Nuno Pinto, o português que treinou estrelas da Fórmula 1: "Em talento puro, os melhores que treinei foram Verstappen, Leclerc e Ocon"
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Se tenistas, golfistas e futebolistas têm treinadores, porque não pode um piloto ter? Foi o que pensou Nuno Pinto quando em 2009 se tornou driver coach. Daí para cá, o português teve a oportunidade de trabalhar com alguns dos maiores talentos da atualidade e entre 2017 e 2018 conheceu por dentro o paddock da Fórmula 1, ao lado de Lance Stroll na Williams. À Tribuna Expresso, numa pausa antes de partir para o GP Rússia, em Sochi, explica porque não gostou assim tanto de estar na Fórmula 1, porque é que o trabalho nas fórmulas de iniciação é muito mais interessante, o que é o talento puro e como ele se consegue ver logo à primeira volta, como é trabalhar com Mick Schumacher, filho de Michael Schumacher, e o que é, afinal, ser um treinador de pilotos
Max Verstappen, Charles Leclerc, Pierre Gasly, Esteban Ocon, Antonio Giovinazzi e Lance Stroll. Todos eles têm, pelo menos, duas coisas em comum: são algumas das estrelas da nova geração de pilotos que tomaram de assalto a Fórmula 1 nos últimos anos e todos eles, em alguma altura da sua carreira, puderam ouvir os sábios conselhos de Nuno Pinto, que depois de combinar um percurso na gestão hoteleira com a carreira como piloto (foi campeão da Fórmula BMW em 2002 e vice-campeão nacional de ralis em 1998 e 2003), dedicou-se a 100% ao treino de pilotos.
Com um trabalho em que se destacam os 10 anos que leva na Prema, equipa presente na Fórmula 3 e Fórmula 2, as duas principais portas de entrada para a Fórmula 1, e os dois anos (2017 e 2018) em que esteve ao lado de Lance Stroll na Williams, uma das históricas equipas do pelotão da Fórmula 1, Nuno Pinto, de 41 anos e que até começou por jogar futebol nas escolas do Benfica antes de se iniciar nos karts, encontra a Tribuna Expresso numa rara pausa do Mundial de Fórmula 2, onde está em permanência esta temporada, na véspera de fazer novamente a mala e viajar para Sochi, onde este fim de semana decorre o GP Rússia.
Como é que te tornas treinador de pilotos? Enquanto ainda trabalhava na gestão de um hotel, em Espanha, venci a Fórmula BMW e a organização pediu-me para ficar com eles a ajudar os novos pilotos. Foi aí que comecei a fazer algum coach. Quando corria era o Pedro Matos Chaves que fazia esse trabalho, depois fiquei eu. Comecei a ter alguma relação com pilotos que eu aconselhava na altura e eles foram pedindo que os acompanhasse nos passos seguintes. Cheguei a um momento em que tive de decidir se abraçava isto de forma profissional, tornando-me verdadeiramente coach de pilotos, pondo até de parte a minha carreira de piloto, ou então então tentava combinar e nunca seria coach a 100%. Decidi fazer uma aposta, até porque já tinha chegado ao topo de carreira na gestão hoteleira. A partir de 2009 dediquei-me em exclusivo a esta parte de gestão e treino de pilotos.
Driver coach, ora aí está um conceito que não estamos muito habituados a ouvir. Já existia antes de começares? Muito pouco. Havia vários pilotos mais velhos que às vezes ajudavam, davam uma mãozinha, abriam uma porta ou outra, mas não se dedicavam a 100%. Em termos europeus, eu e o meu sócio fomos quase pioneiros a dedicar-nos a isto de estar com um piloto ao longo de todo o ano, comprometendo-nos a estar em todos os testes, todas as provas, oficialmente como driver coach.
E o que é que faz exatamente um driver coach? Quando corria sentia a falta dessa pessoa com mais experiência e mais conhecimentos do que eu para me aconselhar em alguns momentos. E nós pensámos: se atletas de topo no ténis, no golfe, no atletismo, no futebol, têm treinadores, porque não no desporto automóvel? O Roger Federer é um dos melhores jogadores do mundo e tem uma equipa de dois, três treinadores com ele. E nenhum deles, vou eu assumir, é melhor jogador do que ele. Mas mesmo assim ele entende que precisa dessa ajuda. No desporto automóvel não havia essa abertura e é assim que começa a ideia. O que é que nós fazemos? Aí uso sempre um dos meus primeiros clientes, o Daniel Juncadella, que está agora no DTM e chegou a ser piloto de reserva na Fórmula 1. Uma das coisas que o Dani me dizia era que duas cabeças pensam melhor do que uma e dois olhos fora do carro vão ver coisas que ele não via lá dentro. Era isso que ele me pedia, para o aconselhar, para ver o que os outros faziam, o que ele fazia de bem ou de mal e o que estava a acontecer à volta da equipa. A minha forma de trabalhar - que é a minha, não quer dizer seja a mais correta - é esta: gosto muito de ir à pista e sempre que o piloto está em pista eu vou lá, a determinados pontos, vou às curvas, vejo o que ele está a fazer e o que os adversários estão a fazer. E depois tentamos estar presentes em todas as reuniões técnicas, analisamos vídeos on board quando eles existem para comparar voltas e tentamos também servir como ligação entre o engenheiro e o piloto, entre a equipa e o piloto.
Há também uma parte de gestão, então? Sim. Muitas vezes há coisas que o piloto quer exigir da equipa e é muito mais fácil sermos nós, elementos externos, a pedir, para não criar ali atritos. Nas coisas mais delicadas é melhor ser o manager a exigir do que o piloto. Às vezes o piloto não consegue transmitir exatamente aquilo que precisa e se tiver alguém ao lado que já esteve sentado lá dentro, consegue explicar melhor. Já estivemos com alguns pilotos que tinham alguma dificuldade de comunicação em inglês e a mensagem perdia-se. Porque estamos por vezes a falar de pilotos muitos jovens, de 15, 16, 17 anos. Somos um apoio, conselheiros, às vezes até a nível de educação, de experiência de vida, de alguma psicologia também, que é muito importante. Outra coisa que fazemos quando abraçamos um projeto com um piloto é tratar de tudo à volta do que não é conduzir. O piloto só tem de se preocupar em aparecer na pista com o capacete. O resto, viagens, hotéis, carros de aluguer, isso é connosco… o piloto só tem de se preocupar em sentar e guiar.
O que é treinável num piloto? Depende muito de cada piloto. Não é fácil de explicar mas, por exemplo, quando sabemos que num determinado setor da pista o piloto está a perder um bocadinho de tempo em relação aos melhores, eu vou àquela curva e vejo se os outros estão a fazer alguma coisa diferente. Às vezes um piloto toca num corretor, ou não, e isso faz diferença. Portanto, eu vou àquela curva e consigo sugerir ao piloto: "Olha, experimenta fazer aquela curva em 2.ª em vez de 3.ª, como estás a fazer". Ou "experimenta cortar um bocadinho o corretor, porque o melhor está a cortar mais que tu". Comunica-se por rádio, tenta-se que o piloto corrija e, umas vezes resulta, outras não. Muitas vezes temos de ir por tentativa e erro. Também acontece por vezes eu chegar a uma curva específica e não conseguir ver diferença nenhuma e aí não há diferença de condução mas sim de velocidade. E aí temos de ir à procura da afinação dos carros. Às vezes um olho na pista consegue dar uma sugestão imediata que pode ser tentada de imediato, logo no mesmo run. Enquanto que se não estiveres na pista tens de esperar, ir ver à telemetria e depois só podes tentar na próxima sessão ou se for na qualificação já não há segunda tentativa. Há outros driver coaches que não vão à pista, que ficam só a ver os on boards, a telemetria. Mas isso acho que os engenheiros conseguem fazer sozinhos.
Precisamente: onde estão as diferenças entre o teu trabalho e o de um engenheiro de pista? Têm de ser complementares. Eu não posso entrar no trabalho dele, mas posso ajudar. Muitas vezes o engenheiro vê na telemetria que em determinada curva, comparado com o companheiro de equipa, o piloto está a perder tempo. Na telemetria, o engenheiro sabe que ele travou mais cedo, que acelerou mais tarde, que teve uma velocidade mínima menor, mas se calhar não sabe que isso tudo é devido ao piloto estar meio metro fora da trajetória ideal.
E os pilotos e engenheiros aceitam bem as sugestões? Tudo isto é um processo: tens de ganhar a confiança do piloto para ele acatar as tuas propostas. E tens de ganhar a confiança dos engenheiros, até porque eles têm a telemetria e a telemetria não mente. Se eu disser uma coisa e depois os gráficos dizem outra, perco logo a credibilidade. Um exemplo: eu estou na Prema há 10 anos e no primeiro ano todos eles eram um bocadinho desconfiados, mas depois viram que aquilo ajudava e já não punham em causa. Agora antes de irem ao piloto perguntam-me logo a mim! Isto cria-se e acho que foi um dos segredos do sucesso da nossa equipa. Já quando cheguei à Fórmula 1 isso foi um problema porque foi muito difícil eles entenderem este trabalho, porque são engenheiros muito mais focados nos dados. Foi muito mais difícil acreditarem que fora dos dados era possível ver diferenças.
O teu trabalho é focado nos fins de semanas de corridas ou fora deles também trabalhas com os pilotos? Fora dos fins de semanas ajudo-os com os simuladores, ainda que eu não seja obcecado em passar horas no simulador, prefiro trabalhar em pista, se os regulamentos permitirem. Faço-lhes relatórios sobre o que aconteceu no fim de semana, o que eu acho que é preciso melhorar. Fazemos muita análise e às vezes juntamo-nos para ver corridas: da mesma forma que os futebolistas vêem jogos de outras equipas, nós também vemos corridas de outras categorias. Há outro instrumento que sempre gostei muito e que uso que é o karting, que é a base do nosso desporto. Ir a um circuito de kart treinar tem um objetivo, até para a preparação física. Por muito ginásio que se faça, não há um exercício tão ideal quanto estar a conduzir. E também fazemos outros desportos, que ajudam na forma física e ajudam a cabeça. Por exemplo, com o Lance [Stroll, piloto da Racing Point] jogava muitas vezes ténis e ténis de mesa, porque gostamos, temos um nível semelhante e eram batalhas... nem imaginas, eram finais de Wimbledon entre nós! Um dos primeiros pilotos com quem trabalhei, o Facundo Regalia, argentino, era muito emotivo e tinha algumas dificuldades de auto controlo. E quando jogávamos ténis de mesa acontecia exatamente aquilo que se passava dentro do carro: era pouco paciente. Então eu provocava-o, jogava sempre à defesa, a tentar provocar o erro. Isto pode não parecer, mas é trabalho, eu treinava-o para ser mais paciente. Já com o Dani Juncadella, que é um piloto super relaxado, super zen, íamos jogar golfe ou padel, não falávamos de corridas e isso resultava com ele.
Que peso ainda tem o talento do piloto numa era de carros de competição altamente sofisticados, como vemos agora na F1? Nas fórmulas de iniciação, a percentagem de influência do piloto é maior, porque há uma menor capacidade de desenvolvimento e um piloto muito bom numa equipa menos boa pode aspirar a ganhar corridas. Na Fórmula 1 não. O Lewis Hamilton na Racing Point não ganhava corridas, já o Lance Stroll ou o Sérgio Pérez na Mercedes ganhariam corridas. Vamos colocar em percentagem: numa vitória na Fórmula 1, se olharmos para a qualidade do monolugar e para a qualidade do piloto, eu diria que 70% a 80% são do carro e o resto do piloto. Agora, em cada equipa há dois pilotos e normalmente o melhor ganha mais vezes, por isso o piloto ainda conta muito. Eu gostava que o valor fosse sempre mais de 50% do piloto, mas mesmo assim temos de ver que os homens que estão na Fórmula 1 não são comuns mortais: experimentem, por exemplo, fazer duas voltas rápidas no GP Singapura na Playstation, sem bater. É difícil. E depois pensem no que é fazer 10 voltas rápidas em Singapura sem bater a falar ao mesmo tempo com os engenheiros, a mudar especificações no volante. Experimentem isso na Playstation e depois pensem na realidade, com 60 graus no habitáculo, com 80% de humidade... são todos extraordinários atletas e pilotos, não há um que seja mau. Agora, não é só a velocidade que conta: a pressão a que um piloto de Fórmula 1 está sujeito é enorme, as exigências são enormes. Eu costumo dizer que nas fórmulas de iniciação, na F4, F3 e F2, há ali cinco a dez pilotos com o mesmo nível de talento e velocidade. Quem ganha é aquele que gere melhor todas as circunstâncias ao longo do ano, quem faz as escolhas mais certas. Eu trabalhei com pilotos excecionais e se calhar há dois ou três deles que nunca chegaram à Fórmula 1 e que são bem melhores do que alguns que agora ganham corridas.
E quem são eles? Os três melhores pilotos em termos de talento puro com quem trabalhei, uns durante anos, outros por algumas provas, outros em programas de formação, e que chegaram à Fórmula 1 são o Max Verstappen, o Charles Leclerc e o Esteban Ocon. Dos três, para mim o melhor é o Ocon e isto pode ser uma surpresa, mas eu acho que é um piloto que tem potencial para ser campeão do Mundo. Se ele estivesse numa Ferrari ou numa Mercedes ia ganhar corridas. Sobre os que não chegaram lá: o Dani Juncadella foi o piloto mais rápido e mais fino que eu vi na Fórmula 3. A técnica de pilotagem dele era excecional. É um daqueles pilotos que consegue andar depressa sem esforçar o carro, sem ser exuberante. É rápido sem parecer e na Fórmula 1 teria funcionado maravilhosamente. Felizmente chegou lá, mas nunca como piloto titular. O Robin Frijns ganhou tudo o que havia para ganhar nas fórmulas de iniciação e para mim tinha potencial para ser campeão do Mundo. Felizmente tem uma carreira muito boa, no DTM e na Fórmula E, mas se tivesse chegado à Fórmula 1 seria rápido porque sempre que fez testes foi mais rápido que os titulares das equipas. Mas faltavam-lhe outras coisas, faltava-lhe ser politicamente correto. É um personagem com uma personalidade especial. Nós muitas vezes pedíamos para ele ser mais simpático, para fazer um esforço, para se vender melhor. E ele dizia: "Mas eu em cada carro que me sento ganho corridas, o que é mais importante que isso?". Idealmente isso seria verdade, mas na Fórmula 1 há outras exigências, em termos de marketing e imagem, que ele não cumpria. Mas talento, velocidade e determinação tinha. E por fim, o Felix Rosenqvist, que está agora na IndyCar e foi o rookie do ano. É outro que ganhou corridas em todo o lado e é o piloto com o sentido de humor mais especial que encontrei até hoje e que seria um personagem fantástico na Fórmula 1, porque ia dar entrevistas ao nível das do Daniel Ricciardo ou mais divertidas ainda. Acho que a Fórmula 1 perdeu aqui uma estrela.
Os pilotos, em geral, devem ser tipos orgulhosos. Houve assim algum mais resistente e mais difícil de treinar? Tive alguns, mas esses normalmente não são nada de jeito. Os pilotos que são fechados e arrogantes e que não vêm utilidade no treino normalmente são aqueles que, como nós dizemos, gostam de usar o livro das desculpas. Há sempre uma razão para qualquer coisa, menos eles.
Tipo Romain Grosjean? Pois, eu nunca trabalhei com o Grosjean mas também não sei se ia trabalhar, mesmo que me fosse proposto. Porque não íamos ligar, acho. É preciso haver química e boa relação pessoal, porque passamos muitas horas juntos. Eu tive a sorte de, até hoje, poder escolher com quem queria trabalhar. Mas voltando aos pilotos mais fechados, acabas por desistir deles. Tentas dar uma, duas, três sugestões, se ele não quer aprender...
Esses pilotos também não devem chegar longe. Não vou dizer que todos não chegaram a lado nenhum, houve alguns que sozinhos conseguiram chegar longe. Olha, o Max Verstappen. Tem uma personalidade fortíssima. Quando ele era miúdo e lhe dei uma formação na Flórida, muitas vezes ia ter com ele e dizia-lhe: "Max, ou tu te acalmas ou vais bater, porque estás completamente no limite". E ele dizia-me "Naaaa, está tudo sob controlo, tranquilo". E lembro-me de estar a chover e ele ir para a pista de propósito mostrar-me que era capaz de fazer aquilo no limite. Fazia mais rápido, corria mais riscos e se aquilo corria bem e ele depois passava por mim, dava-me um toque e dizia: "Vês?" Mas depois chegou à corrida e bateu três vezes [risos]. E então fui eu a dizer-lhe "vês?" Ele tem essa personalidade: primeiro faço à minha maneira.
O Verstappen por acaso parece estar bem mais calmo este ano. Acalmou muito sim, está a amadurecer. É daqueles com quem gostava de voltar a trabalhar porque se ele se acalmar um bocadinho vai ser candidato a ganhar títulos mundiais em vez de ser só corridas. Mas tens isso, pilotos teimosos, porque um bom piloto é egoísta e confiante. Primeiro vão tentar mostrar-te cinco vezes que à maneira deles dá e só depois, quando não dá mesmo, é que dizem "pronto, vamos lá tentar da tua maneira".
Qual é o piloto fácil de trabalhar? É aquele que dentro do cockpit já deteta uma série de problemas ou aquele que não deteta, mas que tem a humildade de aceitar e tentar perceber o que se passa? O melhor piloto para trabalhar é aquele que é muito rápido. Num piloto que já tem uma rapidez natural, mesmo que às vezes não perceba bem porquê, só precisas de limar detalhes. Às vezes pode ser rápido, mas ter dificuldade na parte técnica e aí podemos ajudá-lo. Os difíceis de trabalhar são os pilotos inconstantes, aqueles que às vezes são capazes de ser muito rápidos, e nem sabem porquê e depois, na sessão seguinte, já estão muito mal. Os piores são os que têm desculpas para tudo, há pilotos que, no tal livro das desculpas que falei, às vezes fazem bingo num fim de semana.
O talento puro existe? Existe. O puro e aquele de ter capacidade de trabalhar e melhorar. Por exemplo, o Lance Stroll. Eu não acho que ele seja um talento puro ao nível de um Max Verstappen ou de um Ocon, mas com trabalho chegou a ser tão rápido quanto o Ocon no mesmo carro, na Fórmula 3. O Ocon chegava a um circuito e à 3.ª volta fazia um grande tempo. E depois se calhar passava os dois dias seguintes sem melhorar esse tempo. O Lance, por outro lado, se calhar começava mais lento, porque tem uma abordagem mais metódica e não tem o feeling natural de instintivamente descobrir logo o limite, mas tem uma capacidade de trabalho muito boa e se calhar em vez de chegar lá na volta 2 chegava na volta 20. Mas o tempo vale na mesma. Em que é que um piloto é melhor que outro? Aqui já entramos naquele tipo de discussão de quem é melhor, Messi ou Ronaldo. Eu não sei, são diferentes.
Trabalhaste com os dois pilotos que toda a gente vê como os futuros campeões e dominadores da Fórmula 1, o Max Verstappen e o Charles Leclerc. Como é que os vossos caminhos se cruzaram? Quando o Max saiu dos karts veio fazer alguns testes connosco e depois participou na tal Florida Winter Series, em 2014, um programa que organizámos como se fosse uma universidade do desporto automóvel, com 15 pilotos. Estivemos um mês e meio na Florida e havia de tudo, corridas, testes, aulas de engenharia, de mecânica. Ele acaba depois por não ir para a Prema, mas sim para a equipa rival na Fórmula 3, por isso lidei com ele como meu piloto e como adversário. Nós ganhamos esse ano com o Ocon, ele fica em 3.º e o segredo desse campeonato é que à terceira corrida nós tínhamos 90 pontos de vantagem. E porquê? Por causa da impetuosidade do Max, que nós tínhamos tentado acalmar na Florida. Ele nas três primeiras corridas do ano, a tentar ultrapassagens mirabolantes, bateu três vezes na primeira volta! Já o Charles Leclerc testou várias vezes com a Prema na Fórmula 3, mas depois decide precisamente ir substituir o Verstappen e tornar-se nosso adversário. Mais tarde vem finalmente para a Prema na Fórmula 2 e foi aí que trabalhei com ele em várias corridas, não em todas porque foi no ano em que fui para a Fórmula 1, para o ano de estreia do Lance Stroll na Williams.
Já na altura dava para perceber que tinham talento fora do comum? O Charles desde o primeiro teste vimos que era especial. É muito inteligente, excelente comunicador e tem um excelente espírito de equipa. E uma força psicológica que para mim é extraordinária. Entre ele e o Max, em termos de talento natural, diria que estão ao mesmo nível. O Max é mais impetuoso, mais tudo ou nada, mais exuberante. Se tivesse de escolher um piloto para recuperar lugares numa corrida, era nele que eu punha a minha aposta. É um piloto capaz de ir além do limite do carro para conseguir um resultado. O Leclerc é mais cerebral, mais inteligente, igualmente rápido mas mais fino, mais polido na condução. E com a tal força mental incrível, porque não tem tido uma vida fácil.
Até porque perdeu várias pessoas importantes na sua vida nos últimos anos. Ele perdeu o pai dois dias antes de uma corrida. Chegou lá e ninguém sabia como é que havia de lidar com aquilo e ele disse só "não se preocupem, eu estou bem, vamos correr". E depois fez pole position, volta mais rápida e ganhou as duas corridas. Que nível de força mental tem de ter um miúdo de 20 anos para aguentar isto? Perdeu também o seu padrinho, o seu mentor, o Jules Bianchi, e agora em Spa perde um amigo de infância, com quem correu nos karts, o Anthoine Hubert. E ganha a corrida. Pergunto-me, o que é que o deita abaixo?
É possível olhar para um piloto e ao primeiro teste perceber que ele vai chegar longe? Sim. Há alturas que num primeiro teste que um piloto faz connosco que tu dizes "pá, este é especial, se não tiver nenhum azar vai chegar à Fórmula 1". O primeiro teste que o Esteban Ocon faz connosco na Fórmula 3 foi em Imola e eu lembro-me de ir para as duas últimas curvas do circuito, que são duas curvas muito exigentes, muito rápidas. O Ocon chega lá, sem nunca ter andado num Fórmula 3, e no primeiro run faz menos meio segundo que o nosso piloto de referência na altura. Até lhe perguntámos se ele nunca tinha mesmo andado num Fórmula 3. Ele só nos dizia: "Não, não. Mas gosto!" E nós a torcer o nariz, a pensar que aquele gajo nos estava a enganar. Chegámos a ir investigar e era verdade, nunca tinha andado. Já tinha uma confiança e um à-vontade incríveis. Eu ainda nesse dia disse ao dono da equipa: "Se puderes assinar hoje, assina já". Com o Leclerc foi a mesma coisa. E quando o Stroll andou pela primeira vez num Fórmula 3 fez melhor que o Ocon no dia anterior. Porque nas curvas rápidas ele era muito rápido. Nas lentas é mais fácil trabalhar, nas rápidas aquilo é coração ou outra coisa que não se pode dizer [risos]. Por isso sim, há ocasiões em que tu vês uma volta e a maneira como um piloto sai do carro e dizes: este é especial.
Mas muitas vezes não é só talento. O dinheiro ainda é essencial para um piloto chegar à Fórmula 1? Infelizmente o dinheiro ainda é essencial no desporto automóvel, no seu todo, porque até para começar nos karts é caro. É preciso apoios, é preciso um esforço financeiro grande das famílias para começar e muitas vezes até ao final. E depois existem muitos interesses económicos, interesses de mercados, de marketing. Na altura em que a Toro Rosso tinha de decidir entre o António Félix da Costa e o Daniil Kvyat havia um GP na Rússia no ano seguinte, já para não falar que o mercado da Rússia é infinitamente mais importante do que o português para a Red Bull. Isto se calhar pesou mais do que o talento ou os resultados dos dois pilotos. Foi assim, continua a ser e vai continuar a ser. Isto é um desporto ainda, mas também é um negócio.
Ver o Hamilton e o Ocon na Fórmula 1, eles que não vêm de famílias com recursos, é uma espécie de vitória da classe média? Sim, mas nem podemos comparar o esforço que fez a família Ocon com o esforço que fez a família do Hamilton. O Hamilton teve o mérito e a sorte de ser apoiado pela McLaren desde muito cedo. Basicamente pagaram-lhe boa parte da carreira, coisa que o pai não teria capacidade para fazer. Nos karts foi ele que pagou e era o mecânico, mas a partir daí o Hamilton foi apoiado pela McLaren e esteve sempre nas melhores equipas das categorias de promoção. O Ocon, esse sim, tem um grande valor. Muita gente não sabe mas o pai teve de vender a casa para financiar os anos de karting do filho. A família viveu dois anos numa autocaravana por acreditar no talento do Esteban. E felizmente chegou à Fórmula 1 e possivelmente vai ter uma carreira longa o suficiente para pagar todos estes sacrifícios. Mas é um piloto que tem uma perspectiva de vida completamente diferente: era isto ou nada. E mesmo quem trabalha com ele dá 200% para o ajudar porque é uma história de vida incrível. Glamour, zero. Esforço, muito grande.
Um dos pilotos com quem trabalhaste mais de perto, o Lance Stroll, é muitas vezes criticado precisamente pelo contrário, por ser um menino rico, por vir de uma família milionária. Tu que estiveste com ele dois anos na Williams, como olhas para essas críticas? Não tenho nada contra as pessoas, os adeptos e os jornalistas criticarem as performances em pista do Lance. Mas o que me choca é as pessoas não verem o que é que aconteceu antes. Numa categoria em que já existiram tantos pilotos que pagaram o lugar e que chegaram lá com muito menos talento e muito menos resultados... O Lance é o primeiro piloto a chegar à Fórmula 1 a cumprir com a regra que a FIA [Federação Internacional Automóvel] criou para evitar os pilotos pagantes. A FIA criou os 40 pontos da Superlicença para não deixar que um piloto sem qualquer tipo de resultados e currículo pudesse comprar um lugar na F1. E esses 40 pontos não se compram, ganham-se nas pistas. O Lance ganhou tudo em que participou, ganhou três campeonatos em quatro anos. Se ganhou porque estava na melhor equipa? Sim, estava. E nisso o dinheiro ajuda, mas não estava sozinho. Toda a gente critica o Lance quando ele chega à Williams e eu pergunto: porque é que ele não merece lá estar? O Lance quando chegou à Fórmula 1 tinha mais currículo que o Max Verstappen. O Lance chega com um currículo semelhante ao do Lando Norris e o Lando nunca foi criticado. Aqui se vê a imparcialidade da imprensa que acompanha a Fórmula 1, não existe. Dizer que um piloto lá porque é rico não tem talento mostra injustiça e o pior do ser humano, que é a inveja.
Há muita injustiça na forma como ele é visto? Convivendo durante seis anos com o Stroll, eu não invejo em nada a riqueza da família, porque muitas vezes traz mais problemas que vantagens. Traz vantagens, claro, mas não é um mar de rosas. E porque não dar valor a um piloto que não precisa daquilo para nada, porque não dar valor a um miúdo que desde 12 anos dedica todos os seus tempos livres ao desporto automóvel? Ele podia estar-se nas tintas para isto, podia não ter de fazer dietas extremas como teve de fazer sempre, porque é um piloto grande. Podia andar em festas. Mas ele dedicou toda a sua vida, de uma forma muito profissional, a ser melhor piloto. Lembro-me da primeira conversa que tive com ele, tinha ele 14 anos. Foi uma conversa que me marcou e me deu muita vontade de trabalhar com ele. Ele disse-me: "Eu sei que posso comprar um lugar na Fórmula 1, mas eu quero lá chegar por ser bom e por ganhar tudo até lá". E foi isso que ele fez.
E como é que se ajuda um piloto a dar a volta a essa desconfiança? Acho que as pessoas não têm noção do mal que fizeram a um piloto pela pressão que lhe punham quando ele tinha 17, 18 anos. Ter de lidar com todas as críticas foi muito difícil e se calhar ninguém conhece a pessoa que está por trás do piloto, porque fizeram com que ele se fechasse muito. Uma das coisas mais difíceis no meu primeiro ano de Fórmula 1 com o Lance foi mesmo gerir essa pressão. Uma das minhas maiores lutas durante a primeira metade do ano foi convencê-lo a não usar o Instagram, o que é ridículo, porque não devia ser essa a preocupação de um desportista. Os pilotos hoje colocam uma fotografia de qualquer coisa ou dizem umas palavras sobre a sua corrida e no caso do Lance ia ter 10 pessoas a dar-lhe força e mil comentários a arrasá-lo. E isso deitava-o muito abaixo. A minha batalha era tirar-lhe essa pressão e ele chegou a um momento em que deixou de olhar para as redes sociais, conseguiu sacudir um bocadinho essa pressão e depois foi ajudado pelo pódio que conseguiu em Baku. Ele tem bastante sentido de humor e agora às vezes até me manda os comentários mais engraçados que recebe a gozar com o facto de ele ser rico.
Como é que foram esses dois anos dentro da Fórmula 1? Não gostei.
A sério? Não gostei [risos]. Mas aprendi muito e agradeço à Williams. Acho que podia ter sido uma mais-valia ainda maior para a equipa, mas havia demasiadas guerras internas para que a mentalidade estivesse mais aberta para o trabalho de um coach. No entanto, a Williams abriu-me portas para toda a parte técnica e aí aprendi muito, porque estava presente em todas as reuniões técnicas da equipa e tinha acesso a tudo. Porque é que eu digo que não gostei: porque o trabalho é muito menos gratificante do que nas fórmulas de promoção. Andámos ali dois anos em que o meu trabalho com o Stroll era tentar ter o piloto o mais bem preparado possível e procurar todos os detalhes de condução em que ele podia melhorar um, dois ou três décimos. Mas depois tínhamos um carro que era três segundos mais lento. Portanto, não servia de nada. E também não gostei porque sinto que na Fórmula 1 se perdeu um bocadinho o espírito das corridas. A parte de engenharia é tão forte que se esquecem que há um humano a guiar o carro. Só olham para o desempenho do monolugar e para números e gráficos. Às vezes, se tens um carro menos eficaz, mas mais fácil de conduzir, consegues extrair mais de um piloto. E não vi na Williams engenheiros com esta capacidade, há pouca integração, cada um trabalhava para sua parte e esqueciam o resto. E depois acho que há muitos engenheiros de pista com mais currículo e bagagem noutras fórmulas do que os que estão na Fórmula 1. A Fórmula 1 tornou-se demasiado complexa, o que faz com que haja muito trabalho de engenharia e pouco trabalho com o piloto. Eu acho que é muito mais gratificante ver os resultados imediatos numa Fórmula 3 ou numa Fórmula 2, em que talento do piloto conta mais.
Com tanta tecnologia, sentiste que falta a paixão das corridas a quem trabalha ali? Às vezes tens engenheiros que são ratos de computador e de Excel. Eu já vi todo o tipo de corridas, desde karts de aluguer até à Fórmula 1. De tudo. E às vezes eu tinha diálogos com engenheiros que nunca tinham visto um carro a andar na pista. Acreditas que há engenheiros que trabalham com uma equipa e nunca viram um carro a andar? O Adrian Newey, que para mim é a referência em termos de design de carro, é piloto nas horas vagas e se calhar entende melhor por isso, porque também anda com o rabinho sentado lá dentro. Quem não o fez se calhar tem mais dificuldade em entender o que o piloto sente e foi isso que me faltou ali. E depois há outra coisa: é muito exigente em termos de calendário e viagens.
É quase um ano inteiro a viajar à volta do Mundo. Exato. Toda a gente acha, ui, glamour, sempre a viajar, conhecer sítios diferentes. E olha que tanto eu como os pilotos somos uns privilegiados. Agora, os mecânicos, as pessoas que trabalham no paddock, os cozinheiros, quem serve os convidados, esses têm uma vida terrível. É óbvio que são bem pagos, mas a taxa de divórcios na Fórmula 1 é elevadíssima. Aquelas pessoas não vão a casa! E se passarmos de 21 corridas para 25, como se tem falado... Ali no início do ano em que fazes Austrália, depois voas para o Bahrain, voltas para a China e depois vais para Baku, quando voltas a casa depois disso nem sabes bem onde estás. Muitos daqueles que fazem Fórmula 1 não fazem mais do que três, quatro ou cinco temporadas porque é muito duro e não é nada tão glamoroso quanto parece. Portanto, em resumo, na Fórmula 1 acho que aprendi muito tecnicamente e pouco humanamente.
Portanto, voltar lá não é uma coisa em que penses muito. Não é, não é. Não cheguei à Fórmula 1 como piloto, nem nunca isso esteve nos meus objetivos e acho que não tinha capacidade para tal, mas cheguei lá na minha segunda função do desporto automóvel e fico muito orgulhoso por isso. Mas não é aquilo que mais me preenche ou que dá mais satisfação, é muito mais interessante trabalhar nas fórmulas de promoção.
Até porque foi lá que apanhaste pilotos como Leclerc ou o Lance Stroll em estado, digamos, mais puro, certo? Sim e onde ainda tens influência e onde podes contribuir para a melhoria e formação de um piloto. Não é que na Fórmula 1 não possas fazer isso. Eu continuo a achar que se as equipas de F1 tivessem uma maior abertura e se percebessem que a parte humana é muito importante poderiam também beneficiar desse trabalho. Até porque um piloto também é um gestor de recursos humanos, também tem de ter a equipa toda a trabalhar para si. Eu tentava passar isto ao Lance, dizia-lhe: "Tem os teus mecânicos todos como teus amigos". E ele muitas vezes pedia-me ajuda até com os nomes de cada mecânico, com informações sobre eles. Isso é muito importante, tens de saber gerir aquelas pessoas que trabalham próximo de ti e que trabalham para ti, tens de saber motivá-los.
Por falar nisso, apesar de não ser um piloto bem amado por todos, quem trabalhou de perto com o Michael Schumacher diz que ele era um mestre nisso, que tratava com o maior respeito todas as pessoas que trabalhavam para si. Este ano, na Prema, trabalhas com o filho, o Mick Schumacher. Reconheces no Mick as qualidades do pai? Sim. Sabes, é daqueles pilotos em que logo na primeira vez que trabalhei com ele deu para ver que tinha cultura de corridas. Vês que ele teve muitos ensinamentos dos tempos em que o pai o acompanhava nos karts. O Michael Schumacher é um daqueles pilotos em que o talento natural não era extraordinário, mas era um trabalhador muito duro. Trabalhou arduamente e já naquela altura era o mais bem preparado fisicamente, o que tinha mais conhecimentos técnicos. E vês isso no Mick, porque a primeira vez que ele testou Fórmula 4 connosco saía do carro e ia olhar para os pneus, coisa que outros pilotos não ligam. Ele aprendeu isso do pai. Depois é eticamente muito correto, um piloto muito educado, muito humilde, que tem uma pressão incrível e injusta em cima dele. Se ele pudesse correr sem o nome Schumacher tenho a certeza que o faria. Mas é outro daqueles pilotos que é preciso dar valor. Porque é que ele se sujeita a isto? É mesmo porque ele tem paixão pelo desporto. Tem de ser valorizado e protegido.
Imagino que não seja sempre fácil trabalhar com um piloto com um perfil tão alto e de quem toda a gente fala há anos. O Mick tem uma atenção mediática, de fãs, de jornalistas, desde os karts, atenção que outros pilotos se calhar só sentem na Fórmula 1. Nós tínhamos de rodear o carro dele senão o Mick nem equipar-se tranquilamente conseguia. Aquele ritual que cada piloto tem de se concentrar antes de entrar para o carro, o Mick desde a Fórmula 4 não o pode ter, porque há sempre uma câmara, alguém a pedir para assinar uma foto do pai... as pessoas não fazem por mal, mas é uma pressão incrível e que dificulta o trabalho. Agora, vê-se ali muito do que era o pai. Eu cheguei a conhecer o pai, mas não de uma maneira muito próxima. Muita gente tinha uma imagem má do Schumacher, que parecia um piloto frio, distante, calculista, impiedoso, que a vitória estava acima de tudo e que fez algumas manobras muito controversas - da mesma maneira que o Senna fez, não era nenhum anjinho - mas toda a gente com quem eu trabalhei, e tive a oportunidade de trabalhar durante muitos anos com engenheiros de pista da Ferrari que estiveram com ele, todos diziam que em termos humanos foi o melhor piloto com quem trabalharam. Era um piloto que sabia os nomes de toda a gente na fábrica, que tratava todos de igual para igual, que se preocupava com a parte familiar dos seus mecânicos e engenheiros, tratava-os como amigos. Tinha detalhes que outros pilotos não tinham, oferecia presentes de Natal a toda a gente que trabalhava com ele. Nunca ouvi ninguém que tivesse trabalhado com ele a apontar alguma coisa.
É natural que toda a gente pergunte quando é que o Mick Schumacher chega à Fórmula 1. Como é que ele lida com isso? Tem pressa para lá chegar? Não tem pressa, tem os pés bem assentes na terra. Tem o desejo de lá chegar e de ser competitivo, mas não tem pressas nem quer queimar etapas e isso é importante. Agora, há uma pressão mediática muito grande. Basta dar este exemplo: na quinta-feira antes da estreia dele na Fórmula 2, que por si só já ia criar uma atração muito grande, a Ferrari anuncia que ele ia testar com eles dias depois. E no dia em que eles fazem esse anúncio eu não conseguia entrar na nossa box, era preciso afastar os repórteres e os fotógrafos. E isto também demonstra a tal falta de sensibilidade da Ferrari: bastava terem anunciado na 2.ª feira a seguir à corrida e já tinham retirado toda a pressão ao Mick para a sua estreia. Com isso só tornaram o trabalho do piloto e o nosso trabalho como equipa muito mais difícil.
E quando é que achas que ele pode chegar à Fórmula 1? Pode chegar quando ganhar mais corridas na Fórmula 2 e quando estiver mais preparado. Eu acho que ele ainda não está preparado e não lhe fará mal mais um ano de Fórmula 2, mas por outro lado pode acontecer o mesmo que aconteceu ao Lance Stroll. Se tens a oportunidade de ir já para o próximo ano, com um contrato de dois ou três anos, porque não ir aprender na Fórmula 1 em vez de aprender na Fórmula 2? O Lance na altura tinha ganhado a Fórmula 3 e a questão ali era: temos a oportunidade de ir para a Williams, arriscamos ou é melhor ir para a Fórmula 2? E a nossa decisão foi ir logo para a F1, porque eram um contrato de dois anos com outro de opção e por isso ele tinha a oportunidade de aprender e ia aprender mais na Fórmula 1 do que na Fórmula 2.
Este ano estavas em Spa na prova de Fórmula 2 quando se deu o acidente trágico que provocou a morte do Anthoine Hubert. Nestes tempos em que já é raro vermos acidentes fatais nas fórmulas, vocês no paddock perceberam logo que a situação era muito grave? Felizmente a segurança aumentou muito, mas ali percebemos logo todos que era muito grave. E é a primeira vez que eu lido em pista com a morte de um piloto que eu conheço, que foi nosso adversário, que esteve no pódio connosco e que era um piloto muito simpático. O Anthoine era muito bom e muito correto, inteligente e rápido - porque podes ser correto e ser lento. Apercebemo-nos logo que era muito grave. Por outro lado, o Juan Manuel Correa, que é um piloto que foi da Prema e que conhecemos muito bem, também estava envolvido e vimos ali os pés do piloto expostos, por isso tivemos logo a certeza que havia lesões graves. Mas pelo menos ele mexeu-se. Mas quando estás no mundo das corridas sabes que um impacto daquele tipo, em que um carro está parado na lateral e outro corta-o ao meio, por assim dizer, esse é o impacto mais perigoso que pode haver. Isso juntamente com o facto da corrida ter sido interrompida de imediato e não haver repetições, só podia dizer que algo de muito grave tinha acontecido. Quisemos todos pensar ali que era grave mas não fatal. Foi muito difícil de lidar.
Como é que ficaram os pilotos? Afinal de contas estamos a falar de miúdos de 19, 20 anos, que vêem um colega morrer. O Lance Stroll pediu-me para ter uma conversa, estivemos mais de uma hora à noite a falar. O Sean Gelael [piloto da Prema na Fórmula 2] encarou muito melhor do que eu estava à espera, porque é um piloto muito inteligente e sensível. Ele dizia-me aquela expressão: We need to put a brave face ["Temos de pôr uma cara valente", em português], mas também avisou-me logo que no dia a seguir não corria, isto ainda antes da organização decidir cancelar a corrida. O Mick estava muito afetado, muito mesmo. Aquilo bateu-lhe muito forte. Porque eles sabem que aquilo lhes podia ter acontecido a eles e foi a primeira vez que o viram. No meio do azar nós tivemos sorte, porque no acidente metade de uma asa bateu no carro do Sean, mas o halo protegeu-o.
Nessa conversa com o Stroll, qual era a preocupação dele? Estava também muito afetado. Perguntava-me: "Vale a pena correr este risco?". E depois também chegámos à conclusão que era um infelicidade e que a única coisa que pelo menos nos consolava era que o Anthoine tinha morrido a fazer aquilo que mais gostava. Temos de continuar a correr por sinal de respeito e homenagem a um amigo que se foi, mas temos também de tirar ilações e tentar melhorar, porque há coisas que ainda podem ser melhoradas. Aliás, eu antes era contra o halo e agora já não sou. Não fica bonito, mas que se lixe o bonito. Basta ter salvo um - e se calhar já salvou mais do que um - para ser a favor.
O Stroll colocou a hipótese de não correr? Sim, sim, também. No sábado, quando falámos pela primeira vez. ele disse-me: "Eu acho que não vou correr amanhã". Mas depois falámos, ele dormiu e pensou melhor. Acho que ajudou também que as corridas de Fórmula 3 e Fórmula 2 fossem canceladas, porque os pilotos da Fórmula 1 entenderam também que já tinha sido respeitado o momento triste e a memória do piloto. Tiveram dúvidas, mas acabaram por correr.
Qual é o piloto com quem trabalhas agora que vês como possível estrela? Nesta nova geração não vejo nenhum ao nível de outros que falei anteriormente. Acho que o Mick Schumacher tem potencial. Na Fórmula 3 não vejo um talento ao nível de um Verstappen, de um Leclerc, de um Ocon ou de um Lance, mas também neste momento não estou tão dentro da Fórmula 3 como anteriormente, estou mais na Fórmula 2. Não gosto tanto desta nova geração de pilotos, sabes? Estão mais preocupados com os posts no Instagram e no Twitter do que em analisar o que têm de melhorar. Irrita-me profundamente quando um piloto não faz a pole e a primeira coisa com que se preocupa é em ir pôr desculpas no Instagram em vez de ir falar com a equipa.
E dos pilotos que estão neste momento na Fórmula 1 e com quem nunca trabalhaste, qual gostarias de treinar? Trabalhei pouco com o Max e se me dessem a escolher de todos os pilotos de Fórmula 1 era o que eu escolhia, porque acho que ele tem um potencial incrível e pode ser campeão do Mundo. Trabalhar com ele poderia ser um desafio extraordinário, não pela parte de pilotagem, porque aí não há quase nada a melhorar, mas gostava de lhe dar aquela perspectiva tática, de ter de olhar para as corridas de uma maneira diferente, sem lhe tirar a sua agressividade e aquela coisa que ele tem de ainda falar o que pensa. E eu gosto muito disso. Nunca trabalhei com o Daniel Ricciardo e acho que devia ser divertidíssimo, além que é um excelente piloto. Eram estes dois. Por outro prisma, adorava ter um dia trabalhado com o Felix Rosenqvist na Fórmula 1, porque acho que ele teria conquistado toda a gente. Se ele tivesse chegado lá era daqueles que eu pagava para trabalhar com ele.