Três aviões à beira da pista e o passado e presente de Leipzig
O reconstruído Estádio Central de Leipzig, agora Red Bull Arena, mantém alguns traços do monumental antigo estádio da cidade, que levava mais de 100 mil pessoas. Um testemunho vivo da complexa história de Leipzig e do seu renascimento neste século
Maja Hitij
A cidade onde Portugal se vai estrear no Euro 2024 (20h, SIC) vive agora os louros de uma metrópole viva e jovem, depois de quase todo um século XX terrível. A própria Red Bull Arena é testemunha dessa história, um recinto construído em 1955 para 120 mil almas, requalificado em 2006 para o Mundial, que mantém alguma da traça antiga e que agora tem futebol de Bundesliga e Liga dos Campeões
É uma das primeiras imagens que vemos mal tocamos solo em Leipzig: três gigantes aviões Antonov parados numa afastada e solitária pista do aeroporto, como que já desistidos de um voo que não vai surgir tão cedo. Têm uma decoração não imediatamente reconhecível, vintage dir-se-ia agora, que lhes dá um ar de outros tempos, umas letras adornadas, longe dos designs limpos de hoje. Que fazem ali aqueles três aviões, imponentes, gigantes - e Antonov não deveria ser uma qualquer espécie de sinónimo para “enorme”? Uma rápida pesquisa pela imprensa local diz-nos que aqueles três aviões ali estacionados pertencem à companhia russa de carga Volga-Dnepr e que estão ali apreendidos devido às sanções da UE contra a Rússia, na sequência da Guerra da Ucrânia.
Conta o “Mitteldeutsche Zeitung”, jornal regional aqui da zona, que, curiosamente, a empresa russa paga religiosamente as taxas de aparcamento, sem falhar. Mas os aviões ali estão, parados, elefantes na pista, como um testamento de uma guerra que se disputa não tão longe daqui, numa cidade que conheceu bem a influência soviética e que foi fulcral para a queda da República Democrática Alemã.
A foto não é famosa, mas ali estão os três solitários aviões russos parados no aeroporto de Leipzig
A entrada do Museu da Stasi, em Leipzig, é uma homenagem aos homens e mulheres que em 1989, aqui na cidade, iniciaram as “Manifestações de segunda-feira”. A 9 de outubro, dois dias depois do 40.º aniversário da República Democrática Alemã, 70 mil pessoas juntaram-se em frente à Igreja de São Nicolau, num protesto que desaguou precisamente em frente às escadas deste edifício, então o centro do intrincado sistema de vigilância e desacreditação de todos aqueles que se opunham ao regime de partido único que se seguiu ao desmembramento da Alemanha depois da II Guerra Mundial. Na semana seguinte já eram 120 mil e na segunda-feira depois dessa, 320 mil cidadãos de Leipzig tomaram as ruas.
O Muro de Berlim cairia a 9 de novembro e estas manifestações foram o ponto de rutura.
No mês seguinte, o edifício, a quem chamavam de “Ministério do Medo”, foi pacificamente invadido pelo povo, que temia que lá dentro milhares e milhares de documentos estivessem a ser destruídos - e estavam. Hoje, é possível a qualquer cidadão aceder às informações que os serviços secretos da Alemanha de Leste mantinham sobre si. Os documentos estão precisamente aqui, no Museu da Stasi.
As autoridades de Leipzig mantiveram o edifício exatamente como ele estava quando a RDA já caía de podre. Ali estão as cortinas hoje antiquadas, os gabinetes esconsos e sem luz, com a inevitável fotografia de Erich Honecker, presidente da Alemanha Oriental até 1989, na parede. Há quem diga que até o cheiro é o mesmo. Numa das salas expõem-se uns tão cómicos quanto trágicos bigodes e cabeleiras postiças, usadas pelos agentes da Stasi, lado a lado com tecnologia de escutas e vigilância. Noutra empilham-se pequenas cassetes de música, enviadas do outro lado da fronteira, da Alemanha Ocidental, para quem vivia do lado Este. Fosse por falta de outro material ou por puro maquiavelismo, muitos dos telefonemas intercetados (podiam ser ouvidos 300 em simultâneo) eram gravados nestas cassetes. Quem viu “A vida dos Outros”, extraordinário filme de 2006, saberá, mais coisa menos coisa, sobre como funcionava a ardilosa máquina de manipulação da Stasi.
13
Passear por Leipzig é um exercício também ele quase museológico. A cidade conseguiu manter boa parte dos edifícios antigos apesar dos bombardeamentos na II Guerra Mundial. Ao lado destes nasceram largos caixotes de arquitectura racionalista soviética. Há muita gente jovem nas ruas, mesmo antes da chegada dos barulhentos adeptos portugueses. Desde 2000 que a cidade tem travado o declínio demográfico que começou com a chegada dos Nazis ao poder, continuou com a mão de ferro da Alemanha Oriental e não parou depois da reunificação, que não foi simpática inicialmente para Leipzig, que perdeu milhares de postos de trabalho. O século XX nem sempre lhe deu a mão.
Mas hoje é uma cidade viva, enérgica, jovem, a recolher os louros da requalificação urbana dos anos 2000. Já lhe chamaram “A melhor Berlim” ou “Hypezig”, pela dinâmica cultural e urbana acessível, que tornou Leipzig, terra por onde passaram Wagner, Bach, Mendelssohn e Goethe, na cidade com melhor qualidade de vida da Alemanha em 2013.
A entrada principal da Red Bull Arena, ainda com o pórtico original dos anos 50
As perpendiculares à Marktplatz, uma das principais praças da cidade, borbulham de gente a acompanhar os jogos do Euro 2024 e o futebol também faz parte do passado e do presente da complexa história de Leipzig. A Red Bull Arena foi em tempos o imponente Zentralstadion, de 120 mil lugares, símbolo de um desejo nunca concretizado de Leipzig receber uns Jogos Olímpicos - em 2012 houve mesmo candidatura, mas não passou da primeira fase.
Na construção do recinto, em 1955, foram usados destroços dos bombardeamentos da II Guerra Mundial, mantendo vivas as memórias desses terríveis tempos. Requalificado para o Mundial de 2006, ainda antes da Red Bull chegar à cidade, o estádio, agora com 47 mil lugares, mantém na sua entrada principal o antigo e austero pórtico, um relembrar constante daquilo que Leipzig já foi, já sofreu e já deu a volta por cima. Agora, há aqui futebol de Bundesliga, de Liga dos Campeões, de Campeonato da Europa.
É neste estádio e nesta cidade em regeneração, talvez até em contraciclo com uma Alemanha que se vê ameaçada na ideia de supremacia económica e política na Europa com a qual todos crescemos, que Portugal se estreia neste Campeonato da Europa, esta terça-feira, frente à Chéquia (20h, SIC). Nesta Alemanha, é possível que não houvesse sítio mais indicado para o renascer de um desejo de vitória.