O adeus de Tarantini, aos 38 anos: “No futebol, a nossa idade é um negócio”

Jornalista
Os colegas chamam-lhe 'doutor'?
Mestre, na brincadeira. E alguns árbitros durante o jogo, como o Jorge Sousa, no jogo com o FC Porto. Sinto que é um sinal de carinho pelo meu percurso académico.
É a sua 10ª época no Rio Ave. Ainda se vê a jogar com outra camisola?
O sonho de jogar por um clube maior existe, mas a oportunidade é cada vez mais estreita. Em 2014, a grande época do Rui Ave, tive convites da Grécia, Itália e Irão, mas de clubes que fossem bons para a minha carreira... “Vais resolver o resto da tua vida?”, perguntou-me a minha mulher [que é médica]. A conclusão fácil foi: não. E trocar por trocar não faz sentido, nem mesmo por mais dinheiro.
E para clubes portugueses?
Na altura, tinha 31 anos e contrato, e em Portugal nessa idade é difícil contratar um jogador que não esteja livre. No ano seguinte, fomos à fase de grupos da Liga Europa, mas a época não me correu bem. No futebol, a nossa idade é um negócio. E em Portugal fica-se com os mais velhos para darem estabilidade aos mais novos e potenciar a sua venda. Custa-me a perceber que eu, tendo sido opção para tantos treinadores, com diferentes estilos de jogo, nunca tenha sido opção para quem contrata. Leva-me a crer que não se trata só do rendimento do jogador. Confesso que sinto alguma frustração e revolta.
Tem agente?
Já tive. Nenhum que tivesse acreditado em mim.
Não chegou à seleção por nunca ter jogado num 'grande'?
Tenho a certeza disso. Quando veio o Scolari, vários jogadores que não eram dos 'grandes' foram chamados à seleção. Na era de Paulo Bento, a seleção fechou-se um bocadinho, levava os da sua confiança, o que é normal. Acredito que se tivesse existido abertura quando era mais novo e na minha melhor fase teria conseguido. Aconteceu aqui com o Ukra e com o Tiago Pinto, já com Fernando Santos.
O Rio Ave, tal como em 2014/15 e 2015/16, está de novo no patamar europeu. A equipa está a cimentar esse estatuto?
Ainda é cedo. É bom ter essa meta, mas o clube ainda não tem estrutura para assumir este objetivo desde início. Tem acontecido, é uma atitude corajosa, e para isso têm pesado os treinadores, como o Nuno Espírito Santo, o Pedro Martins, Luís Castro e, agora, o Miguel Cardoso, que recebeu o prémio de treinador do mês de agosto. São técnicos que valorizam a qualidade de jogo para chegar ao sucesso. Em Portugal, a maioria dos treinadores é mais resultadista.
Talvez pela frequência com que se troca de treinador...
Nisso o Rio Ave é um clube diferente, para melhor. Em nove anos , só um treinador foi despedido [Capucho], o que é uma mais-valia para desenvolverem as suas ideia de jogo e terem tempo para as concretizarem.
Quando Nuno Espírito Santo foi para o FC Porto, acreditou que estivesse à altura?
Completamente. E esteve. Voltou a colocar o clube a lutar pelo título até ao fim. Este muito perto e não merecia ter sido tratado como um perdedor, que nunca foi. É um grande profissional.
O jogador de futebol é culturalmente limitado?
É uma resposta difícil, mas infelizmente corresponde à realidade. Segundo disse há tempos o presidente do Sindicato dos Jogadores numa entrevista, apenas 4% dos jogadores em Portugal têm uma licenciatura. Nos olímpicos, 65% dos nossos atletas presentes no Brasil tinham licenciatura ou frequência do ensino superior. E não se pode dizer que os futebolistas são profissionais e os outros atletas de alta competição não. É mentira.
No futebol não é mais complicado por ser um jogo coletivo?
É uma desculpa. Temos muito tempo livre. Admito que nas modalidades individuais haja mais agilidade de tempo, mas também cumprem horários.
Fez muitas diretas para conciliar tudo?
Muito poucas. Há dias, numa reportagem com os melhores alunos que entraram na Universidade do Porto, uma das miúdas dizia que o ballet não lhe roubava tempo, dava-lhe disciplina. O futebol deu-me disciplina nos estudos.
Teve dificuldade em ir às aulas?
Tive, mas ultrapassei-as. Se não ia de manhã, ia de tarde, e a outras faltei. Cheguei a ir para a faculdade às 8h, às 9h30 treinava, e voltava para a universidade às 13h.
Quem lhe incutiu a importância de ter um curso?
Os meus pais, comerciantes de produtos agrícolas, tinham a preocupação de nos dar um futuro melhor. Tenho três irmãs mais velhas, e todas estudaram, o que me serviu de exemplo. As dúvidas que tive se chegaria ou não ao futebol profissional também me fizeram ser pragmático e pensar primeiro na faculdade.
Na altura jogava em que clube?
No Sporting da Covilhã - e estudei na Universidade da Beira Interior.
O que é que o Amarante tinha para ter dado ao futebol jogadores como Ricardo Carvalho ou Nuno Gomes?
No meu caso, fui para lá jogar aos 9 anos por falta de clubes na minha terra, Gestaçô, em Baião. E como eu muitos outros miúdos da região. Ou seja, era um clube com boas estruturas e uma grande base de recrutamento. Depois estagnou, algo que não correu bem.
E Vila de Conde, Caxinas, outro terreno fértil de talentos da bola?
E Póvoa do Varzim. Aqui o fenómeno será os genes da população. Gente de muito trabalho, de vidas de sacrifícios e vontade de vencer.
Os jogadores são crédulos em relação aos seus empresários?
Em geral, acreditam que alguém vai fazer alguma coisa por eles, quando o mais importante é o que fazemos por nós próprios. Mas há agentes sérios e competentes.
Há muitos jogadores a ganhar milhões ou não são tantos como se pensa?
Em Portugal, 90% dos profissionais de futebol ganham em média €50 mil líquidos/ano. Os outros 10% têm ordenados bem acima. A disparidade é muito grande. Nas maiores ligas europeias, são valores bastante mais elevados. Há uma tendência para generalizar os jogadores como estrelas.
O Neymar custou €222 milhões. São valores que mexem consigo?
O futebol é uma bolha, um mundo à parte, mas se esses valores são praticados é porque o futebol gera milhões. Costumo dizer que somos palhaços num circo de milhões, por isso devemos ser bem pagos. Se o Cristiano Ronaldo ganha o que ganha é porque merece e porque o Real Madrid faz muito dinheiro com ele.
Nas flash interviews, os jogadores utilizam chavões como “levantar a cabeça”, “dar o nosso melhor”, “não atirar a toalha ao chão”... São constrangidos a não dizerem o que pensam?
Há jogadores com discursos mais fluentes, mas a verdade é que a seguir ao jogo temos precaução em não dizer algo de que nos venhamos a arrepender. Há muita tensão, daí o discurso parecido. Se o treinador diz uma coisa e os jogadores outra, é sinal de que algo vai mal. Não é censura, é cuidado, daí os clubes terem profissionais de comunicação.
Como funciona o seu projeto “A Minha Causa”, lançado há um ano?
É uma plataforma digital (www.tarantini.pt) de alerta aos jovens para o risco de apostarem tudo numa carreira que pode nunca acontecer ou acabar repentinamente. Promovo palestras em colaboração com o Carlitos e estou a escrever um livro com o título “A Minha Causa”, que será publicado em breve, que é a minha história de vida [Oficina do Livro]. E faço investigação que publico na minha página: 80% dos jogadores da NFL estão falidos três anos após terminarem a carreira, e três em cinco da Premier League também. São conclusões que não podem ser ignoradas. Não tem a ver com dinheiro ou os jogadores da NBA não acabavam na bancarrota. É um modo de estar na vida. Estamos em vantagem sobre a maioria dos portugueses, mas acabamos a carreira aos 30 ou 35 anos ainda com muita vida ativa pela frente. Temos de planear a longo prazo.
Houve algum caso que o tivesse precipitado a abraçar esta causa?
O clique foi o Fábio Faria [ex-Rio Ave e ex-Benfica], que abandonou o futebol devido a um problema cardíaco. Com o apoio do Sindicato, tirou um curso e tem uma loja de confeção.
Onde investe as suas poupanças?
Imóveis. Ter uma casa foi a minha maior preocupação. E estou a guardar para investir na atividade que vier a ter.
Já sabe o que vai fazer no futuro?
Não decidi, mas acho que estou apto a decidir sem estar nas mãos de outras pessoas.
Que carro tem?
Tive dois - um Seat Ibiza, agora um BMW X3.
Vê-se num 'el dorado', na China?
São reformas douradas para os nomes sonantes, para os outros não é um mar de rosas. Não acredito em negócios ou coisas fáceis, apesar de não pôr essa hipótese de lado. Mas custou-me a compreender as decisões de Hulk, Jackson Martínez ou André Villas-Boas, ainda com tanto para dar ao futebol europeu.
O videoárbitro - o 'Big Brother do Jamor', segundo Miguel Sousa Tavares - trouxe verdade desportiva?
Sou a favor de qualquer tecnologia que evite erros. Quero é que sirva a todos da mesma forma, o que não tem acontecido. Em Portugal, só se olha para o campeão, o que não beneficia o futebol. Sempre que joga o Benfica, independentemente que quem seja o adversário, todos os lances são escrutinados. Nos outros jogos é diferente, ficando por validar ou validando-se erradamente lances iguais. Assim será difícil encontrar um justo campeão.
Já alguém o namorou para a política?
Já. Em Baião, fiz parte da Comissão de Honra de Paulo Pereira, presidente da Câmara que se recandidatou e tem valorizado o concelho. Mas confesso que a política não me seduz - se o apoio é pela pessoa que é, não tanto pelo partido.
Versão alargada da entrevista originalmente publicada na edição de 29 de setembro de 2017 do Expresso
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