelas seleções de sub-17, sub 19. Por isso não considero que a liga portuguesa seja uma coisa nova. Sou um treinador que chegou à I Liga agora, mas não me sinto num meio estranho.
Mas fez todo o seu percurso na Holanda.
Sim. Eu acabei a universidade do desporto na Holanda, acabei a minha licenciatura de treinador e tive as minhas oportunidades na formação de clubes. Vai-se tendo sucesso: ganhar campeonatos na formação, ter uma quantidade de jogadores que vão às seleções, os que chegam a um patamar superior e que jogam mesmo na seleção da Holanda, que jogam campeonatos do Mundo e campeonato da Europa. Ou jogadores como Kevin Strootman e Wijnaldum que jogam na Roma e no Liverpool, que jogam na Liga dos Campeões...
E que foram seus jogadores.
Passaram por mim. Como esses há outros, como Memphis Depay, que passou do Manchester United para o Lyon. Os desafios acabam por aparecer. Neste caso foi o Marítimo, podia ter sido outro clube. Eu nem estava muito focado em ser treinador da I Liga portuguesa, mas apareceu e estou feliz com isso.
O Marítimo foi a oportunidade que lhe apareceu?
Exacto. Tinha acabado de ter um sucesso, um feito muito bonito com o Fortuna a época passada, um clube da II liga holandesa que há 16 anos não estava na I Liga. E foi nessa altura que o Carlos Pereira me telefonou.
O que está a dizer é que a carreira de um treinador se faz aos poucos.
Para se ser treinador de futebol é preciso dominar muitas áreas, penso eu. Não é por dominá-las que se vai ter sucesso, mas quem tem uma certa segurança na liderança, naquilo que é dar um treino, na relação com os jogadores, na pressão de ser o treinador principal... Penso que quando se chega lá depois de ter feito um percurso se fica mais preparado.
O campeonato vai no princípio, mas não lhe tem corrido mal.
Tem sido uma experiência até agora fantástica em todos os aspectos. Encontrei um clube organizado, com uma estrutura que oferece condições. Quando falo de condições, falo também de competências de quem ocupa os cargos. Temos um presidente com muita experiência, que sabe o que é quer para o seu clube. Encontrei um clube com uma massa adepta fantástica, que apoia, que acompanha, que é quente, que mexe. O que é bom.
Diz-se que o Marítimo que não tem tido um plantel forte nas últimas épocas e que é preciso alguma arte para gerir os recursos.
A única coisa que lhe posso dizer é que vivo aqui e agora. Para alcançar resultados pode ser de muitas maneiras. Pode ser através de um futebol defensivo, pode ser por um futebol ofensivo. Eu, como português da Holanda, ouvi de colegas de trabalho dizer que Portugal alcançou o Campeonato da Europa com muitos empates. Custava ouvir aquilo, mas é verdade: há muitos caminhos para chegar ao sucesso. Eu acredito na criatividade, de ir à procura de fazer, não estar na espera ou jogar no erro. Não me revejo muito nisso. Dou mais prioridade ao futebol de ataque, à organização ofensiva. Quem quer, quem procura vai alcançar, se não for no imediato será a longo prazo.
O plantel chega para os objectivos desta época?
Acho que sim, pois tenho confiança em quem escolheu, são pessoas com muita experiência. É um plantel que gosta muito de treinar, não reclamam muito, não pedem folgas, pedem trabalho e querem melhorar.
O que representa o regresso do Danny ao Marítimo?
É muito bom a todos os níveis. Muito bom o que ele como jogador veio trazer para o grupo. É um jogador cinco estrelas e penso que a braçadeira de capitão lhe está bem entregue, mas temos jogadores com uma grande personalidade e com muita qualidade e o nosso grupo não é só o Danny.
O que é que falta ao Marítimo? Tem massa adepta, tem estádio, mas anda há anos ali no sexto, quinto lugar..
Aquele estádio é fantástico. O que falta? Penso que é aquela frase, aquela que diz como é difícil ir de bom para muito bom. É preciso jogadores, estruturas, é preciso rentabilizar o que temos e fazer a ponte com a equipa B, com os sub-19. Eu acredito que há muito talento, mas é preciso saber desenvolver, é preciso saber rentabilizar - e é preciso ter calma. Quando se ganha não quer dizer que se está a ter sucesso, também quando se perde não quer dizer que se está a falhar. Quando se perde um ou dois jogos não quer dizer que se esteja a falhar. São fases, fazem parte do processo.
Mas o futebol vive de resultados.
É um bocado a nossa cultura, a cultura portuguesa. Queremos resultados hoje, queremos resultados na pré-época, queremos resultados na primeira jornada do campeonato, queremos resultados na Taça da Liga, queremos sempre. Por um lado é bom: somos um povo de conquistas. O que eu acho importante é que quando se constrói qualquer coisa, quando se está quase a alcançar não podemos deitar tudo o que construímos por água abaixo.
Por causa de uma derrota?
Por exemplo.
Acha que em Portugal somos assim, deitamos tudo a perder por um impulso?
Acho, acho. Por uma emoção. Só não erra quem não toma decisões, mas somos um povo assim, eu acho que somos, pode ser o nosso sucesso, mas podemos deitar tudo a perder também. Eu acredito mais no equilíbrio.
O futebol português tem sido abalado por escândalos de corrupção e que acabaram por chegar ao Marítimo. Há suspeitas de que antigos jogadores Marítimo foram comprados pelo Benfica. O que pensa disto?
Eu penso que é triste que tudo o se passa fora das quatro linhas e que não gera energia positiva. Eu penso que os clubes portugueses, diretores, jogadores e treinadores... precisamos de ser confrontados com aquilo em que somos bons, que é o jogo. Eu não vou dizer que não acompanho, mas o meu foco não passa por aí. Eu não vou dizer que não leio, que não dou atenção, porque acaba por influenciar o nosso trabalho, mas vou ser sincero: eu estou muito mais focado no treino e no jogo. Não é fugir à sua pergunta. Infelizmente faz parte daquilo que é o nosso meio, mas o meu foco como treinador nunca pode passar por ai.
Entre Portugal e a Holanda o que é que é diferente?
No futebol, são países que sempre formaram jogadores de nível mundial, sempre tiveram equipas ao mais alto nível, sempre tiveram treinadores muito competentes e com reputação e bom nome por essa Europa fora. Penso que a diferença para é mesmo a forma de ganhar e dar espectáculo. Neste momento Portugal está melhor em todos os níveis, mas em Portugal vive-se muito a ideia do ganhar, não importa como, o que se quer é ganhar. Na Holanda não é muito por ai. Na Holanda interessa ganhar, mas com um bom espectáculo. Eu digo-lhe que resultados de 5-2, 6-2 são comuns. As pessoas saem satisfeitas dos estádios, houve espectáculo, valeu a pena.
Que idade tinha quando decidiu ser treinador de futebol?
Muito cedo. Eu fui jogador de futebol nos escalões de formação, neste caso no Feyenoord, e chegou a um certo ponto que senti que não ia lá chegar como profissional de futebol. E muito cedo, teria 20, 21 anos decidi seguir a carreira de treinador, andava a fazer a universidade de Desporto e deram-me a oportunidade de tirar o primeiro curso de treinador e aproveitei para fazer um estágio. Gostei sempre de ensinar, de ser professor de futebol.
Não é preciso ter um certo perfil para seguir a carreira de treinador? É que duas, três derrotas consecutivas podem deitar por terra o trabalho todo e levar ao despedimento.
Eu sei que posso ser despedido, é assim o meio e a profissão que escolhi.
Isso não é como andar em cima do fio da navalha?
Tenho essa noção, que isso pode acontecer e em Portugal pode acontecer de forma muito rápida. Eu não sinto isso como seja eu a falhar, como um fracasso pessoal. No futebol pode passar-se por uma fase menos boa de resultados, mesmo quando a equipa está a jogar bem. Gosto de pensar como é que vamos jogar para ganhar, pensar e colocar em campo o tipo de jogo que me dará uma vitória usando as características e os talentos dos jogadores. Se se pensar assim vamos ganhar mais vezes. E não é por três de derrotas que vou mudar o meu estilo de treino e maneira de pensar a equipa. Se quem me contratou me despedir então terei procurar a felicidade noutro lado.
Não entende um eventual despedimento como algo pessoal?
Nunca e não vou deixar de dormir por causa disso. Estou completamente à vontade. A possibilidade de ser despedido faz parte do trabalho. E se for por duas ou três derrotas vai dizer muito mais de quem me despedir.
O que é que gostava de levar do Marítimo?
Já estou a levar muito. A forma como me receberam, a entrega, a maneira como me estão a acompanhar e a facilitar o nosso trabalho. Se eu sair do Marítimo hoje à noite posso dizer que levo esse carinho, mas nenhum treinador quer sair ao fim de dois ou três meses. Eu quero ficar aqui até ao último minuto do meu contrato. E quando eu sair, espero que me lembrem como um bom profissional, uma boa pessoa e com bons resultados.
A que pode aspirar o Marítimo com esta equipa e estas condições?
Quando eu era treinador de formação, quando treinava sub-17 do Feyenoord e do PSV, dava-me um orgulho muito grande ver os miúdos, os jogadores irem à seleção, a terem campeonatos da Europa ao mais alto nível, a sentirem-se seguros, a terem sucesso. No Marítimo, vejo o Zainadine a ir à seleção de Moçambique, fazer um golo, é capitão de equipa, vejo o Amir a jogar pelo Irão. É isso que me dá um enorme orgulho, que é valorizar todos o que trabalham connosco. Para o clube é continuar a ganhar e dar alegria aos adeptos. E já percebi que tem de ser a ganhar.
E acha possível conquistar uma Taça da Liga, uma Taça de Portugal?
É possível, mas a concorrência é enorme. Penso que não estamos muito longe dos nosso concorrentes mais diretos. Se a sorte estiver do nosso lado podemos fazer a diferença, mas não podemos estar a contar apenas com a sorte. Temos de procurar, temos de ter a coragem de criar um bom futebol seja onde for.
Qual é o modelo de jogo do Marítimo? Joga à sua imagem?
Acaba por jogar. Eu não gosto muito de falar em números, no 4-4-2 ou 4-3-3. Eu entendo o jogo de uma forma dinâmica, a forma como se ocupa o espaço, como se faz as coberturas. A minha ideia passa muito pela dinâmica de jogo, pela criatividade, pelo perfil dos jogadores que estão em campo. Temos vários jogadores com muita qualidade, que podem fazer coisas diferentes. Eu acho que está a ai a chave do nosso sucesso. É surpreender todas as semanas os adversários, não saberem se vamos jogar mais em largura, mais em profundidade, se vamos utilizar o nosso jogo interior ou se vamos aproveitar o nosso jogo pelos corredores. Acho que aí que está o nosso segredo. Eu já li várias vezes que coisas como “Claúdio Braga ainda procura o seu melhor 11”. Eu tenho dito ao meu adjunto que Deus queira que continuem a escrever assim, pois pensam uma coisa e nós estamos muito seguros com outra.
O 5º lugar é para manter até ao fim?
Penso que não seria mau, mas a vida é olhar sempre para o próximo jogo. Vamos ver.
As condições de formação que encontrou no Feyenoord e no PSV são muito diferentes do que cá encontrou?
Em termos de formação posso dizer que sim. Em Portugal só os três grandes têm aquelas condições. São vários campos relvados, uma formação a tempo inteiro. Há escalões que treinam às oito e meia da manhã, vão para a escola nas carrinhas do clube, têm refeições e voltam a treinar no final da tarde; depois, cada miúdo tem um plano individual de treino, adequado às suas características e no qual estão envolvidos os pais. É um investimento de tempo, de dinheiro e também investimento para educar. Existe toda uma estrutura, que não se limita ao treinador principal e que é responsável pelo miúdo com quem trabalha. Não é o meu jogador, é jogador do clube, é um jogador que é nosso. Quando esse jogador entra para a equipa principal e entra o estádio é um orgulho para toda a equipa.
Ainda há a ideia que entre os jogadores de futebol não se valoriza a escola, os estudos...
Na Holanda, pelo menos nos clubes por onde passei, os resultados escolares são sempre acompanhados. Eu tenho vários casos de jogadores castigados por má notas. Uma má nota tira o miúdo do treino e, quem não treina, não joga no sábado. E imagine que há um jogo importante, um em podemos ser campeões e o jogador castigado é decisivo, mas não joga. Na Holanda acredita-se que antes de ser bom jogador os futebolistas têm ter a melhor formação possível.
Mesmo que o jogador seja decisivo para ganhar um campeonato se tiver más notas fica de castigo? É assim na Holanda?
Quando se acredita que um miúdo tem um grande potencial como jogador, que tem mais talento, nesse caso tem um tipo de plano de estudos para estar mais estável. Estou a agora a lembrar-me do Afellay, que foi do PSV para o Barcelona, que tinha muitas vezes problemas na escola e que esteve muitas vezes de castigo e não podia jogar, mas chegou à equipa principal do PSV e foi uma venda muito grande para o Barcelona. O mesmo aconteceu com o Depay. É uma forma de educar, de formar . É que se chegar ao mais alto nível não pode durar apenas seis meses e depois passar três anos à procura do espaço, a dar um tempo para se encontrar. Esse tempo devia já ter sido tratado durante a formação. O jogador quando chega à fase final já tem de ser um jogador completo. É claro que há muitos campos relvados, muito sintéticos, uma organização de transporte, a colaboração com a escolas, os professores dentro dos clubes para acompanhar os miúdos que precisam de mais 45 minutos para estudar antes e depois do treino. Na Holanda, a formação é uma máquina muito bem montada e não é só nos clubes de topo. Os clubes do meio da tabela têm estas condições e este modelo de formação. E não é por acaso. É uma opção de país e dos clubes.
Apesar de tudo isso, os resultados da Holanda em termos de seleção não têm sido famosos nos últimos anos.
Exacto. Fala-se também que tem sido conforto a mais. Como é um país muito bem organizado e quando sai da organização perde-se um bocado e leva tempo a reagir. Também é isso, mas eu acredito que tiveram uma queda, mas não tenho dúvidas que vão voltar ao topo. E vão continuar a formar. Ao nível da seleção eles vão voltar de certeza.
Quais são as suas referências do futebol holandês?
Eu gosto muito do Louis van Gaal. Gosto muito e penso que é uma forma de liderança com muita exigência na disciplina, na relação com os jogadores, mesmo naquilo que exige para o jogo, para a forma como tem de ser jogado. Não tenho muito mais. Mas revejo-me muito mais nos treinadores portugueses. Podia dar-lhe vários nomes como o Mourinho, o Leonardo Jardim, o Paulo Fonseca. Dá-me muito orgulho perceber o reconhecimento que tem o treinador português fora do nosso país. Tem sucesso, é reconhecido.
A sua passagem pelo o futebol português no Santa Clara e como adjunto do Vitória de Setúbal como é que correram?
Em termos de resultados não se pode dizer que correram bem. No Vitória de Setúbal foram quatro ou cinco jogos, foi numa fase em que o plantel estava a levar um reviravolta muito grande, entraram 20 jogadores novos, foi um caos autentico e não tivemos a sorte do nosso lado. No Santa Clara... Gostei dos Açores, gostei das pessoas com quem trabalhei, gostei do presidente, gostei muito do diretor desportivo, adorei o plantel. Senti que havia um coração forte e sentia que mais cedo ou mais tarde o Santa Clara ia crescer e chegar perto daquilo que agora alcançou. Eu acho que estávamos no caminho certo. Tínhamos várias vitórias, mas tínhamos muitos empates e isso mexeu com as pessoas e chegou ao meu despedimento. Se calhar não vai cair bem a alguns ouvidos, mas eu não sinto que estivéssemos a trabalhar mal. Era uma questão de tempo.
Como foi a sua última época? A subida de divisão do Fortuna que contava com quatro jogadores portugueses.
Foi excelente. Eu entrei como diretor de formação num clube que estava falido, mas com boas condições. Um estádio fantástico, formação com espaço, localizado a 50 metros de uma universidade de desporto, estava na fronteira entre a Bélgica e a Alemanha. No primeiro dia que entrei no Fortuna senti que, com um bocadinho de sorte, com alguma inovação, se podia fazer ali coisas muito boas. O André, o Lisandro, com o Mica foram os quatro uma mais valia na nossa subida de divisão. Por um lado tivemos sorte, mas tivemos um futebol muito bem praticado que mexeu com toda a cidade. Posso dizer que nos últimos 10 jogos tivemos uma assistência de 13, 14 mil espectadores, de pessoas dentro do estádio. Quando íamos fora havia 30, 35 autocarros que nos acompanhava, foi uma loucura total. Foi um ano fantástico, foi tudo bom. Tem a certeza que, se quiser, posso voltar ao clube.
Lembra-se de como é que começou a gostar de futebol?
É mais do que gostar, é paixão. Lembro-me do meu pai me levar ao estádio. O meu pai jogava numa equipa de amadores, uma equipa da III Divisão e lembro-me de me sentir todo o orgulhoso por levar o saco de desporto do meu pai, de entrar no balneário e de sentir um orgulho por ser jogador. E dormir com uma bola, nem ir almoçar a casa para jogar na rua, era sair da escola e jogar futebol, era ir mais cedo para escola para jogar futebol, era estar nas aulas a olhar para o relógio a ver quando é que passa para ir jogar à bola. Eu lembro-me de vir de férias a Portugal com 10, 11 anos para ver futebol. Na altura o meu avô enviava o jornal pelo correio, chegava dias atrasado, mas eu queria saber quando é que eram os torneios de Lisboa com o Belenenses, o Benfica e o Sporting para ir ver os jogos aos estádios. Eu pedia aos meus pais para marcarem as férias naquelas datas. Lembro-me de estar a nevar na Holanda, em Roterdão, não havia Sport TV, a emigração era totalmente diferente, e estar com o meu na varanda a ouvir o relato do jogo da seleção de Portugal pela rádio. Aquilo não podia falhar.
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