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UEFA Euro 2024

Ser guarda-redes, como este Europeu já provou, é tramado, porque “o futebol é um jogo coletivo até ao momento em que ele erra”

Ser guarda-redes, como este Europeu já provou, é tramado, porque “o futebol é um jogo coletivo até ao momento em que ele erra”
Matt McNulty - UEFA
Neste Euro 2024 já vimos o ucraniano Lunin a falhar, o espanhol Unai Simón também e, provavelmente, teremos mais guarda-redes a cometerem erros, porque errar é humano - e não deveria haver mal algum nisso. Ricardo Pereira, o nómada treinador da posição mais ingrata do futebol, hoje no Valladolid, ajudou a Tribuna Expresso a destrinçar a vida de quem está na baliza. E a avaliar, em dia de um Espanha-Itália (20h, RTP1) em que se defrontam dois guarda-redes de perfis muito distintos, nomes como Gigi Donnarumma, Unai Simón, Manuel Neuer e Diogo Costa, o português que “tem capacidade e conhecimento para executar quase tudo” com os pés, no passe curto e longo, “de forma fantástica”

Ser o único tipo com luvas postas em campo, com a mordomia de poder tocar na bola com as mãos, se bem que com o senão de ter de proteger um alvo retangular com 7,32 metros de comprimento e 2,44 metros de altura, nunca parecerá, nem assim descrito, o pior dos trabalhos no mundo. Quando se pintalga o esboço com cor, porém, o retrato induz a noção vigente de que ser guarda-redes é a mais sorrateiramente castigadora função no futebol: erras e a culpa é só tua; se uma falha tua, ocorrida num par de segundos, origina um golo sofrido, a culpa também é tua, apenas tua e sempre tua, especialmente se durante os outros segundos que cabem nos 90 minutos do jogo a tua equipa, onde há outros 10 jogadores, não descortinar forma de evitar uma derrota.

É o fácil escaparate por onde quem vê futebol se habituou a encontrar um culpado, porque sempre há que identificar um. Ricardo Pereira não é estranho à condição. Foi guarda-redes durante 20 anos, privou com a solidão na baliza e há mais de uma década que treina quem seguiu a mesma vida. “O Renato Paiva diz a brincar que nós, os treinadores de guarda-redes, fomos a melhor invenção do futebol. Antigamente, punha-se a culpa só nos guarda-redes quando havia erros, hoje em dia pode-se por nos dois”, diz, do lado oposto da chamada, bem-disposto e a rir com o seu cabelo desgrenhado. Cita uma frase do técnico com quem trabalhou no Independiente del Vale, no Equador, mas poderia referir outras, de várias pessoas, quando esteve na Arábia Saudita, Polónia, Inglaterra, Bélgica ou Espanha, terra da qual está de férias e onde regressará para, na próxima época, trabalhar com o Valladolid na La Liga.

Ricardo conhece a corda bamba da possível angústia que acompanha os guarda-redes, a toda a hora periclitante. Ele não viu o Roménia-Ucrânia, nem o que levou Andriy Lunin, finda a partida, a “pedir desculpa aos companheiros” pelo “erro que complicou o jogo” - um passe que um adversário intercetou para rapidamente dar a bola a Stanciu, que o castigou com um bonito golo. O português viu, contudo, o passe errado de Unai Simón, no Espanha-Croácia, que originou o penálti cometido por Rodri e abateu sobre o guarda-redes, dias depois, um chorrilho de questões numa conferência de imprensa. “Depois de rever, esse passe tinha que ser dado de primeira. Há que saber reduzir os riscos, sermos mais práticos”, analisou o portero, não sendo tão auto-vergastante quanto o ucraniano do Real Madrid (sem sermos bruxos, terá sido porque ele, guardião do Athletic Bilbao, defendeu o tal penálti e os espanhóis acabariam por vencer, 3-0, enquanto os ucranianos perderam pelo mesmo parcial).

Mas o que, de facto, acende o discurso do treinador português, e com ele o brilho nos seus olhos, é outra coisa dita por Unai Simón, o titular na baliza de Espanha que tem 27 anos e só há quatro alguém o fez ver a luz que ilumina os pés dos guardiões no momento de construir jogadas: “Até coincidir com Luis Enrique na seleção, ninguém me explicou como funcionava a saída de bola com o guarda-redes.” Quando a frase é servida, aí Ricardo Pereira alonga-se em explicações e elucidações acerca de como se trabalha esse momento do jogo, na perceção que as pessoas têm desses trabalhos e de como, neste Europeu, um continente congrega tantos tipos de luvas postas que estão reconhecidamente no patamar sublime da posição.

Além de Gigi Donnaruma (Itália) e Unai Simón (Espanha), que se defrontam esta quinta-feira (20h, RTP1) e sobre quem o técnico versou bastante, no torneio andam igualmente Manuel Neuer (e o seu eterno homem-sombra, Marc-André Ter Stegen, na Alemanha), Jordan Pickford (Inglaterra), Yann Sommer (Suíça), Kasper Schmeichel (Dinamarca), Wojciech Szczesny (Polónia), Jan Oblak (Eslovénia) ou Diogo Costa, o português com a sua “tremenda capacidade de jogar com os pés” e respetivo “entendimento do jogo”. Venha a baliza e escolha, o Europeu está pejado de guarda-redes sonantes, vindos das melhores escolas das balizas. E Ricardo Pereira deu uma aula a falar de quase todos.

Ontem vimos o Lunin, guarda-redes da Ucrânia, cometer um erro que praticamente originou o primeiro golo da Roménia. Como é que um treinador é capaz de ajudar um guarda-redes a digerir as consequências de uma falha destas?
Confesso que não vi, estou de férias, preparei-me um pouco para a nossa conversa, mas não tenho visto tudo. O que aconteceu concretamente? Ajuda-me só.

Basicamente, a Ucrânia assumiu o jogo, teve mais bola, tentou sempre ter uma saída limpa por trás, com passes curtos, e o Lunin tentou fazer um de primeira, para a esquerda, que foi intercetado. O golo não surgiu diretamente desse erro, não foi o jogador que cortou a bola a marcar, foi depois um grande golo do Stanciu, ao rematar de primeira o segundo passe à entrada da área. Foi um dos erros em que depois os companheiros de equipa vão lá abraçá-lo e confortá-lo.
Bom, em primeiro lugar, claramente tem a ver com aquilo que se está a pedir aos guarda-redes, e está a pedir-se muito na fase de construção. Vimos algo de semelhante, que não deu golo, mas deu penálti, da parte do Unai Simón, que é um erro também em que hesita e acaba por fazer penálti - depois consegue salvar a equipa nesse momento, mas não foi ele a cometer o penálti. O guarda-redes tem de estar preparado para isto: sabe aquilo a que está exposto, a equipa sabe, o treinador sabe e tem a ver com o modelo de jogo. Vemos isto muito frequentemente, é uma opção claramente estratégica entre o que é que te dá uma fase de construção mais elaborada e tu conseguires eliminar uma linha de pressão, sair de forma limpa e poder atacar menos adversários; ou esticar na frente. Na minha opinião, e enquanto treinador, é um erro para ser analisado do ponto de vista coletivo. É óbvio que tens de trabalhar isto com o guarda-redes, tens de o analisar, mas de uma forma coletiva - que linhas de passe tinhas?, que opções realmente tinhas?, e se é um erro teu porque demoraste realmente a decidir e etc., mas tens de andar para a frente porque vão acontecer sempre erros. Como costumamos dizer, o futebol é um jogo coletivo até ao momento em que o guarda-redes erra. Aí passa a ser um jogo individual e vês éne erros, mesmo da parte de defesas centrais, mas tem sempre dimensão maior quando é cometido pelo guarda-redes. Há que desmistificar isto e tu, enquanto treinador, tens de perceber: quero continuar a jogar desta forma, com estes riscos?, ou no que sinto da parte da capacidade do meu guarda-redes em reagir a este erro, quero continuar?, os benefícios são maiores do que os riscos? Então vamos seguir.

Isto falando em erros cometidos na fase de construção.
Caso contrário, vamos proteger o guarda-redes, começar a optar por jogar um pouco mais longo e com menos risco quando a pressão seja muito alta e efetiva.

Ia chegar ao Unai Simón. Há dias, numa conferência de imprensa, disse que só teve alguém a explicar-lhe o papel do guarda-redes na saída de bola quando começou a coincidir com o Luis Enrique na seleção espanhola. Ou seja, há quatro anos, quando ele já tinha uns 23 ou 24. Não é estranho, em 2024, ainda ouvirmos um guarda-redes contar isto?
Isso é muito interessante, principalmente se fores ver quando é que mudou a lei. Ainda sou do tempo em que recebíamos um atraso e agarrávamos a bola, como no famoso Euro [1992] do Peter Schmeichel onde se decidiu que aquilo era uma vergonha e se mudou a regra. Isso entronca com outra coisa. Todos falamos de como um guarda-redes joga muito bem com os pés. O que é isto, no fundo, de jogar bem com os pés? Pode ser, perfeitamente, colocar a bola mais ou menos tensa, sempre no avançado, para jogar numa segunda bola; ou encontrar os extremos e é ali que eu quero a saída de bola. Isto pode perfeitamente ser jogar bem com os pés.

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