Pedro Henriques: “Se gozassem comigo por não saber distinguir um lateral e um central é que me preocupava. 'Ui', 'uish' são coisas que saem”
TIAGO MIRANDA
Comentador da SportTV desde 2007, Pedro Henriques abraçou a nova carreira no mundo do futebol com gosto e nem as mensagens de "enxovalho" que vai recebendo o demovem de dizer sempre o que pensa durante os jogos, uma arte que foi aperfeiçoando ao longo dos anos: "Não há nenhum comentador que faça um jogo mau ser um jogo bom, mas pode haver um jogo bom e um gajo conseguir estragá-lo porque não se cala". Crítico da "horrível" cultura desportiva em Portugal, o ex-jogador de Belenenses, Benfica, V. Setúbal, FC Porto, Santa Clara e Académica pede maior intervenção de quem manda na regulação do futebol, onde o "condicionamento" continua a ser norma e ainda há muito para melhorar
Tens SportTV em casa? Tenho e pago. E pago como empresa, portanto é o preço mais alto.
Achas que é cara? Se bem que agora baixou para €19,90, para clientes particulares. Baixou, sim. Mas acho que não. Para as empresas, acho que devia haver uma diferenciação. É verdade que sou parte interessada, se calhar não me devia estar a meter nisto, mas temos pena, não tenho emenda [risos]. No meu caso, tenho uma empresa que presta serviços, mas pode ser alguém que tenha uma empresa que não tem nada a ver com o tirar partido da SportTV, porque não é um café nem um restaurante, que atrai negócio. Aí, sim, acho que faz sentido haver uma diferença e acho que é possível fazê-lo. Digo eu, falo sobre muitas coisas, mas não sou especialista em contabilidade e finanças [risos]. Mas acho que era possível diferenciar pelo CAE, pela atividade. Claro que depois em Portugal haveria malta que iria tentar contornar isso e fazer batota. É uma diferença grande ainda, mas fazem todos isso, a Eleven entrou recentemente e faz igual - é o dobro do preço. A BTV também.
Mas o que achas do preço normal? Agora a SportTV baixou o preço e acho que está interessante. Eu falo com as pessoas... Quer dizer, normalmente sou um bocado envergonhado, não parece, mas sou, mas as pessoas quando falavam comigo diziam: "Ah deixaram de ter a Liga dos Campeões e não baixaram o preço". E eu dizia: "Pois, mas quando assinas a SportTV também não estão lá incluídas as fases finais dos Campeonatos da Europa e do Mundo, por exemplo, e não te pedem mais dinheiro. Pagavas 25 [euros], agora metiam a fase final do Mundial e pediam 30 [euros]. Também não ias gostar". Acho que o princípio é este. Isto é difícil, porque a cultura desportiva em Portugal é horrível, portanto as pessoas associam sempre a questão dos canais ao gostar mais do A ou do B, misturam um bocado as coisas. Quem estava convencido que isto de haver muitos canais de desporto ia ser bom para as pessoas - e havia aí tantos especialistas - estava redondamente enganado, pelo menos em relação ao custo. O produto de futebol é caríssimo. Isto pode acontecer, por causa da pirataria: no dia em que os canais pagos deixem de poder pagar pelos conteúdos que são caríssimos, como a Liga dos Campeões, a Liga Inglesa e a Liga portuguesa, os clubes vão falir, porque os clubes não vivem da bilheteira nem de cachecóis nem de nada disso, vivem dos direitos televisivos.
Achas que a centralização dos direitos televisivos da Liga portuguesa é essencial? Em Portugal, com a mentalidade dos nossos dirigentes, não acredito que isso vá resolver o problema. Porque o problema é este: o Benfica, o FC Porto e o Sporting vão aceitar ceder? Por exemplo, imagina que isto é um porco: vão aceitar ceder as melhores partes, as patas traseiras? Vão é querer dar o chispe e a orelha. Porque funcionam assim. Por isso é que não acredito nisso. Se fosse melhor para todos... Acho que isso nunca iria dar mais dinheiro, porque já acho que os clubes recebem demasiado dinheiro para o produto que temos, honestamente. Agora, se for no sentido de ser dividido, com o Benfica, o FC Porto e o Sporting a abdicarem de uma parte do seu bolo para distribuírem pelos outros... Temos um caminho muito longo pela frente. O preço para as pessoas não pode ser outro porque é verdadeiramente um produto muito caro. Aquilo que o Benfica e o FC Porto recebem é uma coisa de país super desenvolvido, não de um país da cauda da Europa. Ainda bem que conseguimos fazer esses milagres em Portugal. Mas é claro que os outros clubes não vão conseguir fazer uma concorrência tão forte porque à partida têm essa grande desvantagem.
Também tens Eleven Sports? Não, só pontualmente.
E BTV? Já tive, também tem momentos. Quando preciso, ligo. Porque normalmente estou na SportTV a trabalhar, portanto vejo lá o que tenho para ver. Em momentos que acho que é importante ter, ligo, depois volto a desligar.
E o Canal 11, vês? Não vejo muito, não faz muito o meu género.
O que te parece a ideia da Federação Portuguesa de Futebol criar um canal? Sou um bocadinho contra alguém que, à partida, vem dizer: "Nós somos diferentes, nós é que gostamos, nós é que fazemos isto de uma forma que nunca ninguém viu". E depois estou a ver e é exatamente o mesmo. Iam fazer diferente com diretos no relvado, mas isso já é do tempo em que o Miguel Prates ainda estava na RTP e já a RTP fazia diretos no relvado, acho que isso é uma coisa banal, na SportTV também, SIC, TVI. Isso do "nós é que amamos o jogo"... Para mim, amar um jogo é logo um problema à partida, porque, amar, eu amo a minha família e os meus amigos. Gosto de futebol. Falar só sobre o jogo é muito bonito para quem vive numa bolha, para quem não tem assinantes, para quem não tem de se preocupar com audiências. O dinheiro não cai do céu, para alguns. E depois há o acesso privilegiado aos jogadores, aos treinadores e aos árbitros, porque isso é concorrência desleal. O que dizem que os clubes têm, também acontece na comunicação social. A Federação obviamente tem acesso privilegiado aos intervenientes, porque é uma estrutura imponente, que cria ali um certo receio, portanto não acredito que haja alguém que diga "não" a uma entrevista para a Federação. Já nos canais é muito difícil, vejo isso na SportTV: enquanto não são treinadores de equipas grandes, temos lá os treinadores todos, tivemos o Paulo Sérgio, o [Carlos] Carvalhal, o Sérgio Conceição, o Rui Vitória quando estava no Paços... Os treinadores, de uma forma normal, a falar de futebol. A partir do momento em que entram numa equipa grande, acabou. Portanto, não é um problema das pessoas, é um problema dos clubes. É um trabalho difícil porque há pouco respeito. Eu vivo um bocadinho num mundo que não era bem o meu, mas percebo as dificuldades que existem e não gosto nada de ver autoelogios. Não venho para aqui dizer que a SportTV é que faz bem, que nós é que fazemos diferente. A SportTV faz o melhor que pode, podia fazer melhor outras coisas.
Achas que a SportTV fala suficientemente sobre o jogo, por exemplo? Sim, acho que sim. Nós temos muita gente que fala sobre o jogo e eu não estou ali só para falar do jogo. Nunca me condicionaram em relação ao que devo ou não devo dizer, mas se eu achar que há um erro de arbitragem, digo que há um erro de arbitragem, isso faz parte do jogo e não vejo problema nenhum nisso. Se achar que o treinador não esteve bem naquilo que disse, digo-o, reconhecendo sempre, obviamente, que ele é que é o treinador e é muito mais difícil para ele do que para nós, que estamos cá fora. Se os dirigentes não têm a postura que acho que devem ter, também opino sobre isso. Não estou ali a falar só para treinadores nem para aspirantes a treinadores, que é uma coisa que me faz confusão. Eu estou ali a falar para o público em geral: uns são treinadores, outros não treinadores, uns percebem um bocadinho daquilo, outros não percebem nada daquilo, outros não percebem mas acham que percebem. Há quem fale sobre uma coisa que nunca fez na vida como quem já fez. Era um bocadinho como eu agora estar aqui a querer ensinar-te como se faz uma entrevista, sem sequer ter ido a uma faculdade ou saber. Acho que é preciso passar pelas coisas para falar com maior conhecimento de causa. Não são apenas as pessoas que jogaram ou treinaram que podem falar de futebol, mas estares a falar do jogo como se estivesses a jogar ou a treinar, se nunca o fizeste, acho que estás a subir um degrau para o qual ainda não subiste.
Tentas então não utilizar uma terminologia muito... [interrompe] Técnica. Sim, porque eu tirei o primeiro e segundo níveis do curso de treinador, mas não acho que falar caro seja falar bem. Há muita gente que aplica os termos e depois aquilo nem se verifica no jogo. Eu aprendi com os jornalistas que temos de partir sempre do princípio que do outro lado está uma pessoa completamente ignorante no assunto. E acho que muitas das pessoas que falam de futebol em Portugal não partem do princípio de que pode estar alguém em casa a ouvir que goste do jogo mas seja completamente ignorante em relação aos termos. E tu estares ali com "ataque à profundidade, transição, basculação, pressão alta, 1ª fase de construção, 2ª fase de construção"... Uma coisa é uma vez ou outra. Mas acho que temos uma ideia contrária: acho que a maior parte das pessoas que vê futebol não entende essa linguagem. Há uma minoria. Mas há uma malta iluminada que acha que a maioria das pessoas gosta muito daquilo, com os bonequinhos e os risquinhos na televisão. Essa terminologia do treino acho que é dirigida para um segmento muito reduzido, até porque, infelizmente, em Portugal, a Federação e as Associações restringem muito o número de novos treinadores de topo.
O acesso aos cursos de treinador é um problema do futebol português? É um problema grave, que a Federação e as Associações não querem resolver. Ainda há pouco tempo tive um amigo meu que foi outra vez barrado no curso, não o deixaram ir tirar ao estrangeiro. O que é uma coisa... Se for medicina, podes ir tirar para Espanha, ou engenharia. Se for futebol, não podes. Tem de haver uma autorização qualquer da Federação para o país do curso [formulário UEFA Cross-border].
Achas que o futebol a esse nível é demasiado elitista? Sim, só pode ser isso. É não querer perder o negócio. Há muito dinheiro envolvido, os cursos de treinador dão muito dinheiro. Podem dizer-me que não, mas isso dá muito dinheiro à Federação e às Associações e às pessoas que depois estão envolvidas nisso. O problema não pode ser da qualidade da formação, porque as federações do País de Gales, da Escócia, da Irlanda e de outros países quaisquer também são orientadas pela UEFA e os tópicos são semelhantes. Se podes fazer isso noutras áreas muito mais importantes do que o futebol, como a medicina, não há nenhuma razão para que isto não possa acontecer. Portugal é um país... Por exemplo, a Autoridade Fiscal também dá muito maus exemplos de seriedade. Tens o caso dos automóveis, em que o Estado português foi outra vez condenado por causa da questão dos carros importados pagarem mais imposto. Portugal foi condenado, já recorreu mais do que uma vez e continua a praticar a irregularidade. Ou seja, na questão dos cursos de treinador: Portugal já sabe que não pode fazer isto e se a UEFA faz isto, então manda mais do que a União Europeia. Isto é concorrência desleal e é inibir uma pessoa de fazer formação onde ela quiser na Europa. Isto não está certo, é imoral. É como esta história do Novo Banco e das vendas, pode não ser ilegal, porque as leis não estão bem feitas, mas é, no mínimo, imoral, por isso deve ser mudado. Já vários treinadores o disseram, como o treinador do Nacional, o Luís Freire. Ele disse uma coisa que é verdade: em Portugal, o mérito não te dá capacidade, é o tempo. Acho que isto é como era no tempo dos professores: podes ser um bom professor ou um mau professor, mas quando chegas ao fim da tua carreira estás no topo. Não pode ser, tem de ser por mérito. Se um treinador, consistentemente, está a ter resultados, então tem de se permitir que esse treinador faça formação. Para não termos esta vergonha em que toda a gente sabe que o treinador da equipa é o Rúben Amorim e depois está lá outra pessoa com a habilitação. Isto é uma vergonha, nem num país de terceiro mundo.
O melhor treinador da II Liga foi o Joaquim Rodrigues, na prática adjunto do Luís Freire. Isso não é ridículo? As pessoas não se envergonham disso? As pessoas que tratam dos cursos na Federação, nas Associações e a Associação Nacional de Treinadores não se envergonham de não mudarem isto? Temos de fazer disto uma coisa acessível. Se houver 500 treinadores formados, obviamente não vão treinar todos, mas estão formados. Também há demasiados dentistas, digo eu, mas formam-se. Não dizem: "Olha, agora não há mais dentistas". Então e as faculdades privadas? Por que razão não se permite que entidades privadas façam cursos de treinador? Se podem fazer cursos de medicina, arquitetura, engenharia, porque é que o futebol tem de estar sob controlo da Mother Russia? Isto para mim não faz sentido.
TIAGO MIRANDA
Vês jogos de futebol só por trabalho ou por prazer? No outro dia falava disso com um amigo meu, que me perguntou se eu não ia aos estádios ao fim de semana por prazer. Eu disse-lhe: "Eu jogo futebol desde os 9 anos. Não tive fins de semana a vida toda. Era como, sei lá, tu seres dentista e eu ao fim de semana dizer-te: 'Bora ali à clínica ver uns dentes serem arrancados". Às vezes apetece-me ir a Barcelona ou a Liverpool, porque é uma cultura desportiva diferente, mas não é uma coisa que faça muito nos meus tempos livres, gosto de fazer outras coisas. Se eu estou em casa, a preparar um jogo... Por exemplo, hoje [quinta-feira] vou ver o Rio Ave e antes vou ver o Tottenham. Perguntas-me assim: mas apetecia-te muito ver o Tottenham? Eh pá, se calhar não me apetecia muito, mas tenho de ver, é o meu trabalho. Por isso é que depois se calhar já não vou ver nenhum programa do Canal 11, nem da Eleven, nem da SportTV, porque se calhar já chega.
Costumas receber telefonemas de pessoas a tentarem condicionar-te? Ameaças? Sim, já recebi. Há uns anos recebi de um treinador de elite, dele e dos cães de caça dele.
Quem? Não vou dizer o nome. Isso ia alimentar uma guerra. Mas continua a acontecer, com o mesmo até, mas não é comigo, agora, porque eu respondi à altura, acho eu. Acredito que algumas das coisas que recebo sejam as máquinas de propaganda dos clubes a funcionar. Não é diretamente o treinador ou o diretor de comunicação, porque também não lhes dou essa confiança, tenho o cuidado de não ter relações próximas, para estar à vontade. Tenho respeito por eles, enquanto profissionais. Mas da 'indianagem' recebo muitas mensagens, tanto que deixei de ter Facebook. Já recebi mensagens no telemóvel de índios a ameaçarem-me e a insultarem-me, porque eu disse que era penálti, ou não era penálti, ou jogou bem, ou jogou mal. Habituei-me a viver com isso. Não gosto, mas isso cada vez incomoda-me menos. Esse tal treinador foi o único que me ofendeu, assim como o assessor, ou o cão de caça dele, por acaso um jornalista que me elogiava muito quando eu era miúdo, mas agora já dizia que eu tinha sido um jogador medíocre. Estive quase para lhe mandar o recorte escrito por ele. Mas diretamente não recebo muito.
E elogios, recebes? Sim, felizmente não é tudo mau. Mas normalmente as 200 ou 300 pessoas que já me enxovalharam é sempre porque "és um tripeiro, és um lagarto, és um lampião", depende do clube. Por exemplo, eu até posso ter a minha preferência, porque quando Portugal joga com a Suécia, obviamente eu quero que Portugal ganhe, mas se eu achasse que o jogador sueco não deveria ter visto o segundo amarelo, eu dizia, porque é para isso que lá estou. Na avaliação, se digo que acho que é penálti, justifico porquê. Não estou lá a dizer "o árbitro é que decide", isso toda a gente sabe. Nada do que eu vá dizer influencia a decisão do árbitro, ele não me está a ouvir. E no jogo a seguir ele não vai marcar penálti ou não porque o Pedro Henriques disse que era ou não era, isso é uma coisa estúpida. A cultura do condicionamento já é antiga no futebol português, mas agora é muito pior, porque qualquer pessoa consegue ter acesso.
A cultura do futebol português agora é pior? É muito pior. É uma cultura desportiva horrível, não há respeito nenhum. Mas não é só no futebol. Os pais abdicaram de educar os filhos e depois eles crescem e não respeitam ninguém, por isso depois tens as redes sociais, onde se ofende tudo e todos.
Disseste que o teu filho joga futebol. Já viste isso a acontecer em jogos de formação? Já, já, ui, ainda é pior, porque ali são especialistas. Há uma coisa que aprendi, porque tenho amigos que estiveram ligados a escola de futebol ou clubes de divisões inferiores, e eles sempre me diziam que quanto mais para baixo, pior, porque há sempre alguém que não percebe nada daquilo, mas acha que percebe muito daquilo, o que é a pior coisa do mundo. Uma vez estava a ver um jogo do meu filho e estava atrás da baliza do guarda-redes adversário. Por trás dele estava lá o pai ou o avô sempre a falar: "Agora chega-te para a direita, agora chega-te para a esquerda". E eu fui lá: "Oiça, não leve a mal o que lhe vou dizer, mas não faça isso ao miúdo, porque você acha que está a ajudá-lo, mas não está, está a enterrá-lo todo". Eu costumo ir de phones para não ouvir. Eu sofro nos jogos do meu filho o que nunca sofri em jogo nenhum. É muito difícil. Vou porque tenho de apoiá-lo, mas aquilo custa-me horrores. É mais difícil ver um jogo do meu filho do que o parto do meu filho.
Mas porquê, queres intervir? Não, porque quando estou a ver um jogo de miúdos, não consigo ver bem que são miúdos. Pode ser um defeito, e às vezes as pessoas dizem que sou demasiado crítico ou estou zangado, mas não é isso. É que a minha forma de ver as coisas é sempre à procura dos defeitos. Eu estou aqui e estou a ver aquela mesa descascada em baixo. Eu estou a ver um jogo de futebol e estou sempre à procura do que não estão a fazer bem. Se calhar devia valorizar mais o lado positivo, mas quando um jogador faz bem, ele sabe que faz bem, o lado negativo é apontado como forma de evoluir e melhorar.
Mas se o teu filho entra no carro e só lhe dizes o que fez mal, coitado dele. Não, não faço isso. Mas o meu pai também era um bocadinho assim, era o meu maior crítico, dizia-me sempre no que não tinha estado bem. A minha mãe pegava-se com ele: "Lá estás tu, nunca dizes bem". E ele dizia: "Claro que eu quero o bem dele, só estou a dizer o que não foi bom, para ele melhorar". Eu tenho esse defeito também. Por exemplo, um lance prático: este lance do Grimaldo com o Zivkovic [no PAOK-Benfica]. Eu aprendi, já num tempo muito antigo, antes de haver estes termos todos dos treinadores, que um defesa fecha dentro e assim que a bola entra no ala e tu conheces o ala e sabes que ele é canhoto e vai puxar para dentro, assim como o Robben e por aí fora, então tens de fechar aquele pé. Se não encurtas rapidamente, ele é bom tecnicamente, ele vem para dentro da área e quando ele está dentro da área as tuas possibilidades de conseguires desarmá-lo baixam. Esse é um defeito que eu encontro no Grimaldo, apesar de saber que ele tem esta e esta virtude. Mas estou a avaliar um comportamento que é repetido nele e isso não é bom. Agora, o treinador pode entender que é assim que se faz e eu meto a viola no saco, tudo bem.
Vês muitas diferenças nas funções dos laterais de agora, em relação aos laterais da tua altura? Vejo, vejo. Na minha altura o que me pediam era aquilo que era pedido a um defesa: saber defender. Primeiro era preciso saberes defender, só depois saberes cruzar.
E agora? Agora só precisas de saber cruzar. Tens montes de exemplos, não vou dizer os nomes, de jogadores que são defesas mas não sabem defender. São comidos uma, duas, três vezes, não é por mês, é por jogo, o que é uma coisa que me ajuda.
Achas que isso tem a ver com a formação dos jogadores? Tem. A história dos laterais serem desequilibradores leva-nos aí. Tens o exemplo do Marcelo, sensacional a atacar, mas defendia que era um horror. Para quem estava habituado a ver o Roberto Carlos, faz diferença, porque ele também desequilibrava muito, mas defendia bem. O Marcelo é um lateral de qualidade, mas defende mal. Eu prefiro o Alex Telles, porque para mim a segurança defensiva num defesa é determinante. Claro que hoje os jogadores são muito diferentes.
Safavas-te a jogar hoje? Safava. Tive lesões graves que me limitaram, mas acho que sim. No futebol de formação jogava como lateral ou extremo, atacava bastante. Mas hoje os jogadores são muito mais atletas, têm uma mentalidade forte, mas acho que me safava, até porque iria trabalhar com treinadores muito melhores. A qualidade do treino hoje é melhor.
Fala-se mais sobre o jogo também? Acho que é mais importante a qualidade do treino. Se te disser que taticamente nunca me ensinaram quase nada... Era assim o futebol. Não se preparava o adversário, o Mourinho é que começou com isso em Portugal. Antes era treino de conjunto, posse de bola e peladinha. Era assim que se fazia. E lá de vez em quando alguns faziam umas bolas paradas. Não sou daqueles que dizem "ah, no meu tempo é que era bom". Mas acho que os defesas têm de saber defender. Tal como os guarda-redes. Eu estou para aqui a falar... Eventualmente vai haver muita gente que não gostará de ouvir, eu crio muitos anticorpos, porque falo nisto tudo. Sou independente financeiramente e há quem não seja, isso eu respeito. Há uns que não falam por feitio, é uma questão de caráter. Há outros que percebo que têm de se sujeitar, porque precisam daquilo para viver.
Há alguém que gostes mais de ouvir? Narrador ou comentador?
Tanto faz. Gosto muito de alguns e detesto outros, mas não vou dizer quem. No meu caso também há quem goste e quem não goste nada.
Sabes que há quem goze contigo pelos teus "uish". Sim, mas se gozassem comigo por eu não saber distinguir um lateral de um central é que eu ficava preocupado. Ou se me ouvissem dizer: "Sei de fonte segura que o Manelinho vai para aqui". E o Manelinho não vai. Agora, quem jogou futebol sabe que isto normalmente era o que acontecia nos meiinhos: o "uiiiii", o "uish". São coisas que saem. Às vezes também tento travar uma bocadinho. O narrador normalmente tem o golo, mas às vezes não aguento, quando é golo de Portugal então... Ainda bem que não comentei a final do Euro 2016, porque acho que até asneiras teria dito em direto. Tenho muita dificuldade em não ser índio nos jogos da seleção, sinceramente. Lembro-me que fiz para Renascença um Portugal-Espanha em que demos quatro e, ui, só me faltou dizer olés [risos]. Por exemplo, o Luís Freitas Lobo tem uma forma diferente da minha. Uma vez estava a falar com ele sobre a questão de falarmos muito durante o jogo. Às vezes o narrador está a começar o jogo e está para ali a serrar presunto, depois o jogo começa, a bola sai e ele passa-te a palavra. Eu às vezes peço para me passarem antes, só para dar um cheirinho. Não digo que está bem ou mal, mas eu, como telespetador, não gosto de estar os primeiros dois minutos do jogo a ouvir alguém "teca, teca, teca". Eu quero ouvir o bruaá, os jogadores... Ainda mais agora, que dá para ouvir tudo. Eu costumo trocar essas impressões com o Luís, na boa. Mesmo os narradores não gosto que façam a narração como na rádio, aos gritos. E também não gosto do: "O Pedro passou para o Manel, e o Manel jogou no Leipzig e a mãe dele morava não sei onde". Gosto de narrar o jogo, aquilo não é uma aula de história. Um pormenor ou outro, ok, mas estar ali a serrar muito presunto sobre aquilo que não é o jogo.... Ainda por cima agora sem adeptos podemos ouvir muito mais. Sugiro que os treinadores e aspirantes oiçam a primeira parte do Espanha-Ucrânia, porque dá para ouvir as indicações do Luis Enrique e é uma delícia. Às vezes agarrava o braço do narrador para ouvirmos. Mesmo no Suécia-Portugal, para ouvir o Fernando Santos: "Ó Guedes, ó Guedes, já te disse dez vezes que este gajo está sozinho". Isto é um tesouro, é a única coisa boa de não haver público nos estádios. Mas quando estou a comentar estou ali para dar o meu ponto de vista. Às vezes estou a ouvir na rádio e entra o comentador para dar uma opinião sobre o jogo e fala e fala e não diz nada. Se é assim, se não se compromete, então não vale a pena.
Estás há quanto tempo na SportTV? Desde 2007, portanto há 13 anos. Ainda era miúdo, deixei de jogar aos 30 anos e tive dois anos em que deixei de querer saber do futebol, nem sequer via jogos. Depois convidaram-me para ir falar sobre ordenados em atraso, cheguei lá e disse o que tinha a dizer, verdadeiramente, o que não é um hábito para algumas pessoas. Há algumas pessoas que infelizmente não estão lá para dar a sua opinião, estão ao serviço de outras coisas.
O que achaste do fim dos programas ditos desportivos na SIC Notícias e na TVI24? Graças a Deus acabaram com isso. Isso não são programas de desporto, não devemos confundi-los. Há uns anos a SportTV convidou-me para fazer um programa com três adeptos e eu disse logo que estava fora, mas eles disseram que não era para ser aos gritos, era para a malta conversar a comportar-se bem. É o Aposta Tripla. Aquilo que eu disse dos pais, que deixaram de educar os filhos, a comunicação social acho que também tem essa função de orientar, por isso se estão a fazer lixo permanente, a dar espaço a pessoas que mais não são do que talibans de futebol... Há uma franja da sociedade que leva aquilo a sério e depois há pessoas que são agredidas. Se não és do meu clube, tens de levar. E depois as televisões e os jornais são co-responsáveis por este ambiente, porque alinharam nas máquinas de propaganda que os clubes impuseram.
Lembras-te do primeiro jogo que comentaste? Não, sou horrível nisso [risos]. Agora na quarentena a SportTV fez um duelo de história e calhou-me logo o Luís [Freitas Lobo], sou muito mau nisso. Nem faço ideia quantos jogos fiz na SportTV.
Como é que preparas um jogo? Imaginemos que vais fazer o Famalicão-Benfica. O Famalicão seria mais difícil, mas o Benfica vi contra o PAOK. Se bem que ninguém é muito bom nem mau no início da temporada, na minha opinião. Por exemplo, o Benfica não passou a ser pior equipa porque perdeu, nem seria a melhor se tivesse conseguido ganhar esse jogo.
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Levas notas sobre as equipas para o jogo? Levo, levo. Tenho uma letra horrível [risos], mas levo os dados de que preciso. Mas não levo muitos, porque eu estou ali para falar do jogo, não estou ali para falar de outras coisas. Isto sou eu, não quer dizer que os outros o façam. Tento ver os jogos anteriores mas obviamente depois chega uma altura em que já não preciso de ver, porque já fiz as equipas todas, já fiz os jogos todos.
Vês também a Premier League, por exemplo? Sim, vou vendo sempre. É exatamente por isso que vou ver o Tottenham. Não consigo ver os jogos todos, até porque tenho montes de programas em direto, a acompanhar jogos, o Grande Jornada e tudo mais, em que estamos ali ao mesmo tempo a seguir os jogos.
Portanto vais à SportTV trabalhar todos os dias? Sim, folgo uma vez ou duas por semana.
Há pouco dizias que no futebol não tinhas fins de semana, mas isso continua a ser assim no comentário. É, por isso é que queria deixar de fazer isto.
Querias deixar? Sim, mas não tenho coragem. Estou cansado, é uma vida que cansa...
Mas? Mas gosto. Vejo-me a fazer outra coisa, mas que não tem nada a ver com isto, que é voltar ao mercado imobiliário. Já estive nesse mercado mas depois deixei, também porque apanhei a crise de 2009 e foi duro. É essa questão de tentar ser uma pessoa normal, se é que isso existe. Eu nunca tenho fins de semana. Quer dizer, não é nunca, mas para não ter trabalho no fim de semana tenho de pedir - e a verdade é que até hoje nunca me falharam nisso. À sexta-feira nunca dá, porque tenho o Aposta Tripla à noite, portanto entalam-me logo aquela coisa de família de ir à sexta e voltar ao domingo. Isso custa-me, às vezes. Não tanto por mim, porque já me habituei a não ter, mas à minha mulher, que não vem deste mundo, sei que custa. Como o poder ficar na praia até tarde, só que eu tenho jogos e tenho de sair mais cedo [risos]. Isso cria desgaste, cansa um bocadinho. É mais por isso, porque eu gosto muito do que faço. Este ano, depois da quarentena, acho que vou ficar melhor pessoa. Já não vou ao Facebook, não estou para isso, já não quero saber. O melhor é nem ver.
Disseste há pouco que trocavas impressões com o Luís Freitas Lobo. Pedes conselhos a colegas? Aí não eram conselhos, eram formas de fazer. Mas sim, falamos. Nós na SportTV temos um grupo e vamos falando, claro que há uns com quem me dou mais, outros menos, mas há um espírito bom, ninguém quer o lugar ninguém e ninguém está ali a querer fazer este ou aquele jogo, pelo menos para mim é igual. Às vezes digo aos meus colegas: "Estás a falar muito". E eles: "Eh pá, pois, um gajo entusiasma-se". Eu sei, a mim também me acontece, mas às vezes até escrevo "falar menos". E às vezes, como disse, não consigo ver dois jogos ao mesmo tempo, quando estamos na Grande Jornada, porque temos de estar a falar e a ver, por isso pergunto a colegas o que acharam do jogo. Imagina agora, estive de férias e ia fazer o Tottenham: iria perguntar ao Francisco [Guimarães], que esteve a fazer o jogo, como tinha sido e ia ler algumas coisas, não me ia atirar para fora de pé. Não me ia armar em neurocirurgião sobre a equipa quando não tinha visto o jogo anterior.
Octavio Passos
O que esperas da Liga 2020/21? Há o grande investimento do Benfica, o FC Porto que se reforçou com nomes surpreendentes... [interrompe] Olha que não. Acho que o FC Porto está a fazer bem, porque está outra vez a contratar cá dentro, portanto a margem de erro é muito menor. A margem de erro do Benfica é muito maior. Eu sei o que joga o Taremi, o Carraça, como sabia o que jogava o Danilo, o Soares, o Marega e por aí fora. No meu ponto de vista, isso é uma vantagem do FC Porto. O risco do Benfica é muito maior, porque está a contratar jogadores e vamos ver quantos jogarão a titulares. Acho que a época vai ser semelhante à anterior, com uma luta entre Benfica e FC Porto.
E o Sporting? Não, não acho que tenha nenhuma possibilidade de lutar com o Benfica e com o FC Porto. Só pode acontecer por uma época muito má de Benfica e FC Porto, porque acho que o nível do plantel do Sporting fica longe, por questões financeiras, obviamente. Oxalá esteja enganado e depois podes fazer-me outra entrevista nessa altura. Final da época, Sporting campeão e eu direi que estava redondamente enganado e endereço os parabéns, mas não prevejo que isso vá acontecer.
Já poderia haver público nos estádios? Acho que poderia haver, mas percebo que o público do futebol é diferente do público do teatro. Acho que podíamos experimentar, mas não eram mil ou duas mil pessoas no estádio que iriam resolver o problema do jogo e da questão financeira. É uma situação difícil. Mas, por exemplo, hoje ouvia o presidente do Leixões a falar na SportTV sobre os miúdos: acho que a Federação e as Associações deviam preocupar-se com isso. Há miúdos que estão sem jogar futebol desde fevereiro. Vão ficar um ano sem jogar, se calhar. Eu até mandei um e-mail para a DGS a perguntar isto: eu tenho um filho de 16 anos e no clube dele pararam os treinos e deixaram de fazer treinos em conjunto, porque essas são as normas da DGS, mas há pelo menos um clube em Lisboa e outro na zona do Estoril que estão a treinar sem condicionantes. Podem ou não podem? Queria perceber isso, mas não obtive resposta. Em relação ao futebol, claro que há dificuldades com a covid-19, eu já fui testado 10 vezes.
Dez testes? Sim, quem vai comentar os jogos ao estádio também tem de fazê-lo. Este lado do nariz já tem um buraco até ao cérebro [risos]. Mas quem achava que isto ia tudo mudar por causa da pandemia estava redondamente enganado. Vai ser o mesmo: enquanto a bola entrar, tudo bem, a partir do momento em que o penálti não é marcado ou o VAR não intervém... Enquanto houver essa mentalidade, não acredito que isto melhore. Espero que sejam os canais a tentar não dar palco a isso: o 11, a SportTV, a Eleven e depois a parte do desporto da SIC, da TVI e da RTP.
Falaste sobre os três grandes: há mais alguma equipa que queiras destacar? O Braga, e devo dizer que gosto muito de Braga, porque a família da minha mãe é toda de lá. O Braga não é um grande mas tem grandes equipas. Não é um grande porque tem de ter uma história, um palmarés e uma massa adepta gigante, como o Benfica, o FC Porto e o Sporting. Se o Braga começar a ganhar campeonatos, vai sê-lo. Mas acho que o top vai ser Benfica ou FC Porto e depois... Sporting ou Braga? Não sei. Não está na dimensão do Sporting, pelo historial e pelos adeptos, mas em campo está e vai lutar de igual para igual pelo 3º lugar. Mas o Famalicão, mesmo construindo uma equipa nova, pode fazer novamente um brilharete, o Rio Ave, com o Mário [Silva], também pode, vamos ver o que vai fazer o Vitória de Guimarães, o Boavista está a investir... Mas desconfio sempre da pré-época, vamos ver.
Já agora, uma vez que jogaste nos dois, o que pensas da descida do Vitória de Setúbal... [interrompe] Um desastre.
E da situação entre Belenenses e B-SAD. Também já recebi na SportTV um e-mail do diretor de comunicação do Belenenses clube a descascar-me de cima a baixo porque eu, num jogo, disse que para mim era indiferente se era Belenenses clube ou SAD, não entro nessa luta. Fui formado no Belenenses, estive lá quando era só clube, e depois estive no Belenenses já como profissional, nos melhores anos da minha vida como jogador, já com a SAD. O que disse na altura foi que aquilo que me custava horrores e quem perdia era o Belenenses, não interessava se era o clube ou a SAD. Do Vitória de Setúbal, tenho muita pena. Fiz o último jogo do Vitória e custou-me, porque gosto do Vitória, tal como do Belenenses, são clubes que me dizem um bocadinho mais do que os outros, acho que isso é compreensível. Agora, é claro que se fosse penálti contra o Vitória, dizia que era penálti. Fiz também o jogo contra o Santa Clara...
Também jogaste no Santa Clara. Sim e na altura não tive grande experiência lá. Mas estas pessoas agora estão a fazer bem, com os jogadores e treinadores que escolhem. E correm sempre por fora, porque jogar no Santa Clara é difícil, o treinar fora, os relvados... Têm ainda mais valor o que fizeram na época passada e fico contente por eles. Na altura em que estive lá tive dificuldade em adaptar-me a São Miguel, mas fico contente pelo sucesso que têm agora. Sobre o Vitória de Setúbal, andavam nisto há demasiado tempo. Não sei o que aconteceu ao certo, já ouvi histórias de dinheiro que desapareceu daqui e dali - como no país. Mas tenho muita pena. O que eu gostava mesmo era que o negócio do futebol fosse gerido como um negócio.
O que mudarias no futebol português? Primeiro, era proibido falar sobre os adversários para dizer que aquele foi beneficiado, aquelas queixinhas que costumam fazer. Não eram multas de 2 mil euros, eram multas de 50 e 100 mil euros, para saberem mesmo que não podiam pagar e por isso não faziam. Claro que podem dizer: "Na minha opinião, aquele lance era penálti por isto e isto". Mas não é isso que estou a dizer, é o irem insinuar que não foi marcado porque estão comprados. Isso teria de ser arrasado por completo. Depois chamava os jornais e as televisões, até porque o Estado andou a comprar a tal publicidade institucional, e dizia: "Meus amigos, vocês têm a liberdade que quiserem, mas nós também temos as nossas orientações. Este tipo de programas de desporto não nos agradam. Este tipo de comentários do chefe da claque, do diretor de comunicação A, B ou C não deve aparecer." Para mim era assim que tinha de ser. Aliás, eu estranho estar há tanto tempo a trabalhar em televisão [risos], não sei como é que a SportTV teve capacidade para aguentar, porque deve ter havido pressões gigantes: "Tirem esse gajo daí que ele é incómodo". Mas eu não consigo fazer diferente. Sou assim.