Um mister entre históricos: “Entramos no balneário e a parede mete respeito. Tenho o Fernando Santos à direita e o Jorge Jesus à esquerda”

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Na época passada, o modesto Sintra Football, do Campeonato de Portugal, surpreendeu o futebol português ao eliminar o Vitória de Guimarães da Taça de Portugal - algo que o Estrela da Amadora pretende replicar contra o Farense, esta quinta-feira.
Em comum em ambos os jogos, está Rui Santos, o treinador de 56 anos que após aquela vitória até saiu de Sintra, em desacordo com a direção, mas acabou, já esta épica, a ser contratado novamente para o Sintra... antes de saber que afinal só estava a ser testado para entrar no Estrela sem ser "guloso".
Ex-adjunto de Fernando Santos no Estoril, Rui Santos explica à Tribuna Expresso como joga o Estrela e que objetivos é que o histórico tem para o futuro. Para já, a época dificilmente poderia estar melhor: 1º lugar na série G do Campeonato de Portugal, com cinco vitórias e um empate em seis jogos.
Como chegaste ao banco do Estrela?
Como sabes, no ano passado, a meio da época, saí do Sintra Football, por desentendimentos com a direção, curiosamente após o jogo para a Taça contra o Vitória de Guimarães, que até ganhámos. Foi uma coisa um bocado inusitada, mas pronto. Depois fui para o Atlético, mas entretanto veio a pandemia e isto parou. Aí, o presidente do Sintra [Dinis Delgado] tentou convencer-me a voltar para o Sintra.
Não foi com ele que te chateaste?
Quer dizer, foi com ele, mas não foi por causa dele, foi por causa de um pseudo investidor que havia no clube. Por isso é que ainda conseguimos manter algum relacionamento. Ele convidou-me para voltar para o Sintra, porque tínhamos um projeto e as coisas tinham corrido bem, não fazia sentido não voltarmos a trabalhar juntos, que as situações estavam resolvidas e o investidor, claro, entretanto já se tinha ido embora. Ele andava com esta conversa, mas eu tinha alguma resistência a voltar, porque tinha ficado muito magoado com a situação, não fazia parte dos meus planos voltar tão cedo. Só que ele é uma pessoa muito persistente, fala muito bem ao coração das pessoas e andou durante várias semanas até me convencer. Entretanto fui lá a uma reunião com ele, aceitei e resolvemos as coisas. No dia seguinte, ele liga-me e diz-me assim: "Eu só estava a experimentá-lo, para ver se você queria mesmo vir para o Sintra. Porque o que nós temos agora é um projeto muito maior, mas não queria que você fosse guloso e só aceitasse por ser o Estrela." [risos] E foi assim que vim para o Estrela. Ele é que deu o meu nome, porque queria levar uma certa estrutura com ele. O André Geraldes não me conhecia, mas as outras pessoas conheciam-me e não colocaram qualquer questão contra a escolha do treinador.
Faz muito diferença treinar o Estrela?
É, é diferente.
Há mais pressão, se calhar?
Não é se calhar, é mesmo [risos]. Aqui a pressão de ganhar é diária, é constante. É tudo muito diferente, pelas condições que temos, pela equipa que temos, com muita qualidade, e a estrutura é enorme. Aqui há umas semanas o presidente fez uma reunião e não estavam lá nem jogadores nem elementos da equipa técnica, só eu, e mesmo assim era mais de 30 pessoas, portanto estamos a falar de um estrutura já com outra dimensão. É um clube muito grande e tem sido um desafio muito grande. Claro que as coisas até agora têm estado a correr muito bem do ponto de vista desportivo, portanto não há grandes motivos para não estarmos todos satisfeitos com o trabalho uns dos outros. Mas é realmente um enorme prazer trabalhar neste clube, porque é muito desafiante para um treinador.
Quais são as tuas primeiras memórias do Estrela?
Do antigamente? Ui... Lembro-me claramente do Estrela ganhar a Taça de Portugal ao Farense. Já tinha mais de 20 anos nessa altura [risos]. Mas acompanhei mais depois disso, porque, como sabes, trabalhei com o Fernando Santos no Estoril e ele entretanto foi para o Estrela. Eu na altura não o acompanhei por razões de ordem pessoal e familiar. Mas era uma pessoa de quem gostava e gosto muito, portanto nessa altura obviamente acompanhei o Estrela de perto. Um amigo meu na brincadeira disse-me: "Tu vais treinar um clube onde o Mourinho só conseguiu ser adjunto" [risos]. Foi aqui adjunto do Manuel Fernandes. Claro que eram outros tempos.
É um histórico de treinadores impressionante.
Sim, sim. Entramos no balneário e aquela parede mete logo respeito, não é? Geralmente falo com os jogadores ali, com aquela parede por trás, e o presidente Dinis Delgado na primeira palestra que dei tirou-me uma foto ali. Então tenho o Fernando Santos à minha direita e o Jorge Jesus à esquerda [risos]. E realmente Fernando Santos, Jorge Jesus, João Alves, professor Jesualdo Ferreira e tantos outros... José Mourinho, Manuel Fernandes. Enfim, passaram pelo Estrela grandes treinadores e isso é um motivo de orgulho e simultaneamente de grande responsabilidade.
Ainda falas com o Fernando Santos?
Sim, claro que sim.
Falaram sobre o Estrela?
Falámos, sim, mas na altura em que entrei no Estrela ele estava envolvido com a seleção, portanto ficamos de almoçar um dia destes para pôr a conversa em dia. Quando trabalhei com ele ainda era um miúdo, por isso ele continua a tratar-me carinhosamente, sempre que me vê é: "Então, ó Ruizinho?" [risos] Hoje em dia ainda me trata por Ruizinho.
Esta semana é a pior da época? Jogaram a 25 de novembro, a 29 de novembro e agora a 3 de dezembro.
Vamos ter uma densidade competitiva muito grande agora, porque vamos ter cinco jogos em 15 dias. Ou, como nós acreditamos que podemos ganhar ao Farense, seis jogos em 18 dias. Porque assim teremos no dia 13 de dezembro a 4ª eliminatória da Taça de Portugal. Se é a mais difícil? Não sei. Se me tira o sono? Não tem tirado. Porque o trabalho é tanto que quando chego à cama durmo bem. Mas é claro que vai ser um grande desafio e não é uma situação que tenha vivido muitas vezes na minha carreira, são situações que normalmente só acontecem a quem treina mesmo ao alto nível, na Liga dos Campeões e por aí fora.
Quando estavas no Sintra, em 2019/20, eliminaram o Vitória de Guimarães. Há algum ensinamento que possas retirar desse momento para este jogo contra o Farense?
Olha, tenho a convicção de que as equipas não podem ter medo de jogar contra as outras. Esse é o primeiro princípio a cumprir. Se nós entramos amedrontados, se nós não somos iguais a nós próprios, se perdemos a nossa identidade, se perdermos o nosso modelo de jogo, se começamos a adaptar tudo em função da equipa adversária... Claro que temos de saber como joga a equipa adversária. Na época passada quando analisámos o Vitória, vimos jogos contra o Benfica, contra o Eintracht Frankfurt, contra o Arsenal... E a gente: "Ei caramba" [risos]. Contextos um pouco diferentes. Mas não sabíamos o que iria acontecer, porque passados quatro dias de jogarem connosco, eles iam jogar ao Emirates, com o Arsenal, portanto estávamos na dúvida se iriam colocar a primeira equipa ou uma equipa com segundas linhas. Aí ainda se torna mais difícil o nosso trabalho de análise. No dia do jogo, enquanto as equipas aqueciam, troquei umas palavras com o mister Ivo Vieira e disse-lhe: "Ó mister, você não brinca em serviço, nem o Douglas tirou da baliza". E ele disse-me que, dois dias antes, como tinha visto o Alverca a eliminar o Sporting... Começou a pensar que ainda lhe ia calhar uma daquelas [risos]. Ele meteu realmente os melhores que tinha, acho que o Davidson foi dos poucos que não entrou de início, mas depois entrou e fez o golo do empate. E entretanto perdi-me na tua pergunta...
Se podes pegar em algo...
[interrompe] Ah, sim. Olha, até nos pode acontecer o que aconteceu ao Sacavenense contra o Sporting, não é? Mas também nos pode acontecer o que aconteceu ao Sintra e a tantos outros, não é? Já ficou provado nesta eliminatória que as equipas da I e da II Ligas tiveram muitas dificuldades com equipas do Campeonato de Portugal. Acho que se não sofrermos golos cedo, a equipa começa a acreditar e a outra equipa começa a ficar mais ansiosa. E depois cada minuto que passa é melhor para nós e pior para eles.
Então não vais pôr "um autocarro" para aguentar?
Não, não, de todo. Nem vou alterar a nossa forma de jogar, porque acho que isso não faz grande sentido. Porque imagina, alteras, montas uma estratégia, metes três centrais, metes dois médios de contenção e não sei quê, e sofres um golo como o Sacavenense sofreu contra o Sporting, no primeiro minuto. E depois? Fazes o quê? Acho que não é por aí. Até porque acho que dás logo um sinal de fraqueza aos teus jogadores assim. Até porque é um jogo da Taça, em teoria temos menos responsabilidades, embora no Estrela isso não seja assim. Até porque o nosso presidente veio do Farense e este jogo para ele é o jogo da época. Acho que se ganhar ao Farense, posso dormir descansado até ao final da época [risos].
Há prémio de jogo?
Acho que sim, mas sinceramente não sei qual é [risos].
O que será uma época de sucesso, para o clube e para ti?
A intenção com esta regeneração do clube é claramente regressar à I Liga. Agora, pode ser um caminho mais curto ou mais longo. O objetivo que está traçado para esta época é, se possível, subir à 2ª Liga, o que é muitíssimo difícil, porque são 96 equipas a jogar, para subirem só duas. Há equipas que estão no Campeonato de Portugal há muitos anos com esse objetivo, com plantéis mais consolidados e orçamentos muito maiores. E nós estamos numa série muito difícil [com o Sporting B]. Isso seria o top, mas se conseguirmos a subida à nova 3ª Liga, que vai ser criada para o ano, os objetivos da época também serão atingidos.
E os teus objetivos?
Claro que eu gostava de subir à II Liga, mas tenho noção, porque conheço bem este campeonato, da dificuldade que isto vai ser. Temos uma equipa com jovens com valor, mas são jovens, e a equipa só se formou agora, portanto ainda estamos em construção. Quero subir à II Liga, mas se subirmos à III Liga também não fico insatisfeito.
E na Taça?
Eh pá, a Taça é difícil, é muito difícil um clube como o Estrela atualmente ganhar a Taça de Portugal, não é? Temos de ser realistas. Agora, temos muita esperança de poder fazer um bom jogo com o Farense e passar. Até porque o sorteio é amanhã e já vamos saber quem será o próximo adversário [o Anadia], acho que isso vai ser motivador para os jogadores.
Quem te inspira enquanto treinador?
Não posso dizer que haja algum treinador que siga de forma muito direta, mas realmente o treinador que mais me influenciou foi o mister Fernando Santos. Trabalhei com ele quando era muito jovem e já na altura ele tinha grande capacidade. Era uma pessoa muito à frente, essencialmente na forma como motivava os jogadores e na liderança forte que tinha. De resto em termos táticos e técnicos e físicos não é comparável o que se fazia na altura com o que se faz hoje, as coisas evoluíram muito. Mas ele foi uma inspiração para mim, sem dúvida.
E como joga o Estrela?
Isso é que é mais difícil, não podemos dar armas [risos]. Como é que dizia o outro? Eles que fiquem com a bola, que eu levo os três pontos [risos]. Bem, isto também não é preciso estar com muitos segredos, porque de certeza que o Farense já foi ao Instat ver os nossos jogos todos. Nós jogamos num sistema híbrido, que nem é um 4-3-3 nem é um 4-4-2, temos jogadores que saem das alas para jogar entre linhas, temos algumas nuances que criam dificuldades aos adversários - e já estou a dizer muito [risos]. Não sou nada apologista de um 4-3-3 muito simétrico, acho que é muito fácil a equipa adversária encaixar-se neste sistema e depois ou realmente tens jogadores muito fortes para desequilibrar ou o jogo fica muito fechado. Gosto do jogo com muita mobilidade, muita dinâmica, para criar dificuldades aos adversários.
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