Na Alemanha fala-se em “dönerflation” e “dönerpreisbremse” e por isso fomos provar o döner kebab de Lukas Podolski
Esperando por um kebab em Chlodwigplatz
O preço médio do döner kebab nas ruas alemãs terá duplicado nos últimos dois anos, devido à inflação. Por aqui, há palavras e conceitos inventados sobre o tema e até tentativas de controlar o preço da comida de rua preferida dos germânicos. Um dos empresários de sucesso na área das bancas de kebab é Lukas Podolski, antigo jogador da seleção alemã, campeão mundial em 2014. E em Colónia garantiram-nos (e nós também) que não é só marketing
Depois de uns quantos dias entre o industrialismo de Dortmund e Gelsenkirchen, olhar de cima a baixo para o gótico da Catedral de Colónia, mesmo à saída da estação central da cidade, é um colírio para os olhos. Além disso, o céu resolveu limpar-se das chatas nuvens e a Alemanha apresenta-nos, finalmente, um verdadeiro dia de verão.
É, também, quase hora de almoço e ali mesmo com vista para a catedral já se nota uma senhora fila, que vem de uma pequena banca de döner kebab, a Mangal x LP 10. O “LP 10” do nome refere-se a Lukas Podolski e à camisola 10 com que jogou boa parte da carreira. Podolski, um dos jogadores essenciais da Alemanha do início do século XXI, é um filho emprestado de Colónia. Nasceu na Polónia, mas com dois anos a família mudou-se para a Renânia do Norte - Vestfália e foi por aqui que o poderoso avançado, dono de um pé esquerdo de respeito, se apresentou ao futebol. Formou-se no clube local, o FC Köln, onde explodiu, e passou ainda pelo Bayern Munique, Arsenal, Inter e Galatasaray. Foi dar ainda um pézinho ao Vissel Kobe do Japão e agora, aos 39 anos, joga no Gornik Zabrze da Polónia, clube muito próximo de Gliwice, cidade onde nasceu.
Talvez a carreira em clubes não tenha sido tudo aquilo que se pressagiou para Lukas Podolski, que depois de não se impor no Bayern voltou ao seu modesto Colónia, clube ió-ió entra a primeira e segunda Bundesliga, à custa também dos adeptos, que o amavam e pagaram parte dos custos do seu regresso. Mas o canhoto era um daqueles jogadores que se transformava com a camisola da Alemanha vestida. Esteve com a Mannschaft em seis grandes torneios, foi campeão mundial em 2014, e é, ainda hoje, o terceiro jogador da história com mais internacionalizações pela Alemanha (130) e também o terceiro com mais golos marcados pela seleção (49).
Em 2018, Podolski meteu-se noutras aventuras, nomeadamente gastronómicas. E nostálgicas também, talvez. Na sua Colónia do coração, abriu uma pequena banca de kebab, porque o kebab na Alemanha é a comida rápida de conforto, aquele misto barato de fatias de carne, legumes, tudo enfiado num pão árabe com molhos, uma sandes inventada na Berlim dos anos 70 pela diáspora turca e que se tornou tão germânica quanto a eficiência - e até esta, enfim, tem dias.
Podolski na inauguração da sua banca de kebab, em 2018
picture alliance
Nas ruas, o kebab concorre em proeminência e número com as bancas de bratwurst ou currywurst, talvez ganhando. Tornou-se num bem-amado prato, para todas as bolsas, uma pequena refeição para o miúdo que sai da escola ou o jovem que se vai divertir à noite. “Comes kebabs quando és garoto, quando estás a jogar e também quando parares de jogar - é a solução perfeita”, disse Podolski então ao site da Bundesliga, explicando a sua ideia de negócio. Se por Portugal os jogadores abrem hotéis ou lojas de roupa, por cá vão para algo mais popular. É como se Nuno Gomes de repente resolvesse abrir uma casa de bifanas.
Mas, por estes dias, o döner kebab tornou-se símbolo da galopante subida dos preços a que assistimos no último par de anos na Europa, e em particular na Alemanha. A sandes, antes acessível a todos, terá duplicado o preço nos derradeiros dois anos. Culpados? O aumento da energia, das rendas, dos preços dos produtos alimentares. Se antes era possível atestar a barriga e matar a fome por qualquer coisa como 3 euros, hoje é muito difícil encontrar um döner kebab a menos de €6,50. Nos grandes centros, os preços são ainda mais altos, naturalmente.
O assunto tornou-se matéria de comoção nacional. As redes sociais encheram-se de posts de jovens enraivecidos com o aumento do preço do kebab e o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, cunhou mesmo a expressão “dönerflation”. Quando os preços começaram a inchar, quando a inflação chegou ao popular kebab, o governo alemão usou mesmo o Instagram para explicar aos agastados cidadãos o porquê da escalada dos preços.
Um kebab imune ao marketing. Mas não à inflação
O kebab de Lukas Podolski foi uma das “vítimas” da “dönerflation”. Já chegou a custar menos de 5 euros, agora custa €7,90. Na fila da sucursal da catedral de Colónia - o negócio do jogador foi um sucesso e a banca já tem mais de 30 localizações em várias cidades da Alemanha - perguntamos a dois miúdos se a sandes é mesmo boa ou há aqui muito marketing por causa da fama do jogador. “Não sabemos, somos da Polónia, também vamos provar a primeira vez”, responde um deles, ideia que se repete por outras pessoas da fila. Muitos deles não são de cá, nas poucas mesas que este restaurante tem há muitas malas, gente pronta a correr para a estação de comboios ali ao lado e sinal de que há por aqui poucos locais.
Fila na sucursal da Mangal x LP10 mesmo ao lado da Catedral de Colónia
Decidimos então apanhar o elétrico até à banca original, a tal inaugurada em 2018 com Podolski de facalhão na mão, mesmo ao lado da Chlodwigplatz, uma bonita praça no sul da cidade. O restaurante é diferente. Aliás, nem é um restaurante. Não há muitas imagens de Podolski como na localização central, onde um vídeo corre com vários dos melhores golos do avançado - e há alguns verdadeiramente impressionantes. Não há também mesas ou cadeiras, é pegar e comer na rua, no verdadeiro espírito do döner kebab.
A fila é, também, substancialmente mais pequena e, aqui sim, há locais. Max Herter veste a camisola da seleção alemã. Está à espera de mais amigos e pede um kebab. Garante que o negócio de Podolski é mais do que marketing. “É bom, é bom, a qualidade é mesmo boa”, sublinha, com uma sandes de falafel já na mão - porque nem só de carne se faz um kebab -, antes de explicar as origens da sanduíche, que se entranhou na cultura alemã, lembrando o papel da imigração turca no absoluto melhoramento da tradição gastronómica deste país.
Matthias Stammen, um dos amigos, fala da passagem do avançado pelo futebol turco como uma das possíveis razões para abrir o que agora é um negócio gigante do kebab, mas a verdade é que o ambiente aqui é bem de Colónia. O grupo comenta o apartamento de luxo num empreendimento junto ao Rio Reno que pertence, supostamente, ao jogador e que é uma das fofocas preferidas dos locais. E Matthias sublinha que não, o kebab de Podolski, a quase 8 euros, “não é barato” face a outras bancas, mas os clientes continuam a chegar.
Pedimos também um döner kebab para perceber se, de facto, Lukas Podolski se tornou num mestre da culinária, com tanto talento para isto como para visar a baliza e confirma-se: o pão é estaladiço, feito no local, os legumes são frescos, os molhos não demasiado intensos e a carne não desilude. E sem mesas no local, é mesmo nos bancos da Chlodwigplatz que se deglute a sanduíche, com a companhia de quatro senhores que aproveitam o domingo, em que praticamente tudo está fechado nas ruas alemãs, para beber cerveja enquanto ouvem em altos berros, com uma coluna, o que será um best of de Céline Dion - “My Heart Will Go On” passou a dobrar e o divertimento acabou com a chegada da polícia, que obrigou ao desligar da música. Infelizmente.
Limitar o preço do kebab? É uma ideia
Os efeitos da Guerra da Ucrânia na economia e o aumento do IVA nos restaurantes no início deste ano não deixaram grande margem para os donos das bancas de kebabs. O aumento do preço médio da sanduíche tem sido tal que há mesmo políticos na Alemanha, nomeadamente da esquerda, a propôr o chamado “dönerpreisbremse”, palavra composta, como tantas neste país, que quer dizer algo como “limite de preços para o döner kebab”. Isso mesmo.
Um excelente döner kebab, cortesia de um dos jogadores mais marcantes da seleção alemã deste século
No início de maio, o Die Linke, da esquerda mais radical, propôs um preço máximo de €4,90 para o kebab, diz a imprensa germânica, e €2,90 para jovens que venham de famílias com necessidades. Sugere até que cada agregado receba uma espécie de voucher diário para a compra da sandes. Dados do partido dizem que 1,3 mil milhões de döner kebabs são consumidos todos os anos na Alemanha.
Apontam os jornais locais que o chanceler Olaf Scholz frisou que o controlo de preços do kebab é “impossível”, devido às leis do mercado livre, deixando, ao invés, um elogio ao trabalho do Banco Central Europeu, com sede em Frankfurt, onde Portugal vai jogar nos oitavos de final, pelo trabalho que está a fazer em prol do controlo da inflação. O que não será de grande consolo para quem tem de pagar a dobrar por uma sandes que faz parte da alimentação diária de muito boa gente.
Os preços do kebab, o mais popular dos pratos da Alemanha, sempre aqui ao nosso lado para uma eventualidade, para uma urgência, não deverão, portanto, voltar a tempos belos e idos, em que uma moeda de €2 e uma de €1 permitiam fazer a festa. Seja em Portugal ou na Alemanha, a inflação toma as suas vítimas, para mal dos nossos estômagos.