Entrevistas Tribuna

“Chamarem-me de puta? Isso não é normal nem podemos permitir que seja”. Este é o alerta da basquetebolista Sara Djassi

Sara Djassi escolheu ser entrevista na escola secundária da Amadora, onde começou a jogar basquetebol
Sara Djassi escolheu ser entrevista na escola secundária da Amadora, onde começou a jogar basquetebol
NUNO BOTELHO

Chama-lhe a “pior experiência” da sua vida. Recusa ser uma vítima, é antes uma sobrevivente dos abusos verbais e assédio físico do seu ex-treinador. Sara Djassi tem 30 anos e está entre as melhores do basquetebol nacional. Representou os espanhóis do CDB Clarinos Ciudad de la Laguna Tenerife. Um dia, fugiu do treino e o que ninguém sabe é que correu para a polícia para apresentar queixa. Ignoraram-na. Escondeu-se em casa. “Naquele momento só queria atirar-me do patamar de minha casa para o pátio. Não me queria matar, só queria sentir uma dor física maior que aquela que estava a sentir dentro de mim. Ninguém me ouviu, apesar de ter tentado falar.” Desde que tornou pública a sua história, Sara já recebeu dezenas de contactos de atletas que passaram “pelo menos ou pior” - algumas portuguesas e algumas a jogarem em Portugal

“Chamarem-me de puta? Isso não é normal nem podemos permitir que seja”. Este é o alerta da basquetebolista Sara Djassi

Nuno Botelho

Fotojornalista

Acabámos de nos sentar num banco no meio do pavilhão da escola secundária da Amadora. Sara Djassi já tirou um caderno com notas da mala e começa: “Isto não foi algo em que eu acordei e decidi que ia contar. A razão pela qual vim a público é porque acontece com qualquer um. E porque não contar? Não importa quando acontece, importa quando a pessoa está preparada para se libertar e contar”. Pára. Respira. Os olhos começam a ficar aguados, as maçãs do rosto tremem com a tensão. Sara não quer chorar. Não quer quebrar.

Sara, basquetebolista internacional portuguesa de 30 anos, denunciou abusos verbais e assédio físico do seu ex-treinador, Claudio Garcia (além de treinador, também presidente do CDB Clarinos Ciudad de la Laguna Tenerife). A Tribuna Expresso conta o dia em que gritou basta e correu para a polícia para apresentar queixa e ninguém a ouviu, lembra como quis fugir e passou horas no aeroporto ou como, após ter revelado o que lhe aconteceu, recebeu dezenas de mensagens de outros atletas. “Quantos mais são precisos para que alguém faça alguma coisa”, questiona.

Estamos sentados há poucos minutos, frente a frente. Tanto nós como a Sara sabemos o objetivo da conversa. Não havia ainda perguntas e já Sara dava respostas. “Isto não é uma acusação ao clube, é uma partilha do que o treinador me fazia. O que eu quero é que isto seja um alerta.” E deixamos Sara continuar, até que pára. Volta a respirar, sustém a respiração. Não quer chorar. Não quer quebrar.

Deixa-me fazer as perguntas. Começamos por coisas mais fáceis. Porque escolheste este lugar para a entrevista?
Foi aqui que comecei a jogar e por causa daquela que é hoje a minha melhor amiga. Se eu contar como isso aconteceu...

Conta.
A minha melhor amiga, a Rosinha, já praticava a modalidade, enquanto eu fazia atletismo. Tivemos uma desavença e ela deu-me uma chapada na cara. Eu só não devolvi porque na semana anterior já tinha andado em confusões e tinha sido chamada ao conselho executivo. Mais algum problema e seria expulsa provavelmente. Então fui ver onde ela jogava e era aqui, na secundária da Amadora. Inscrevi-me no basquete para lhe devolver a chapada. Sabia que nos treinos iria jogar contra ela e ia ter a oportunidade de lhe devolver [ri-se]. Tinha 13 anos, não sabia nada, nem driblar. O meu foco nem era o basquete, era a Rosinha, ela era a minha bola. A minha mãe sempre me disse: nunca dás primeiro, mas se te derem não deixas ficar sem resposta. Entretanto, inconscientemente, ganhei o gosto pela modalidade, passei a gostar da Rosinha e esqueci-me de qual era o meu foco inicial. Depois fomos evoluindo e fomos caminhando as duas como atletas. Mas ainda hoje digo que se não fosse aquela chapada, nunca tinha começado no basquete. E eu não sei o que seria de mim sem o basquete hoje. Não seria a mesma pessoa.

O que é que o basquetebol te ensinou?
Acho que me ensinou a tornar as coisas más em coisas positivas. Ensinou-me a partilhar, trabalhar em equipa, a respeitar. Não sabia que era competitiva, desconhecia que era capaz de incentivar as outras pessoas. Mais ainda: tens de ser muito forte mentalmente para aguentar. Tens de ser forte quando um treinador está a gritar contigo e tens de saber diferenciar o construtivo do destrutivo, tens de saber qual é o teu foco. Por exemplo, antes não levava a escola muito a sério até que percebi que para ir para os EUA tinha de estudar. Tinha que ter boas notas. Antes andava à onda da maré, passava de ano e chegava. Não tinha objetivos e o basquete direcionou-me.

NUNO BOTELHO

Portanto, o objetivo era ir jogar para os EUA?
O objetivo era os EUA. Quer dizer, não. O sonho é que era os EUA. Porque quando comecei sempre disse que queria ir, mas não sabia nada do que era aquilo. Não sabia o quanto era preciso trabalhar para chegar aos EUA. Até parece fácil chegar lá, mas produzir lá? Isso é outra coisa totalmente diferente. A cultura é diferente. As amizades são diferentes. Eu fui sozinha, nem sabia falar inglês.

Chegaste lá com que idade?
Tinha 19 - e isso já era muito tarde, porque tipicamente vais com 17, logo após o fim do secundário. Eu não fui assim.

Como foi esse choque? Porque a cultura desportiva norte-americana é muito diferente da europeia...
Só pensei: "Onde é que eu me vim meter?". Antes dizia que ia para os EUA viver o "American Dream". Qual American Dream... [ri-se] Cheguei lá e a escola era tão isolada da cidade que eu via mais animais que pessoas. Estava com a minha equipa, a equipa masculina e os atletas de mais dois ou três desportos que também eram praticados lá na universidade. Quando cheguei foi... wow [suspira]. Estive quase para desistir. Só não o fiz porque sabia que isso implicava que a minha mãe arranjasse outro trabalho, eu também teria de ir trabalhar e talvez tivesse de desistir de vez do basquete. Chegas a um ponto que tens de decidir: faculdade ou o basquete. Só nos EUA é que há oportunidade de juntar as duas coisas e só tens de fazer aquilo que mais gostas, que é jogar. Eles fazem tudo por ti, está tudo planeado, os horários, os momentos de estudo. Quando cheguei o choque inicial foi a língua, que eu não falava - dizia yes, hello, hi. Ficava muito nervosa e entrava em pânico porque os americanos são muito rápidos e quando fazem uma pergunta querem logo resposta. Eu queria pedir comida ou ir ao McDonald's e pedia sempre a mesma coisa de quem estava comigo. Muito simples. E depois os treinos... E também não tive boas colegas, algumas não gostaram da minha presença. Para algumas era como se eu tivesse saído de Portugal para vir ocupar o espaço delas.

Toda a equipa era norte-americana?
Havia só mais uma estrangeira. Era da Letónia, mas já estava integrada e aquele era o meu primeiro ano. Eu tinha medo de sair do quarto porque elas esperavam-me à porta para lutar comigo. Passei o Natal sozinha, não pude ver a minha família por mais de dois anos. Foi aí que achei que tinha de me esforçar nos estudos. Tinha dois focos: estudar e jogar. Sempre a pensar que só assim podia dar uma vida melhor à minha mãe e a mim mesma. Comecei a tirar boas notas e passei a ser mais respeitada pelas minhas colegas, que começaram a vir ter comigo e a pedir ajuda. Automaticamente percebi que esse era o problema: tinha que lhes mostrar o meu valor. O basquete também começou a correr bem, fui a segunda melhor da equipa. No total, foram quatro anos. Treinava, treinava, treinava. Eu não vinha a casa porque estava cansada de ser a mais fraca a nível físico. Acordava às 5h, ia para a musculação, depois fazia treinos individuais, depois aulas, voltar aos treinos. O resto da equipa foi o verão para casa. Quando voltaram, eu já estava dez vezes mais preparada. Sentia-me super bem e a progredir. Não fui jogadora de banco, era titular. Para mim é mais que basquetebol. Quando vou para campo é mais que um jogo de 40 minutos. Deixo tudo lá dentro.

Depois voltaste a Portugal...
Sim, estava a jogar como profissional na Quinta dos Lombos. Passei bem lá.

E depois Espanha.
Tinha um agente e senti que a decisão de ir para Espanha foi pressionada. Quando me deu o contrato fui pressionada. Agora eu olho para trás e vejo que isto não é uma coisa que se leia e assine em um ou dois dias, é preciso ler com atenção, perceber. Tinha 25 anos e nem percebi o contrato. O meu agente dizia-me que não assinar seria perder uma oportunidade de ir para fora e dar um grande salto. E logo na minha cabeça: sim, assino tudo. Foi o meu pior erro. Fiz perguntas mas as respostas não foram claras. Eu assinei mas não estava preparada. E logo que cheguei começaram os sinais de que algo não estava bem. São pequenos pormenores que no momento não se dá atenção mas que no final contam. Por exemplo, se no meu contrato diz que tenho direito a um quarto com cama de casal e entras e vês uma cama individual. O que vais pensar? Eu pensei: não é um grande problema, deixa para lá. Quando só és paga 15 dias depois, quando meu treinador sabia que eu ajudava a minha mãe. E o pior é que quando eu treinava com a equipa, os comentários inapropriados...

Tudo isso começou logo que chegaste à equipa?
Diria que ao fim de três semanas, um mês. Pensava que era eu que tinha de me adaptar. Porque às vezes eu via as minhas colegas, que não reagiam aos comentários inapropriados, aos insultos, e pensava quem era eu, que tinha vindo do outro país para reagir. Eu é que me tinha de adaptar àquela cultura. Quando começou a ser pessoal... percebi que nada daquilo era normal. Eu chorava todos os dias no meu quarto, sentia complexos com o meu corpo porque sentia que era observada e não era pela qualidade enquanto jogadora ou pela ajuda que estava a dar ao clube.

Sentias que eras observada pelo teu corpo enquanto mulher e não como atleta?
Sim. Quando ele começou com comentários...

Quando dizes ele, estás a falar de quem?
Ele. Ele chama-se Claudio Garcia e é o treinador atual do Clarinos. Para deixar claro: o meu problema foi com Claudio García e não com o clube.

Mas falavas nos comentários que o Claudio García te fazia.
Quando fazia brincadeiras com o meu corpo, o rabo, dizia que eu era boa... Eu queria responder logo e as minhas colegas batiam na perna e sussurravam: não digas nada, não digas nada, finge. E eu até fingia. Depois houve um dia em que me virei para ele e disse: não, basta, não quero essa brincadeira. Não quero. Pára de gritar connosco como se fossemos cães. Todos queremos ganhar mas há maneiras de se falar. Aquilo já era completamente destrutivo, não é construtivo. Chamarem-nos putas? Isto não é normal nem podemos permitir que seja. Onde é que isso é construtivo? Eu antes de ser atleta sou mulher. Antes de mulher sou humana. A sério que para jogar basquete tinha de passar por isto? E as minhas colegas diziam: "Sara, nós sabemos que ele é assim mas não ligues". Como não? Como não ligar? Como não ligar a uma pessoa que me pergunta se tenho namorado, que quer saber quem ele é, que vai atrás de mim, que diz que vai descobrir porque aquilo é uma ilha pequena. Como não? Como não? Senti-me invadida. Já não era basquetebol, já não era prazer. Tornou-se raiva. Tentava sempre distanciar-me do treinador. Ele estava num lado do campo, eu estava na outra ponta. Ele estava numa tabela, eu na outra. Sempre a fugir. Nas viagens, lembro-me perfeitamente: ele via os bilhetes, quem estava sentado com quem, onde estavam. E isto até já podia não ser nada de especial mas eu tinha tanto medo que na minha cabeça já era: “Meu deus! se eu ficar sentada ao lado dele, o que me vai acontecer?”

Alguma vez isso te aconteceu?
Não me lembro. E, se aconteceu, eu troquei de lugar com uma colega. Não. Mostrava-me sempre forte, mas por dentro só pensava: "O que é que ele é capaz de fazer?" [Pausa] Ele tirou-me o prazer do basquete. Tirou-me tudo. Eu não julgo as pessoas que o estão a defender em Espanha, que dizem que eu tenho de contextualizar. Foram as palavras usadas por ele.

Que palavras eram essas?
“Chupáme los huevos, cojones, hija de puta” [chupa-me os tomates, colhões, filha da puta]. Porquê? Putas. Porquê? Quem é que vai dizer basta? Ninguém dizia nada, nem o staff. Mas eu acho que não diziam não era porque achavam normal, era por se sentirem impotentes, não tinham poder acima dele. Ele deixou-me claro: “Tu não tens poder aqui, eu mando em ti". Eu lesionei-me, tentava treinar, pedi tratamento. Ele levou-me, mas sabes o que ele fez no final? Fui informada de que tinha uma conta para pagar devido a um tratamento que ido fazer sem autorização do clube. Ele disse que eu destruí a casa onde vivia, que não devolvi a chave. Fez isto tudo. Para sair do treino tive de passar entre as pernas dele.

Como assim? O que se passou para teres de sair assim?
Quando eu estava lesionada, a dado momento, num treino disse que não conseguia mais, precisava de alguma coisa. Eu estava numa agonia que não aguentava e nesse treino ele estava com raiva de mim - ele sempre teve alguns problemas comigo. Nesse treino ele gritava e eu não conseguia. Ele gritava: "Vai rápido, corre, lança, eu mando aqui e sabes que mais? Não vais ser paga." Quando ele disse aquilo... não ia ser paga, então o que é que estava a fazer ali? Dirigi-me à porta e ele voltou a gritar. Disse que me ia embora. “Não vais”, disse ele. “Tu não estás a perceber: eu mando em ti”, continuou. E eu respondi de volta: “Não mandas". “Eu mando em ti porque sou o presidente do clube”, gritou-me. Eu olhei à minha volta e as pessoas à minha volta baixaram a cabeça. Mesmo as minhas colegas, que eu não julgo, porque provavelmente teria feito o mesmo que elas. Senti-me impotente sempre. Não tinha voz. Entretanto, comecei a caminhar para a porta, ele passou à frente e tapou a saída, esticou os braços e abriu as pernas para me impedir de passar. Tentei sair, ele empurrou-me. Empurrou-me três vezes. O ridículo é que tive de passar entre as pernas dele e ele trancou-me. Arrastei-me para sair e, quando consegui, corri pelo corredor, parecia um túnel e só via a luz da porta da saída. As últimas palavras que ele me disse foram: "Estás fora da equipa". E eu senti-me livre. Chorava, mas estava livre.

Contaste a alguém?
A minha mãe sabia algumas coisas. Ao meu irmão contei, mas não tudo. Ele ficou tão irritado que foi falar com o meu agente. Depois o meu agente veio pedir-me explicações. Eu pedi ajuda ao meu agente e ele recusou. Eu pedi ajuda. Quando saí do pavilhão naquele dia, o primeiro sítio a que fui foi à polícia. Isto ninguém sabe: fui fazer uma denúncia. Sabes o que me disseram? “Tens provas?”. Eu não tinha nada. “Mas ele empurrou-me, ele tratou-me mal.” Eles insistiram: “Tens provas?” Saí de lá e corri para o meu apartamento. A minha palavra não era nada.

O que fizeste quando chegaste a casa?
[chora] Quando entrei no meu apartamento e... havia um pátio... e foi a primeira vez que pensei que a minha vida não valia nada, quem era eu? Quem é que ia acreditar em mim? Quem é que iria acreditar se eu não tinha provas? Eu não falei com ninguém, não queria envolver mais o meu irmão, tinha medo de ser vista como a problemática, como aquela que fez um escândalo. Tinha medo que mais ninguém me desse trabalho e que tivesse de deixar de fazer aquilo que eu realmente amo. Naquele momento, olhei para o pátio de cá de cima [pausa, chora]... tive vontade de me atirar porque só pensava que nada seria pior que a dor que estava a sentir. Não queria matar-me, eu só queria uma dor física maior que aquela dor e a raiva que sentia que sentia dentro de mim. Eu não tinha dinheiro e a minha melhor amiga ajudou-me e comprou-me um bilhete para voltar a Portugal.

Ela estava em Lisboa?
Sim. Corri para o aeroporto com as minhas coisa. Mas era tanta coisa que não podia levar tudo ao mesmo tempo. Algumas, as minhas colegas de equipa esconderam-nas em casa. Ainda que elas não quisessem falar, eu estou-lhes grata porque elas ajudaram-me. Ele vinha atrás de mim, ele queria saber onde é que estava.

Quantos dias passaram entre fugires do treino até apanhares o avião?
Nunca cheguei a usar o bilhete que a minha amiga me comprou. Quando eu fui para o aeroporto e fiquei lá... O que eu não sabia é que, entretanto, havia alguém a ajudar-me. Encontraram-me uma outra equipa para jogar - que era rival do Clarinos -, também em Tenerife. Eu ainda estava no aeroporto quando essa equipa entrou em contacto comigo. Disseram-me que me queriam ajudar, convidaram-me para jogar. Voltei a Portugal, vim a casa e voltei depois para a ilha para jogar para esta nova equipa.

Quanto regressaste alguma vez alguém do Clarinos te tentou contactar?
As colegas de equipa vieram visitar-me, mas foram as únicas pessoas que me procuraram. Aliás, depois até defrontei o Clarinos. E joguei muito bem nesse jogo.

Como foi esse reencontro com o Claudio García no jogo?
Nem olhei para ele. O meu objetivo era jogar. Nem o cumprimentei.

Li a carta que escreveste a um jornal espanhol depois de uma jogadora se ter referido também ao tempo que jogou no Clarinos como a pior experiência da sua carreira. Nessa carta falas de vários episódios.
Sim, por exemplo, só receber o meu ordenado 15 dias depois das minhas colegas. Eu fiquei sem receber 100% do salário no meu último mês da equipa.

Porque achas que isso acontecia?
Acho que era por causa da minha atitude, pela forma como eu o ignorava habitualmente. Era uma forma de me obrigar a ir ter com ele e perguntar-lhe pelo salário. Por outro lado, ele sabia que eu ajudava a minha mãe e ele sabia que não receber a tempo e horas me afetava. Era algo em que ele podia pegar e afetar-me. Ele usou essa arma.

NUNO BOTELHO

Sentias que na equipa estava instituída uma mentalidade de que era normal serem maltratadas?
Sim. Normalizaram a agressão. Saímos muito afetadas mas era tão normal o anormal que ninguém dizia nada. Podia doer, mas... Nunca antes tinha acontecido nada disto comigo. Elas treinavam com ele há algum tempo já era normal. Mas não é normal. Não sabemos onde está o limite, quando dizer basta. Eu acho que sobretudo os atletas não temos essas consciência.

Hoje tens essa consciência?
Tenho. Então não tenho? Como não? Tenho consciência e, se ouvir, não vou ficar calada. Não vou conseguir ser indiferente, eu sei o que passei.

Alguma vez chegou a agressões físicas?
Não. Estes acontecimentos eram mais no treinos. Eu não conheço o Claudio Garcia como pessoa. Nunca estive fora de campo com ele. Eu só sei quem é o treinador, aliás nem o via fora, evitava sim.

Estavas mais ou menos segura depois fora...
Sim, sim. Quer dizer, segura... segura, não. Eu tentava nunca andar sozinha. Estava sempre com colegas.

Tinhas medo de estar sozinha?
Tinha algum receio. Era um país desconhecido e depois há alguém que diz que tem poder em toda a ilha, não sabia o que ele era capaz de fazer. Se dizia que conhecia toda a ilha, não sei o que ele seria capaz de fazer.

Tu viste acontecer as mesmas coisas às tuas colegas?
Sim. Mas eu não posso falar pelas minhas colegas, por uma questão de respeito. Ainda que tenha visto... Sei que depois da carta que publiquei no jornal espanhol, sei que isso deu força para mais colegas denunciarem. Atletas do ano anterior contaram episódios. Não sou só eu, são mais seis atletas. Há mais pessoas. Sabes o que me deu mais força? As mensagens que recebi a nível nacional e internacional - várias também relativamente ao Claudio Garcia. Mas há muitas pessoas que têm medo de falar. E isso deu-me força. Quando saiu a carta, as primeiras emoções foram de medo. Quando comecei a receber mensagens de atletas, homens e mulheres, percebi que não era só eu. Percebi que não estava a criar uma história. As pessoas, afinal, acreditam na minha palavra mas têm medo. O meu irmão falou com a Federação Espanhola de Basquetebol e, uma vez mais, disseram que não podiam fazer nada porque não tinham provas. Eu pedi ajuda, não fui ouvida. E, nestes caso, não interessa o nível a que se joga. São atletas e basta uma atleta falar, que tem de ser ouvida. Se fosse o LeBron James, toda a gente ia ouvir. Como somos nós, não temos voz.

Achas que por ser mulher ajudou a que não fosses ouvida ou foi mais uma questão de escalão da competição?
Neste caso não foi isso. Acho que se eu fosse um jogador top espanhol e fizesse a denúncia, creio que teria sido ouvida. Até agora, a Federação Espanhola não se pronunciou. Se virmos bem, se calhar, o Claudio Garcia tem poder. Para a Federação não se pronunciar, ele tem algum poder. É preciso algo drástico? É preciso alguém se suicidar para olharem para o caso? Quantas mais atletas precisam? Já não são só espanholas: aconteceu comigo, com norte-americanas. É um problema.

Recebeste mensagens de outros atletas portugueses em situações semelhantes à tua?
Sim.

Estamos a falar de pessoas que jogam em Portugal ou no estrangeiro?
Jogam em Portugal.

E a pergunta que tanto me pediste para fazer: porquê denunciar agora?
Porquê não agora? As pessoas não costumam dizer que as coisas acontecem quando têm de acontecer. Porquê só agora? Porque foi agora que tive coragem e me senti preparada para o fazer. A primeira notícia sobre o Claudio Garcia foi de uma denúncia de uma colega minha da equipa, aquilo deu-me um incentivo de falar.

Acreditas que podes fazer o mesmo com outras atletas?
Não tenho dúvidas de que abri portas para outras falarem. Por isso é que no total já somos sete. Algumas nem conheço. Houve uma que até conta que ele lhe puxou o cabelo, que veio falar comigo sem me conhecer e disse que acreditava em mim. Situações como estas mostram que há uma necessidade de apoio aos atletas, uma associação para ajudar, para ultrapassarem, falarem com alguém. Alguém que ajude sem precisarem de vir a público, é preciso alguém que ajude. A dado momento, há dúvida se aquilo que se está a passar é ou não normal. Não somos ouvidos. eu quero que as pessoas se lembrem de mim não como vítima, quero ser vista como uma sobrevivente.

Entretanto, o teu antigo treinador, o Claudio Garcia, disse que era tudo mentira e que te ia processar. Como se reage a isto?
Sinceramente, estava à espera. Eu lidei com ele dentro de campo, sabia que ele o faria. Acho que as pessoas à minha volta ficaram bem mais surpresas que eu. Vou a tribunal, não sou culpada de nada e voltava a fazer tudo. Eu estou a ajudar gerações futuras. O assunto aqui não é a Sara Djassi, é o problema. O tabu. O medo. Isto é triste e condiciona: eu tive depois oportunidades de ir jogar para o estrangeiro e tive medo. Fiquei três épocas em Portugal porque tinha medo.

Mas perdeste o medo e agora estás em Manchester. Como é que isso aconteceu?
Por causa dos estudos. Senti que a licenciatura que fiz nos EUA não era suficiente e quis voltar a estudar. Fui à procura das opções, fui eu que contactei os meus treinadores. Hoje estou no Manchester Mystics e a fazer o mestrado em gestão do desporto. E, se tudo correr bem, termino no próximo ano.

Achas que as instituições desportivas sabem desses problemas e não fazem nada porque querem esconder ou não têm uma real noção da dimensão do problema porque lhes chegam denúncias?
Tudo. É o tabu. Voltamos ao mesmo: o errado é normalizado.

O que dirias aos atletas que passam pelo que passaste ou até pior e que têm medo?
Nunca é tarde. Hoje eu decidi falar depois de tudo me ter acontecido há quatro anos, não quer dizer que estas pessoas tenha e falar já. Seja daqui a cinco, dez ou 15 anos, falem. Não interessa o tempo, interessa a história.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: mpgoncalves@expresso.impresa.pt