UEFA Euro 2024

A Europa do futebol

A Europa do futebol

João Salazar Braga

Autor e consultor de comunicação

Realmente, de todas as coisas que menos importam, o futebol é a coisa mais importante: é um espelho das relações que estabelecemos uns com os outros, de um modo individual e colectivo

De quatro em quatro anos, as Europas unem-se. Da união da Europa Central, da Europa do Norte e da Europa do Sul, nasce a Europa do Futebol. É uma Europa boa, porque é muito alegre, colorida e festiva. A Europa do Futebol que nasce no verão de 2024 está a ser particularmente celebrada, o que se compreende, já que os últimos eventos futebolísticos deixaram a desejar, porque foram organizados, presume-se, com objectivos propagandísticos em mente.

Tem-se usado o futebol para branquear realidades autoritárias. (Não é de agora, nem é exclusivo deste desporto.) E todos temos compactuado com estas práticas. Mesmo que contrariados, sentámo-nos à frente da televisão. De qualquer das formas, os Mundiais da Rússia (em 2018) e do Catar (em 2022) foram insuficientes, porque encobriram verdades inconvenientes sobre os países organizadores — e porque lhes faltou substância. Ao Euro 2020, que, como nós, também acabou confinado, faltou o mesmo, mas as razões do falhanço foram outras: um vírus sobrepusera-se ao vírus do futebol. Porém, a memória do Euro Interrail é pouco forte, e tão cedo a fórmula não deverá ser repetida.

Os Campeonatos da Europa ganham quando são organizados num só país, tendo por base uma só cultura que acolhe e vive todas as outras. Experiências como a do Euro 2024, de cunho alemão, são certas e sensatas. Pois, o futebol não é só da Europa, nem pertence apenas aos europeus. Esta gestão é difícil, pois é suposto levar o desporto a todos os cantos do mundo, combatendo uma certa ideia de superioridade europeia. Contudo, percebe-se o porquê de torneios realizados em países com real capacidade para os receber — e com provas dadas nesse sentido — serem mais bem sucedidos do que outras tentativas. Assim, por estes dias, parece que recuámos no tempo e regressámos a uma Europa mais estável — mais distante de problemas que, em tempos, mostravam-se improváveis, mas sempre possíveis. É como se estivéssemos novamente em 2006 (talvez porque também nesse ano a Alemanha organizou o Campeonato do Mundo de futebol). Então, nem tudo era perfeito, mas a perfeição estava mais próxima.

Por cá, enquanto rola a bola, esquecemos os problemas da Europa. Mas, noutros pontos, há quem não os esqueça. Os ucranianos (que, em 2012, com a ajuda da Polónia, prepararam a competição) não se desligam da realidade, e esforçam-se, duplamente, para não perder jogos e território — o próprio país. A Rússia deixou de fazer parte destas e de outras competições, o que é uma pena, já que os atletas russos apresentam, quase sempre, um certo misticismo. Fora das quatro linhas, compreende-se o porquê de adeptos sérvios terem queimado uma bandeira albanesa. Compreende-se, porque temos acesso à história. Compreende-se, porque, por vezes, o futebol serve de bengala à geopolítica. O que não se compreende é a estupidez e a inconsequência que, demasiadas vezes, dominam as mentes dos adeptos.

Por isso, no X, têm razão os sul-americanos quando acusam a Europa de ser um continente de bárbaros, pelo menos no plano que junta o futebol e a guerra. De facto, a Copa América foi raramente cancelada devido a confrontos bélicos. A verdade é que a América do Sul tem os problemas da América do Sul. No entanto, dá que pensar: enquanto, por lá, se joga à bola de forma quase ininterrupta desde 1916, a Europa só organizou o seu primeiro campeonato de futebol propriamente dito em 1960, numa altura em que a paz se mostrou, efetivamente, plausível.

O futebol é uma improvável forma de observação do mundo e das sociedades, neste caso das europeias. Em 2024, o papel dos jogadores mudou. Ou mudaram as intenções dos OCS, que querem fazer das estrelas do desporto agentes sociopolíticos, aproveitando-se do seu alcance estelar. Há 20 anos, não terão perguntado a David Trezeguet ou a Thierry Henry sobre a ascensão da direita em França (e na Europa), porque, então, essa era uma questão residual. Hoje, o quadro é diferente, e jogadores como Kylian Mbappé ou Marcus Thuram respondem ativamente a essas perguntas, mostrando-se contra o paradigma que vai crescendo nos boletins de voto. Há quem aplauda a tomada de posição destes e de outros jogadores. Há quem a condene, argumentando que não é dever dos futebolistas comentar questões políticas: o portero Unai Simón, por exemplo, reprovou a reação dos franceses.

Era bom se aos jogadores fosse apenas pedido grandes defesas e grandes golos. Isso quereria dizer que estávamos bem. É mau sinal quando, igualmente no X, políticos, daqui e de fora, refutam os desejos e os raciocínios das grandes estrelas do desporto. Mas a Europa está diferente, assim como as preocupações dos europeus e os temas que discutem. É o futebol que o demonstra. Foi sempre muito mais do que um desporto. Realmente, de todas as coisas que menos importam, o futebol é a coisa mais importante: é um espelho das relações que estabelecemos uns com os outros, de um modo individual e coletivo.

Até ao momento, o Campeonato da Europa deste verão está a ser um sucesso. Generalizar é imprudente, mas fica-se com a ideia de que os adeptos europeus têm tirado partido desta competição, porque é muito mais do que um torneio continental — é uma ferramenta que podem usar para medir a sua vida, à medida em que vivem novas edições, já que o futebol também funciona como prova da passagem do tempo. E dos tempos. Vemos as jovens promessas de outrora a preparem os papéis para a reforma, e admitimos o nosso envelhecimento, a que associamos uma dor de menino, enquanto assistimos, entre belos jogos de futebol, à evolução da Europa, que, agora, terá direito a um mês de festa.

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