Jackie Stewart: “Nos anos 60 e 70, a Fórmula 1 era perigosa e o sexo era seguro. Fiz as contas e perdi 57 amigos em competição”

Jornalista
Os motores híbridos podem não roncar o barulho dos antigos V12, mas fazer uma entrevista num paddock da F1 é quase tão desafiante quanto as ondulações e as curvas rápidas do circuito de Portimão. E ainda há as distâncias a que a pandemia nos obriga. Sir Jackie Stewart, três vezes campeão do Mundo (em 1969, 1971 e 1973), o mais velho campeão ainda vivo, mas bem fresco nos seus 81 anos, está em Portugal para acompanhar o regresso da Fórmula 1 ao nosso país. E logo no início da curta conversa com a Tribuna Expresso, mostra porque é que aquele “Sir” vem ali antes do seu petit nom (ele na verdade tem John no BI). “Querem que segure no gravador?”, pergunta, percebendo que a cacofonia de motores e talheres e trabalhos dos mecânicos nas boxes poderá tornar mais difícil a comunicação. Educadamente declinamos a simpatia: afinal quem somos nós para termos um Cavaleiro da Ordem do Império Britânico a segurar-nos no gravador?
E, no final, a gravação ouvia-se perfeitamente.
Estamos em Portimão, num novo circuito para a Fórmula, o 71.º da história do Mundial e é justo dizer que o Sir Jackie conhece uma boa parte deles. Posto isto, o que acha desta pista?
Bem, infelizmente não vou conseguir andar na pista, mas o que sei é que todos os pilotos de motociclismo que já estiveram cá dizem que é a melhor pista do Mundo. E isso é um grande statement. Agora, a Fórmula 1 nunca cá esteve. Eu estive no Estoril, claro, e Portugal tem uma longa história de corridas desde a década de 50, nos primeiros dias da Fórmula 1. As características deste circuito são fantásticas, por causa da tipografia: os altos e baixos, curvas cegas, curvas rápidas. As infrasestruturas também são excelentes e espero que o GP Portugal se torne uma das paragens habituais do calendário da F1. Porque é simpático para nós vir cá e a pista é muito boa.
E já prometeu que vai fazer lobby para que Portugal continue no calendário.
Ah, sim. Sem dúvida, vou fazer!
E estas curvas rápidas e fluídas, as mudanças de elevação, iriam adequar-se à sua condução, que sempre foi conhecida pela fluidez, pela naturalidade e suavidade?
Sim, diria que sim. Eu acho que a maior parte dos grandes pilotos, ou dos bons pilotos, quase todos tinham um estilo suave. Os carros de Fórmula 1 são como um animal delicado e nervoso. E se tratares um animal de forma suave, se o tratares bem, ele vai também comportar-se contigo de forma simpática. É quase o mesmo com os humanos, na verdade. Olhas para um condutor mais agressivo e os espectadores e os adeptos adoram, mas o gerente do banco não vai adorar. Porque esses pilotos normalmente não ganham tanto. Eu acho que nos desportos motorizados, umas condução suave é sempre melhor. Picos e vales... tu não vais querer picos e vales, tu vais querer alguém com uma condução estável.
E para ser bem sucedido nesta pista, é preciso ser-se esse piloto de condução estável?
Sim, porque aqui tens um constante sobe e desce, mudanças repentinas nas curvas, há pouco espaço entre as curvas, por isso é preciso mesmo ser-se compreensivo com o carro, tens de acariciar o carro. Não podes fazer bully com o carro. Os adeptos adoram isso, mas, como eu digo, o gerente do banco nem por isso. Nem os engenheiros, aliás. Porque és mais agressivo a travar, mais agressivo a acelerar, entras de forma mais rápida nas curvas e isso não é simpático para um carro. Como não seria para uma pessoa. Um carro é um animal. Um carro de Fórmula 1 é como um animal de uma raça de excelência. Se o tratarem bem, ele responde bem.
Tenho de confessar uma coisa: antes desta entrevista eu não sabia que, antes de começar a carreira nos motores, tinha sido um extraordinário atirador, com títulos europeus, britânicos, que por pouco ficou de fora dos Jogos Olímpicos. Em que é que essa anterior vida no tiro o ajudou na hora de se tornar piloto de competição?
A coisa mais importante que o tiro me ensinou - e isto aplica-se tanto à minha vida de piloto como à minha vida de empresário - foi a controlar o que vai dentro da tua cabeça, a tua mente. Se te irritares, vais dizer coisas que depois te vais arrepender, vais desejar nunca ter dito aquilo. Se não o disseres e ao invés tentares resolver o problema que te está a chatear, o resultado será muito melhor. Com o tiro aprendi a não estar demasiado nervoso. Competi em Mundiais, Europeus e se estivesse tenso, bang bang: falhava o alvo. Fiz tiro dos 14 aos 24 anos, até me casar. Porque eu não podia manter uma noiva e o tiro [risos]. Aliás, só consegui começar a manter a casa quando me tornei campeão do Mundo de Fórmula 1.
Saber controlar as emoções era particularmente importante numa era, nos anos 60 e 70, em que qualquer erro na Fórmula 1 era potencialmente fatal para um piloto.
Bem, os anos 60 e 70 foram um período maravilhoso, um período cheio de glamour, muito colorido. Era entusiasmante, sabes? Carnaby Street, mini-saias, os Beatles, os Rolling Stones... eu digo sempre que nos anos 60 e 70 os desportos motorizados eram perigosos e o sexo era seguro. Era tudo diferente. Os Beatles chegaram a ir a grandes prémios. Os Rolling Stones e o Frank Sinatra iam a grandes prémios, a Elizabeth Taylor, a Brigitte Bardot. A Brigitte Bardot, digamos, aproveitava-se do meu colega de equipa.
Do François Cevert?
Sim, sim. O Cevert era um dos homens mais glamourosos que podias conhecer. Um dos homens mais bonitos do Mundo na altura. As raparigas andavam sempre atrás dele, a toda a hora. Era escandaloso! Mas os 60 e os 70 foram um belo período. Não sei bem explicar... a música era boa, o estilo de vida.
Não acha que o paddock agora é demasiado certinho?
Vamos voltar à questão inicial: nos anos 70, a Fórmula 1 era excitante, mas também muito perigosa. Na verdade, era letal. Fiz as contas e perdi 57 amigos em competição, na Fórmula 1 e em outras disciplinas. E esse era o lado mau, não havia qualquer segurança. Eu ajudei a mudar isso. Porque era campeão mundial na altura, fui três vezes campeão do Mundo e por isso podia contribuir mais, dar o meu input nessa questão. Até porque tinha a atenção dos media. Quem mandava nos desportos motorizados estava ameaçado e não era só por mim. Os próprios meios de comunicação diziam: não podemos ver mais morte. Houve um ano em que morreram pilotos em abril, maio, junho e julho. Ao quinto mês, eu ganho em Nurburgring, na Alemanha, e a primeira coisa que pergunto é "está toda a gente bem?". Agora, a Fórmula 1 é segura e isso é fantástico. Olhas para as instalações médicas, aqui em Portimão, por exemplo, e são fantásticas. Os carros são muito mais seguros, as pistas são mais seguras, os materiais que usamos. As coisas ficaram mais sofisticadas, melhores, mas de facto naquela altura acho que havia mais glamour.
Qual é a grande diferença no ambiente?
Acho tem muito a ver com as pessoas. Havia mais camaradagem, até porque viajávamos todos juntos, íamos de férias juntos. E chorávamos juntos, porque havia tantas mortes. Eu sou a pessoa que conheço que foi a mais funerais. Era tão frequente, era terrível. Mas ao mesmo tempo isso trouxe quase uma nova dimensão ao desporto. Não estou a dizer que era uma coisa boa, mas é parte desse período da Fórmula 1.
Por falar em diferentes eras e diferentes gerações: este domingo, o Lewis Hamilton pode tornar-se no piloto com mais vitórias na história da Fórmula 1, ultrapassando o Michael Schumacher, mas o Sir Jackie não gosta muito dessa discussão sobre quem é o melhor de sempre.
Sim, porque tu só podes ser tão bom quanto os melhores da tua geração. Acho que não podemos dizer que o Juan Manuel Fangio é necessariamente o melhor de sempre, ou o Lewis Hamilton, ou o Michael Schumacher, o Senna ou o Prost. O Hamilton vai agora bater o Schumacher. Eu já tive esse recorde de maior número de vitórias e, curiosamente, o Alain Prost bateu-o numa corrida em Portugal, no Estoril. E eu estava lá. Imediatamente peguei numa garrafa de champanhe e celebrámos juntos. Porque eu não senti que tinha sido batido. Senti, na altura, "este tipo é melhor dos dias de hoje". E eu era o melhor de ontem.
E quem é o homem que se vai seguir ao Hamilton?
Honestamente, a questão não é só o piloto. É também o carro e a equipa. Atualmente, a Mercedes está acima de toda a gente. O Max Verstappen provavelmente seria esse homem...
...mas teria de ir para a Mercedes.
Sim. Ou então a Mercedes tem de deixar a Fórmula 1. Mas temos de tirar o chapéu ao Lewis porque ele viu o potencial na Mercedes. E fazem uma parceria fantástica.
Não sei se viu a série da Netflix, o "Drive to Survive". Toda a gente fala da série, mas a verdade é que há 50 anos o Roman Polanski filmou-o durante todo um fim de semana no GP Mónaco [as gravações dariam origem ao documentário "Weekend With the Champion]. Por isso, o visionário aqui foi o Sir Jackie.
Ah, sim [risos]. Bem, mais uma vez, eram tempos diferentes. O GP Mónaco na altura era a Princesa Grace. Eu é que levei a Elizabeth Taylor a Monte Carlo para o grande prémio. Toda a gente conduz um carro e é isso que faz da Fórmula 1, que é a disciplina máxima, algo global. Até mesmo para as super-estrelas. O Roman Polanski filmou esse fim de semana em 1971 e acabou por se tornar num bom amigo.
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