Um, dois, três, cá está Ronald Koeman com os Países Baixos outra vez
ANP/Getty
Saiu do Barcelona “aliviado” e, depois de quatro fases finais como jogador, uma como adjunto e um período em que foi selecionador, mas não disputou um grande torneio, está em estreia como treinador principal neerlandês num dos maiores palcos. Contra a França (sexta-feira, 20h, SIC), o filho de Cruijff que não joga à Cruijff tentará provar que os Países Baixos podem “competir contra qualquer equipa da Europa”
O futebol neerlandês vive um momento de nostalgia. Nostalgia de quando tinha os melhores atacantes do mundo, quando vivia da arte de Van Basten, de Bergkamp, de Robben, de Van Persie. Nostalgia de quando era o centro do vanguardismo tático, dos tempos de Rinus Michels e Johan Cruijff, do jogo ofensivo e ousado. Nostalgia de quando o Ajax, o PSV ou o Feyenoord lutavam por ser campeões europeus.
Entre tanta saudade, há um elo de ligação. Alguém que foi treinado por Rinus Michels e Johan Cruijff, que foi companheiro de equipa de Van Basten e Bergkmap, que foi campeão europeu pelo PSV. Que estava lá em 1988, em 1998, em 2018. E que está em 2024.
É Ronald Koeman, o homem que conecta passado, presente e futuro nos Países Baixos. Num país apaixonado por futebol e apaixonado por falar de futebol, por discutir as táticas e estratégias, Koeman, o antigo defesa goleador transformado em selecionador, parece sempre pronto a voltar, a vestir uma nova roupagem ao serviço dos laranjas.
Depois do Mundial 2022, os Países Baixos vivam outra nostalgia. Uma nostalgia familiar. A nostalgia de Van Gaal, o único homem que teve sucesso recente pela seleção. Foi medalha de bronze no Mundial 2014, só caiu nos penáltis contra a Argentina no Catar. Pelo meio, os neerlandeses nem se qualificaram para o Euro 2016, nem para o Mundial 2018, caindo logo nos oitavos de final do passado Europeu, frente à Chéquia.
Para lidar com essa ressaca de Van Gaal, a aposta foi o eterno regresso de Ronald Koeman. Que, na verdade, é uma estreia para o homem de 61 anos.
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O antigo dono do banco do Benfica conhece bem a seleção. Vestiu, como jogador, a sua camisola por 78 vezes, esteve em dois Europeus e um par de Mundiais. Foi adjunto de Guus Hiddink no Campeonato do Mundo de 1998, orientou a equipa laranja entre 2018 e 2019. Está outra vez no lugar que, desportivamente, melhor conhece, mas numa circunstância inédita.
Pela primeira vez, depois de quatro décadas de ligação aos Países Baixos, Ronald é selecionador principal numa grande fase final. Em 1998 era só adjunto, em 2019 chegou à final da Liga das Nações, contra Portugal, mas saiu para o Barcelona antes de se disputar o Europeu da pandemia.
Depois da estreia contra a Polónia, com o triunfo (2-1) a abrir boas perspetivas para superar a fase de grupos, chega um teste de exigência máxima. O confronto contra a poderosa França (20h, SIC).
Cruijffista… q.b.
Como tanto profissional da bola neerlandesa, Koeman é um filho futebolístico de Cruijff. Johan treinou-no no Ajax, quando Ronald tinha 22 anos, e pediu a contratação do seu compatriota para o Barcelona, em 1988.
“Cruijff foi a pessoa mais importante da minha carreira”, disse o selecionador dos Países Baixos ao “El Mundo”. Mas, como técnico, Koeman não segue exatamente os postulados do mestre.
Nos últimos seis anos, o antigo central goleador — marcou 250 vezes na carreira — só treinou a seleção neerlandesa e o Barcelona. Dois bancos profundamente marcados pela influência Cruijffista, pela natureza ofensiva, pelo gosto pelo risco. E dois locais onde o “ADN” é elevado a assunto de debate nacional.
A marcar um penálti nas meias-finais do Euro 1988, contra RFA
picture alliance
A marcar um penálti nas meias-finais do Euro 1988, contra RFA
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Na Catalunha, o “estilo” é sagrado. E Koeman ousou questioná-lo quando orientava o Barcelona. Assumindo o comando dos culés num dos períodos mais complicados da vida do clube, depois do 8-2 contra o Bayern, e tendo de lidar com a saída de Lionel Messi no verão de 2021, Ronald foi, como treinador do Barça, um homem amargurado, triste, atropelado pela crise institucional, financeira e desportiva dos blaugrana.
E, também, o treinador que se atreveu a colocar em causa o “estilo”. O sagrado “estilo”, a divinizada herança de Cruijff, o pai que ele não segue assim tanto.
Pouco depois da saída de Messi, o Barcelona empatou (1-1) em casa contra o Granada, em setembro de 2021. Nos minutos finais do encontro, Koeman abdicou do jogo associativo e apostou nas bolas longas para a área, com o central Ronald Araújo a avançado improvisado. Foi uma decisão entendida quase como um crime na Catalunha.
“Tivemos que sacrificar o nosso estilo de jogo para tentar conseguir vencer, apostando em cruzamentos em vez de jogo interior. Se olharem para o onze de hoje, era a única coisa que poderíamos fazer. Não podemos fazer tiki-taka se não há espaço, temos de encontrar outra maneira de jogar. Sabemos que talvez não seja o futebol do Barcelona, mas este Barcelona não é o de há oito anos.”
A justificação de Koeman foi como um tiro na confiança que a (enorme) massa crítica em redor dos culés ainda poderia ter no treinador. O ídolo como jogador, herói da primeira Taça dos Clubes Campeões Europeus por ter marcado o golo que derrotou a Sampdoria, na final de 1992, tornara-se no vilão que abdicava do “estilo”.
Afetado pela ausência de euros nas contas bancárias do clube, marcado pela saída de Messi, criticado por contrariar a essência do jogar do Barcelona, Ronald Koeman, o herói como futebolista, saiu do Barcelona como treinador que não deixou saudades. Foi-se embora dando uma imagem triste, quase resignado. Regressaria, uma vez mais, à seleção neerlandesa, dizendo que foi um “alívio” sair do Barça, como uma “libertação”. Saiu-lhe um peso de cima.
Vingar o currygate
Koeman deixou o desconforto blaugrana no passado, mas não os debates sobre o estilo. Sobre o ADN. Sobre o legado de Cruijff.
Nos Países Baixos, falar de tática é como discutir o estado do tempo. Toda a gente o faz, é tema de conversa nacional.
Ronald acha que “se debate demasiado sobre sistemas táticos”, entende que ainda se está, no país, preso à ideia de que o 4-3-3 é sagrado, ao dogma que se tem de jogar olhando para a baliza adversária, por muito que os bons resultados com Van Gaal tenham vindo com abordagens mais defensivas.
“Há muitas formas de chegar a Roma. Olhamos demasiado para o passado, mas o futebol mudou.” Filho de Cruijff, mas não dogmático de Cruijff.
O abraço de Koeman com Weghorst, herói do jogo contra a Polónia
Soccrates Images/Getty
Campeões da Europa em 1988, também na Alemanha e com Koeman como jogador, os neerlandeses chegaram a esta competição sofrendo uma praga de lesões. Primeiro foi De Roon, depois foi De Jong, finalmente foi Koopmeiners.
Um a um, o meio-campo foi ficando todo fora de combate, mas o selecionador recusou o pessimismo, parecendo um homem de motivação renovada depois dos tempos difíceis em Espanha. “Não faz sentido manter o foco sobre os lesionados. Vamos procurar soluções dentro do resto do grupo, sei que podemos competir contra qualquer equipa da Europa”, garantiu, nas vésperas do Euro.
Contra a Polónia, os Países Baixos foram a segunda seleção que mais rematou na primeira jornada da fase de grupos. Com 21 disparos, só ficaram atrás dos 22 da Turquia. Koeman acha que a equipa “jogou muito bem” e que, caso “tivesse havido eficácia”, dir-se-ia que os neerlandeses “teriam jogado a um nível semelhante ao da Alemanha”.
No grande duelo contra a França, os neerlandeses procurarão a vingança do currygate: em março de 2023, vários jogadores dos Países Baixos, como De Ligt ou Gakpo, começaram a sentir-se mal na noite anterior ao jogo de qualificação frente aos franceses, abandonando o estágio. O culpado foi o chicken curry servido ao jantar.
No dia seguinte, uma desfalcada equipa já perdia no Stade de France por 3-0 aos 21 minutos. Ficaria 4-0 e não faltam referências ao currygate na imprensa laranja. Koeman, outra vez no sítio do costume, mas com funções inéditas, procurará corrigir as más memórias daquela noite de há 15 meses.