UEFA Euro 2024

O 👑 do futebol turco vive exilado nos EUA, onde conduz um Uber. E ninguém quer falar dele porque Erdogan não gosta de Hakan Sükür

O 👑 do futebol turco vive exilado nos EUA, onde conduz um Uber. E ninguém quer falar dele porque Erdogan não gosta de Hakan Sükür
Neal Simpson - EMPICS

É o melhor marcador da seleção da Turquia, com 51 golos em 112 jogos. Teria “uma boa vida”, a viver da glória, e seria ministro no seu país se “alinhasse no jogo”. Mas, se hoje visitarmos a sede da federação, nem uma foto ou menção a ele se vê por lá. O lendário Hakan Sükür está exilado nos EUA enquanto é apagado da história no seu país porque apoiou um clérigo visto por Recep Tayyip Erdogan como ameaça ao seu poder. O homem que marcou o golo mais rápido em Mundiais, a quem os turcos chamavam o rei ou o Touro do Bósforo, teve de fugir para a Califórnia com a mulher e os três filhos. Porque, na prática, foi cancelado por quem manda no seu país

Vamos falar sobre as nossas chances de Euro2024…

Vantagens e desvantagens do pessoal.

Quem deveria estar nesta seleção?

Arda Güler deveria jogar?

Desempenho na seleção nacional de Hakan Çalhanoğlu.

Quem será o favorito a ganhar o torneio?

Deixem os vossos favoritos, comentários e, claro, suas perguntas.

Traduzido do turco, o excerto, se fôssemos literais, vem de uma publicação no Twitter a que temos de chamar X da autoria um mero homem de meia-idade, até há pouco tempo dono de um humilde café de esquina dedicado à pastelaria, com um balcão repleto de bagels, conhecido por servir pequenos-almoços turcos em Palo Alto, bairro da Califórnia que tresanda a dinheiro tecnológico por tudo quanto é empresa virada para a internet estar lá sediada.

Ele fez esse post na rede social no tempo que lhe sobrou entre gerir o café e ser um condutor de Uber, surripiando pelas ruas a pegar e largar passageiros. De feições bochechudas, o grisalho no cabelo alastrou às sobrancelhas e barba, o verão da sua vida já lá vai e parecer querer entreter-se a falar da seleção da Turquia.

A descrição que deixa no seu perfil não ajuda. “Um pai que pagou o preço da fama, cujo nome é usado tanto para intimidar quanto para obter lucro, e que tem uma esposa maravilhosa e 3 filhos…”, lê-se. Passar os olhos pelo conteúdo que partilha demora a dar alguma ajuda: é uma série de publicações escritas em turco, a maioria acerca da política do país, ocasionalmente entrelaçadas com algo sobre futebol, por norma um convite para emissões ao vivo no YouTube, onde este homem aparece em casa, sentado à mesa, muitas vezes a degustar um chá enquanto fala para a câmara com um ar sereno. Nem as suas fotos de perfil, seja no X ou no Instagram, desobrigam a que se olhe para o nome deste cidadão turco exilado algures na Califórnia, que seria detido caso amanhã decidisse voar de volta para o seu país.

É Hakan Sükür, o melhor marcador da história da seleção da Turquia.

A aparência descontraída, adornado sempre por uma t-shirt de cor única, também engana. Está com 52 anos e chegou aos EUA há mais de 10, forçado pelo pulso de quem tem mão na política da Turquia faz muito tempo e a exerce com quase nulo vagar para quem é divergente na opinião. Recep Tayyip Erdogan virou presidente do país em 2014 depois de 11 anos como primeiro-ministro e a sua relação pouco amistosa com hábitos democráticos conhece uma das suas possíveis ilustrações em Hakan Sükür, que em condições normais seria alguém engolido por multidões de admiradores ao sair à rua na Turquia, venerado pelos feitos no futebol. E seria, provavelmente, mencionado repetidamente nas antevisões ao Portugal-Turquia deste Euro 2024, a sua lenda recordada e saudada, mas não.

Em vez disso, todo o dinheiro, posses e propriedades que tinha foram arrestados pelo governo turco, o seu pai esteve preso durante quase um ano e nem um registo se encontra dele no site, ou na sede, da Federação de Futebol da Turquia. Há ano e meio, durante o Mundial do Catar, um jornalista da TRT, televisão estatal do país, foi retirado da narração do jogo entre Canadá e Marrocos por se ter atrevido a lembrar que Hakan Sükür era o melhor marcador da história da seleção turca.

E em Dortmund, na Alemanha, na véspera do segundo jogo da Turquia neste Europeu, nenhum jornalista do país aceitou falar à Lídia Paralta Gomes, enviada da Tribuna Expresso, na sala de imprensa do estádio, se o assunto fosse o provável jogador mais importante que o seu futebol já produziu. É um receio germinado das consequências de um de facto cancelamento - ou apagamento - da história de Hakan Sükür.

Hakan Sükür com a Taça UEFA que conquistou em 2000, com o Galatasaray.
Tony Marshall - EMPICS

A causa está um desaguisado com o Erdogan, outrora um impulsionador da abertura democrática do secular sistema político da Turquia e hoje o líder do país com um punho cerrado sobre o seu poder, que trata de afastar opositores políticos. Ou simples discordantes, como viu ser Hakan Sükur quando, na segunda década deste século, o antigo futebolista, após ser comentador televisivo, chegou ao parlamento do país eleito Partido de Desenvolvimento e Justiça, do próprio Erdogan. Os acontecimentos que levaram o Touro do Bósforo, uma das alcunhas postas pelos adeptos turcos, a exilar-se nos EUA com a mulher e os três filhos viriam do seu apoio público a uma figura considerada como inimiga pelo homem que governa a Turquia há mais de 20 anos.

Fethullah Gülen é um clérigo secular da Turquia, ele próprio exilado, desde 1999, no estado norte-americano da Pensilvânia, para onde Hakan Sükür começou por emigrar antes de se fixar na costa oposta da California. Com o tempo virou líder do movimento com o seu nome, que ajudou no início do século o próprio AKP, partido islamista e nacionalista, a romper o sistema político da Turquia com a era kemalista, numa transição que até levou Erdogan ao cargo de primeiro-ministro. Os dois líderes eram próximos e unidos por uma relação sã. Nos anos 90, ambos foram convidados para o casamento de Hakan Sükür, então a crescer para o zénite da sua carreira futebolística e proporcionalmente de popularidade.

A sua boda do jogador teve muito pouco de discrição: foi transmitida em direto na televisão turca.

A cerimónia aconteceu antes de conquistar, com o Galatasaray, o primeiro troféu europeu para o futebol turco, em 2000, quando bateram o Arsenal na final da Taça UEFA, nos penáltis. O avançado converteu o seu, não contando para os 251 golos que deixou no gigante de Istambul, o segundo melhor registo na história do clube, só atrás de Metin Oktay, outra lenda do clube. É conveniente salientar que Hakan Sükür foi contemporâneo de Mário Jardel, não apenas pelas suas carreiras entroncarem na mesma rotunda sem se tocarem: em 2001, quando o Inter contratou o turco face à abundância de golos que marcava, o Galatasaray convenientemente comprou o brasileiro ao FC Porto. E com certa lógica.

Hakan Sükür a jogar contra Portugal, nos quartos de final do Euro 2000
Sandra Behne/Getty

Sükür era, como Jardel, um goleador com primazia dada ao primeiro toque, ponta de lança de área à espera de ser servido, com o seu rol de ações restrito às diligências a tomar no momento da finalização na era do futebol prévia à insurreição de tantos avançados capazes de fabricar oportunidades para eles próprios. O turco e o brasileiro eram letais a definir com a baliza à vista sem precisarem de grandes artifícios, necessitavam é que a equipa os providenciasse. Como em 2002, no Mundial, quando uma recuperação de bola alta de um companheiro de seleção lhe deu a hipótese de marcar contra a Coreia do Sul logo aos 11 segundos.

Ainda é o golo mais rápido feito em Campeonatos do Mundo e a Turquia acabaria esse torneio no 3.º lugar. Mas, vá-se ao site da federação de futebol do seu país e nada, nenhum registo seu. Até a sua presença em fotos do maior feito da seleção foi magicamente editadas para o fazer desaparecer.

Dois anos antes jogou contra Portugal nos quartos de final do Europeu. Marcou o último dos 51 golos pela Turquia em 2007 e retirou-se do futebol no ano seguinte. Não demorou a arranjar com o que se entreter. Cedo foi para a TRT, o canal estatal de televisão da Turquia, ser comentador de futebol, profissão que lhe reforçou o mediatismo num país que já o idolatrava. Foi outra rampa para, em 2011, ser eleito deputado parlamentar pelo AKP. De trás vinha, também, o seu apoio a Gülen e ao seu movimento, uma conotação que convivia pacificamente com a sua nova vida política.

Mas, tal e qual é descrito ao pormenor no “Heroes &Humans”, podcast que narra a história de várias figuras do futebol, não demorou a desvincular-se do AKP e permanecer no parlamento como deputado independente - mais ou menos na mesma altura em que Erdogan, aos poucos, começou a afastar-se Fethullah Gülen, criticando o clérigo, fechando escolas criadas pelo seu movimento e catalogando o ex-conviva como um terrorista. Mais ainda após a tentativa de golpe de estado de 15 de julho de 2016, nunca reivindicada por Gülen, mas a ele atribuída por Erdogan: nesse dia, mais de 300 pessoas morreram e cerca de 2 mil ficaram feridas.

Sükür já estava então nos EUA, fugido do seu país por criticar publicamente o partido e Erdogan, acabando por abandonar o cargo parlamentar. Não poupou os dedos, no Twitter, a teclar sobre o homem que convidara para o seu casamento, tanto que até chegou a ser formalmente acusado e julgado do crime de insultar o presidente turco. A retaliação do governo amestrado pelo líder, de 70 anos, não foi dócil: a sua mulher e filhos sofreram abusos no trabalho e na escola; o pai do ex-jogador, diagnosticado com cancro, esteve preso durante quase um ano; as contas bancárias, propriedades e bens do antigo futebolista arrestadas.

Sükür marcou 51 vezes pela seleção da Turquia e é o segundo melhor marcador da história do Galatasaray
Sportsphoto/Allstar

Assim o encontrou, em 2018, o “New York Times”, na montra do café no qual investira uns quinhões.

A servir pastelaria a pessoas que o tomam por um anónimo e simpático cidadão, longe de imaginarem, caso não seguissem futebol umas duas décadas antes, de estarem na presença de um exilado que a Turquia trata como dissidente. “Teria tido uma vida muito boa e viria ser ministro se tivesse jogado o jogo, se fizessem o que eles diziam. Mas agora estou a vender café”, disse, então, Hakan Sükür, sendo o “eles” concentrado na pessoa de Erdogan. “É muito importante ter liberdade. Tu podes dizer o que quiseres, mas eu, no meu país, se digo algo é um problema”, desabafou, ao mencionar os amigos que o aconselham a calar-se, dar pouco nas vistas e regressar à Turquia: “Há milhares e milhares de pessoas a viverem nesta situação. Não conseguiria ser egoísta ao ponto de defender só os meus direitos, de pensar só nos meus benefícios. Perderia todo o respeito.”

Entretanto, o que é conhecido de Hakan Sükür chega através dos vídeos que vai gravando no YouTube, para os quais convida as pessoas por via do Twitter ou Instagram onde não deixa de criticar a vida política do seu país. Da reclusão, contou como teve de fechar o seu café em Palo Alto quando, após a pandemia, começou a receber visitas de pessoas que lá iam cantar música tradicional turca, de um género estimado por Erdogan como o mais típico da cultura do país. Que ele e a família já receberam o visto de residência permanente (Green Card), mas estarão a ser protegidos pelo FBI. Ou como o presidente da Turquia terá tentado, quando Donaly Trump ainda estava na presidência, trocá-lo por Andrew Brunson, um pastor evangélico detido desde 2016 por alegada associação ao movimento de Gülen.

O resto que se pode aferir acerca de Hakan Sükür vem do que ele deslinda nas redes sociais. Nessa representação fabricada de cada pessoa, o melhor jogador, ou, pelo menos, o mais fulcral da história do futebol turco, parece ter começado a dar treinos de futebol a jovens nos EUA. Na última fotografia que publicou surge ao lado da mulher, a sorrir, congratulando os seus anos de matrimónio. No Twitter, tem uma 👑 ao lado do seu nome. Antigamente, Sükür era venerado como um rei na Turquia. Agora, quem for ao museu do Galatasaray, em Istambul, não descobrirá qualquer referência ao antigo jogador.

Mais do que ser cancelado, aos poucos, ele está a ser eliminado da história.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt