Entrevistas Tribuna

Sandra Bastos, uma pioneira na arbitragem portuguesa: “Já ouvi 'vai para casa coser meias', mas também já saí com palmas”

A árbitra Sandra Bastos
A árbitra Sandra Bastos
Rui Duarte Silva

Aos 40 anos, Sandra Bastos entra na história da arbitragem portuguesa como a primeira mulher a ser nomeada para apitar a fase final de um Mundial sénior feminino. Natural de Santa Maria da Feira, descobriu a paixão de 'juiz' quando a sua equipa, a Associação Desportiva de Lobão, foi extinta e por acaso fez o curso de arbitragem. Uma lesão grave, que a deixou fora de jogo durante dois meses, quase a fez desistir, mas, no fim, vingou a veia de batalhadora e a sua capacidade para driblar obstáculos e preconceitos

Sandra Bastos, uma pioneira na arbitragem portuguesa: “Já ouvi 'vai para casa coser meias', mas também já saí com palmas”

Isabel Paulo

Jornalista

Sabe quem foi Joaquim Campos?
Não...

Foi o primeiro árbitro português a dirigir jogos num Mundial, em 1958. A primeira árbitra a chegar a este palco surge com um hiato de 60 anos. Significa que a presença das mulheres no futebol está assim tão atrasada?
Ainda nem era nascida. Tenho 40 anos, o que é só um número. O futebol e a arbitragem feminina evoluíram, passo a passo, não interessa se pequeninos, mas julgo que com qualidade. É uma evolução recente, já que até há pouco era um mundo de homens. Mas a partir do momento em que revelamos dedicação, foco, disciplina e persistência, numa mais parou de crescer.

Alguma vez pensou desistir?
Quase. Há uns anos, tive uma lesão grade e fui-me abaixo. Estive parada dois meses, o que, psicologicamente, me afetou bastante. Perante os obstáculos, o fácil é desistir, o difícil é continuar. Eu decidi continuar em frente e perseguir o meu sonho.

Onde estava quando soube que tinha sido nomeada para o Mundial? Foi uma surpresa?
Estava em trânsito para o Porto, no aeroporto de Lisboa, regressada do Uruguai, onde estive no Mundial de sub-17 feminino. Sabia que poderia acontecer e, no que dependia de mim, tenho dado o tudo por tudo. Em 2010, estive nos Jogos Olímpicos da Juventude, em Singapura, e há dois anos também fui ao Mundial de sub-17, na Jordânia.

E no verão passado, num vídeo da FPF, disse "o meu sonho de carreira é ir ao Mundial" de seniores...
Era a meta que tracei para a minha carreira, quando subi a 'árbitra' internacional, em 2004. Fui subindo e continuei a sonhar.

Como surgiu a vocação? Herança familiar?
Ninguém na minha casa praticou desporto. O meu pai é apaixonado por futebol, mas nunca jogou, nem os meus dois irmãos mais velhos. Comecei a jogar na Associação Desportiva e Cultural de Lobão, a minha terra, e a minha equipa desistiu. Na altura estava a fazer melhoria de notas na escola de Fiães e vi anunciado um colóquio sobre arbitragem. Pensei: é uma boa oportunidade para voltar ao futebol, e fiz o curso de árbitro. Entretanto, o árbitro Pedro Duro convidou-me para integrar a sua equipa e aceitei. Bastou apitar o primeiro jogo para perceber que tinha uma nova paixão.

Lembra-se qual foi o jogo?
Era de infantis, na casa do Vilamaiorense. Chovia torrencialmente, fiquei toda encharcada, nada que me tivesse feito pensar duas vezes.

Houve algum incidente?
Provavelmente cometi vários erros, incidentes não. Estava nervosa, muita adrenalina, foi um grande desafio comigo mesma.

Em que ano subiu à primeira categoria?
Em 2004, ano em que se formou o quadro nacional de arbitragem feminina. E nesse mesmo ano foram indicadas duas 'árbitras' à FIFA, fiquei em segundo lugar, atrás da Berta Tavares de Vila Real. Acabei por ter sorte - que costumo dizer exige muito trabalho -, e fomos aceites as duas.

É mais fácil dirigir jogos de homens ou mulheres?
Para mim, é igual, apesar de ter características diferentes. Nos jogos femininos, hoje toda a gente já me conhece e respeita. É um orgulho enorme acabar um jogo sem ter mostrado um único cartão, o que até é frequente. Mas também já aconteceu o mesmo em jogos de juniores masculinos, o que revela que os jogadores aceitam ser dirigidos por uma mulher.

Nem sempre. No início da época apitou um amigável (Oliveirense-Académica) e acabou o jogo a meio, quando um jogador lhe agarrou o braço...
Não comento. É uma história que faz parte do passado, fechou-se as portas.

Este ano, pela primeira vez o Conselho de Disciplina puniu um dirigente que mandou a árbitro Ana Amorim ir “para casa lavar loiça”. Já ouviu bocas sexistas semelhantes?
No passado ouvi muitas. Do tipo “vai para casa coser meias”. Reagia naturalmente, não ligando. O meu pai, que é o meu maior ídolo, sempre disse que os insultos só nos atingem se os aceitarmos. Mas parece-me há cada vez menos preconceito. A minha equipa já saiu de campo sob salvas de palmas. Os adeptos até me chamam Sandrinha! [risos] A pressão da bancada até nos ajuda a melhorar, por nos obrigar a adaptar à diversas condições. E uma ou outra coisa desagradável faz parte do futebol, embora tente olhar para o lado positivo desta atividade. Da parte das jogadoras e ex-jogadoras, sinto muito carinho e das equipas técnicas também.

Rui Duarte Silva

Lembra-se do seu primeiro jogo de homens?
Foi um encontro Samel-Couvelha. Se não me engano, mostrei 12 seis amarelos e seis vermelhos. Era uma novidade para os jogadores e esticaram-se um bocadinho. Testaram-me.

Foi a primeira árbitro a dirigir um jogo do Campeonato de Portugal, um Mirandela-Fafe, em 2005...
Era um trio feminino e fomos recebidas com muito carinho. Foi um ambiente de festa.

Imagina-se a apitar um jogo da Liga NOS?
Estamos a abrir caminho, não se pode querer tudo de uma vez só. O futuro passa por aí. A Bibi, uma árbitra alemã, já fez jogos da Bundesliga.

A nível nacional que jogos dirige?
A nível distrital, arbitro jogos de seniores masculinos e camadas jovens de futebol feminino. Do quadro nacional, futebol sénior feminino, camadas jovens masculinas e Campeonato de Portugal de seniores. Internacionalmente, só futebol feminino.

Qual o maior erro que cometeu? Teve logo noção que fez asneira?
Não sei qual foi o maior, mas acho que temos logo noção que erramos. E acreditem que não existe ninguém que fique mais chateado do nós. Sou muito autocrítica. Num curso, não consegui a nota que queria e para me castigar já não fui ao cinema, como estava combinado. Os erros fazem parte do jogo, temos é de analisar porque aconteceram e arranjar uma estratégia para não voltar a falhar nas mesmas circunstâncias.

A nível financeiro, compensa ser árbitra?
Não quero comentar. Sou autónoma financeiramente, mas não consigo viver exclusivamente do futebol.

Tem outra profissão?
Sou empresária, mas não quero especificar porque envolve outras pessoas. Para atingir o meu sonho, tive de fazer vários sacrifícios, um deles deixar a minha vida profissional de lado. Mas o meu maior sacrifício foi ainda não ter sido mãe. Adiei, não desisti da maternidade.

O que é que a arbitragem lhe ensinou?
A ser mais calma, mais tolerante, a respeitar e lidar melhor com o próximo. E que é preciso trabalhar muito. Treino cinco vezes por semana numa clínica, faço trabalho de força, agilidade, resistência e velocidade.

Tem ídolos no futebol?
Ídolos só o meu pai. Referências, tive o Olegário Benquerença, Vítor Pereira, e atualmente o Artur Soares Dias. E tenho um carinho especial pelo Jorge Sousa. Admiro a Olga Almeida, minha colega de equipa em jogos internacionais, e a Diana Henriques, 'árbitra' assistente, que são as minhas melhores amigas.

Internacionais, são quantas?
Três 'árbitras' e quatro assistentes. Mas há cada vez mais investimento na arbitragem feminina.

Viaja muito?
Faço bastantes jogos internacionais e ficamos às vezes quase um mês fora de casa. Gosto bastante de viajar, não dá para fazer propriamente turismo mas consegue-se fica a conhecer alguma coisa das cidades-sede das competições. .

Já é conhecida ao ponto de dar autógrafos?
Por vezes, os árbitros também são ídolos.

Não são os maus da fita?
Somos um bem essencial do futebol...

Muitas vezes odiados...
Nem Deus agrada a toda a gente. Não me incomoda.

E o clima de eterna suspeição em torno da arbitragem?
No arbitragem feminina, o clima é mais saudável. É algo que não me diz respeito.

Preocupa-a a violência associada ao futebol, como aconteceu em Alcochete?
Não vale a pena comentar. Existe, mas não gosto de publicitar questões negativas.

É vaidosa?
Q.b. Sou de pormenores. Por uma questão de estética, não gosto, por exemplo, de fitas compridas no apito, por isso retiro-as e coloco antes um elástico de cabelo, que enrolo na mão e fica escondido na palma quando faço sinal de lançamento. Pendurado fica muito mal.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: IPaulo@expresso.impresa.pt