Entrevistas Tribuna

Domingos Gomes: “Socorri o Silvino, na Luz, os adeptos aplaudiram. O Ivic disse-me: ‘Isto é uma guerra.’ Respondi: ‘Engana-se, sou médico’”

Domingos Gomes, ex-médico do FC Porto
Domingos Gomes, ex-médico do FC Porto
FERNANDO VELUDO / NFACTOS

Aos 79 anos, duas décadas após ter deixado o seu clube de sempre para assumir o lugar de deputado do PSD, ainda lhe pedem autógrafos nas ruas do Porto. Não disfarça o orgulho que sente nestes gestos, que atribui à memória de quem viveu um antes e um depois da chegada da dupla Pinto da Costa e José Maria Pedroto às Antas, cruzada que compara à da conquista do Sul por D. Afonso Henriques. A comemorar 50 anos de medicina desportiva, Domingos Gomes recorda como foi parar ao FCP, jovem de barba e cabelo longo, visual que lhe valeu a alcunha de “Bee Gees”. Em Alvalade, em 1995, socorreu os adeptos leoninos feridos na queda do varandim. Recebeu em troca um troféu de louvor, que guarda até hoje

Domingos Gomes: “Socorri o Silvino, na Luz, os adeptos aplaudiram. O Ivic disse-me: ‘Isto é uma guerra.’ Respondi: ‘Engana-se, sou médico’”

Isabel Paulo

Jornalista

Já assinou o manifesto de recandidatura de Pinto da Costa à presidência do FC Porto?
Não, mas assino, se me pedirem.

Aos 81 anos e na liderança do clube desde 1982, ele tem condições para se manter ao leme?
Claro. Se se sente com forças, é uma mais-valia para o clube. Continua a ser um líder respeitado pelos adeptos, e nos ‘grandes’ não vejo quem faça melhor do que ele.

Tudo indica que, mais uma vez, irá correr a solo...
Uns não avançam em sinal de respeito, outros porque sabem que vão desgastar-se e perder nas urnas. A massa associativa do FC Porto é a mais grata e leal do mundo. Têm memória do que era o clube antes e depois de Pinto da Costa. E não é só assim com o presidente. Deixei o clube há 20 anos e, imagine, ainda me pedem autógrafos! É algo extraordinário.

André Villas-Boas e Vítor Baía não escondem o sonho de chegarem à presidência. São sucessores à altura?
Não conheço Villas-Boas o suficiente para me pronunciar. O Vítor conheço-o bem. Sempre teve perfil de líder. Se diz que será importante um dia no futuro do FC Porto, não fala em vão.

Esteve nos momentos mais marcantes da equipa que quebrou o longo jejum de 19 anos sem ganhar títulos...
Em 78/79, ao lado do grande José Maria Pedroto e de Jorge Nuno, por quem passava tudo. Com jogadores como Oliveira, Gomes, Duda, Rodolfo, Octávio, Murça, Freitas, etc., foram por aí abaixo como D. Afonso Henriques conquistar o Sul. Foi um tempo de grande mudança de mentalidades, de grande profissionalismo e garra. No autocarro eram vidros partidos, vaias à chegada aos estádios do autocarro, etc.

Como foi parar às Antas?
Coincidências da vida. Nasci em Ribeira de Pena, Trás-os-Montes, fui para o Porto estudar Medicina, e no segundo ano fui chamado para a tropa. Parti para Moçambique, para a Beira, mas ia fazer exames a Lourenço Marques, cortesia de Veiga Simão, que era lá reitor da Universidade. Numa das viagens de regresso, conheci a bordo o dr. Santana, que cantava fados e era médico do FC Porto. Concluí os estudos no Porto, fui trabalhar para o Hospital de São João, onde o dr. Santana era urologista. Um dia ouço-o dizer a um colega: “Olha aqui o Domingos, já temos um gajo para a natação.” A modalidade estava sem médico e treinador, um estrangeiro chamado Lorde que não era muito lorde foi-se embora.

Aceitou logo?
Ainda protestei: “Eu? Nem sei nadar bem.” Respondeu-me que com os miúdos não havia problema, eram umas dores no abdómen e uns exames. E avisou-me que não me iam pagar nada. No dia seguinte apresentei-me. Isso em 73, 74.

FERNANDO VELUDO / NFACTOS (EXCLU

E quando vai para o departamento de futebol?
Uns dois anos mais tarde. Um dia estava o sr. Pedroto desesperado com uma dor de dentes e, não tendo sido atendido no dentista, voltou para o gabinete técnico, onde estava Hernâni Gonçalves, que era o preparador físico da equipa. O saudoso “Bitaites” disse-lhe que ia ver se encontrava o dr. Bee Gees. “Quem?” Chamava-me assim por causa da minha barbicha e dos cabelos compridos, que não cortava desde que voltei da tropa. Liguei para o hospital, e o estomatologista de serviço respondeu em vernáculo: “F... Qual Pedroto?” “O verdadeiro”, disse, e lá fomos. Pouco tempo depois, comunica-me que iria ser convidado para chefiar o departamento médico, que a coisa não seria pacífica, que quem decidia era o Jorge Nuno.

O presidente era Américo de Sá...
Era, mas o diretor de futebol era Pinto da Costa, um departamento independente, e não era qualquer um que ali entrava. Ajudou ser assistente de fisiologia na Faculdade de Medicina e já colaborava nos exames médicos da equipa de futebol no início da época.

Lembra-se da sua primeira decisão?
Foi na alimentação. A ementa era sopa, prato de carne, prato de peixe, doce e fruta. A dieta passou a ser mais ligeira, só de um prato, doce ou fruta. Claro que com o aval do senhor absoluto, que era quem tinha o pescoço no cepo, o mister, e com Pinto da Costa a sancionar. E acabou-se com as torneiras fechadas, porque havia o tabu de os jogadores não beberem durante os treinos. Foram tempos de grande mudança. Pedroto era bem mais do que um treinador da bola.

Por exemplo?
Nos hotéis, cá ou no estrangeiro, enviávamos as ementas por telex, porque tinham a mania de inventar. Aquando do acidente de Chernobyl, além de ir o chefe Hélio, seguiam os alimentos. No tempo do Artur Jorge, rigorosíssimo, já era tudo empratado, para evitar excessos. E antes da Taça Intercontinental fizemos treinos às 3h e 4h da manhã, para prevenir o jet lag. Não foi simples convencer o Ivic. Vencemos e fartei-me de chorar. E ele não gostou quando fui a correr socorrer o Silvino, na Luz. Faz uma luxação no cotovelo e cai; eu vou a correr, coloco-o no sítio e os adeptos aplaudem. No banco, diz o Ivic: “Isto é uma guerra.” “Engana-se, sou médico.”

Tal como no caso da queda do varandim, em Alvalade...
Chegámos e estavam a atirar garrafas lá de cima. Entrámos na 10 A, ouço um alarido, espreito e vejo pessoas em cima umas das outras. Tento ajudar, mas a polícia não me deixa passar. Explico que sou médico e vou prestar socorro até chegarem as ambulâncias. Não sou um herói, fiz o meu dever sem olhar a camisolas.

Aubrey Washington - EMPICS

Quem foram os treinadores do FC Porto que mais o marcaram?
Bobby Robson era excecional. Alegre, respeitador, um Sir. Para ele, Pinto da Costa, era um deus. Foi a Lisboa contratá-lo quando já estava a fazer as malas para regressar a Inglaterra, após ter sido despedido do Sporting quando liderava o campeonato. Dizia “o meu presidente”, e comigo era “o meu doutor”. Venceu o troféu de treinador do ano (1995) e ofereceu-o ao departamento médico por termos recuperado os jogadores em tempo recorde e ter sido campeão nacional. Quando lhe foi diagnosticado o primeiro cancro, partiu para Ipswich. Ia eu a caminho do Algarve, telefonou-me a dizer que ia ser operado. Apanhei o avião e fui ter com ele, apesar de estar a ser bem acompanhado.

Augusto Inácio e José Mourinho ficaram a orientar a equipa, cuja convivência não era muito pacífica...
Nunca assisti a nenhuma discussão. Recordo-me que em campo e em termos de resultados funcionaram muito bem. O FC Porto foi campeão nacional, o arranque de um percurso imparável que levaria ao inédito penta campeonato.

Alguma vez pensou que José Mourinho iria o 'special one', várias vezes eleito melhor treinador do mundo?
Era muito jovem, estava a dar os primeiros passos, mas tecnicamente já se adivinhava que seria um treinador capaz. Era atento, escrevia muito.

A internacionalização do FC Porto tem a mão de Artur Jorge. Lembra-se do que disse aos jogadores, no intervalo do jogo com o Bayern, na final da Liga dos Campeões Europeus, em Viena, quando perdiam por 1-0?
O Artur Jorge era muito prático na relação com os jogadores, com o suporte férreo de Octávio Machado, um grande jogador do FC Porto e um adjunto fundamental no crescimento do clube nessa altura. Que me lembre, disse qualquer coisa como: “Têm 45 minutos para ganharem isso. Façam o que sabem fazer e fazer história. Se correr mal, não venham chorar no fim”. Deu ao FC Porto uma dimensão ganhadora incrível, responsabilizando ainda mais os diferentes departamentos e as pessoas. Não bastava o médico dizer se o jogador A ou B estava apto ou não. A alta era escrita em quadruplicado - um documento para o jogador, outro para a equipa técnica, outra para o diretor de futebol e a última ficava no departamento médico. E começou a fazer o 'teste de mentiras'...

Peter Robinson - EMPICS

O que era?
O Artur Jorge dizia que se via se o jogador estava bem ou não vendo-o treinar, saltar. Ter alta só porque não se queixava ou com base em exames não era critério. Eu ou o Rodolfo [Moura] estávamos presentes no aquecimento e treinos a ver os jogadores que vinham de lesões. Os adjuntos técnicos e médico tínhamos de estar sempre de olho vivo. No hospital tive de pedir licença sem vencimento e ficar a tempo inteiro no FC Porto.

É fácil um jogador enganar o médico ou o treinador sobre a sua condição física para competir num jogo importante?
Com a experiência, torna-se mais fácil perceber se está realmente pronto a jogar - basta, por exemplo, mancar numa determinada situação ou desviar o pé num lance em que não devia fugir. Mas é óbvio que não somos infalíveis.

Quem eram os jogadores mais queixinhas?
Não é uma questão de queixinhas. Há indivíduos que perante um toque mais duro gritam como desalmados, outros com uma enorme resistência à dor. O André, no final de um jogo, aparece a queixar-se de uma coisa quente no pé. Era sangue, tinha rasgado o gémeo, continuou a jogar e nem um pio. O Jorge Costa foi operado aos dois joelhos, lesões graves, e era impressionante como superava a dor na ânsia de voltar a jogar. Fazia recuperações recordes porque tinha músculos bem preparados a suportar-lhe os joelhos. O Inácio, o Eurico, que também passaram por lesões gravíssimas, também eram rijos. Já o Madjer, quando lhe doía alguma coisa, vinha logo perguntar o que podia ser ou não ser. Preocupava-se muito, era o feitio dele.

E quais os jogadores com quem criou maior empatia?
Tantos... Seria uma injustiça estar a recordar uns e esquecer-me de outros. Para nomear só um, vou falar do Futre, que era um miúdo encantador. Bonito, talentoso, as miúdas não o largavam. Chorei quando se foi embora. E, acredite, não fui o único.

É verdade que ia para o departamento médico dormir quando fazia noitadas para não chegar atrasado aos treinos?
Não sei se era por causa de noitadas. Ia para lá descansar quando lhe apetecia e nós deixávamos. O Artur Jorge e o Octávio eram duros com ele, e os colegas mais velhos volta e meia atiravam-lhe água pela cabeça abaixo para o acordar. Era um ambiente fantástico. Ganham-se títulos com luta e profissionalismo, mas ajuda quando se trabalha com prazer e boa camaradagem. Uma vez demos por falta dele quando íamos para o aeroporto. Lá fui eu e o Octávio ao quarto ver se estava doente. Estava a dormir. Levou um raspanete e pediu de imediato desculpas a toda a gente. Depois entrava em campo e era o abono de família.

Quando Iker Casillas sofreu o enfarte agudo do miocárdio, a sua reação foi: “O importante é que temos homem, se temos jogador é secundário”. Decorridos cinco meses, acha que voltará a jogar?
Não tenho qualquer informação privilegiada. Sei apenas o que se vai publicando. Conheço um paciente que fez um enfarte do miocárdio aos 50 anos e que continua a fazer meias maratonas. Foi testado, tem as coronárias permeáveis e nada o impede de correr. O Casillas, que é um jovem inteligente, decidirá consoante a opinião dos médicos que o estão a acompanhar. Já deu muito ao futebol e tem competências para continuar a fazer a diferença noutras funções, como já o está a acontecer.

Como médico da UEFA e da FIFA fez mais de 500 controlos anti-doping. Que famosos lhe passaram pelas mãos? Houve algum que acusou positivo?
Foram tantos. Zidane, Figo, Ronaldo, Paulo Sousa, Figo, os irmãos Koeman. Que eu saiba nenhum acusou positivo. Os craques, em geral, eram os que se apresentavam mais tranquilos. Antes de ir para o Controlo Antidoping da UEFA e FIFA, estive no Comité Médico da UEFA, indicado por Gilberto Madaíl, então presidente da FPF. No início, nos jogos internacionais, era eu quem marcava as viagens e ninguém sabia que jogo ou jogadores ia controlar. Chegávamos aos estádios incógnitos, de sobretudo ou casaco a esconder o distintivo da UEFA. Só quando chegava é que me apresentava. Chamava o médico da equipa, o delegado ao jogo e comunicava quem eram os jogadores que iam ao controlo. E éramos nós quem tinha de entregar as colheitas nos laboratórios, com tantas normas de segurança que mais pareciam prisões.

Quando deixa o FC Porto?
Quando o António Oliveira foi treinar o FC Porto, trouxe a equipa médica que o acompanhou na seleção. Depois, quando chegou Fernando Santos, ainda me ligaram mas tinha sido eleito deputado nas listas do PSD, a convite de Luís Filipe Menezes. Não quis abdicar da função para a qual fui eleito. Foi uma honra ter estado na Assembleia da República. É nessa altura, que é alterada a legislação dos departamentos clínicos dos clubes, que passariam a ter, no mínimo, um médico especializado em medicina desportiva, enfermeiro e fisioterapeuta. A lei foi votada e aprovada, mas acabou por não ser regulamentada, nessa altura, devido a divergências entre o PS e o PSD.

Apesar de o FC Porto ter uma estratégia de comunicação muito reservada, manteve com os jornalistas um diálogo aberto em relação às lesões dos jogadores...
Eu nada sabia de comunicação, mas percebi a importância dos media. Entendi que era melhor para todos informar os jornalistas e, dessa forma, os adeptos, da exata dimensão das lesões dos jogadores, em vez de abrir caminho à especulação. E lá explicava quanto tempo ia demorar a recuperação, o que tinha esse e aquele jogador, em linguagem acessível. Acho que foi até pedagógico em relação ao quadro de lesões no futebol.

Há algo de que se arrependa?
Acho que estive tempo demais no futebol, mas é difícil perceber o melhor timing para sair. Julgo que é quando se chega à conclusão que já não se pode dar mais à estrutura.

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