A Geórgia quer mostrar que pertence à Europa. E não só à do futebol: “Em 30 anos de independência nunca vi as pessoas tão unidas”
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Nos últimos meses, milhares de georgianos assomaram-se às ruas de Tbilisi, capital do país, com bandeiras da UE, protestando contra o que chamaram de “lei russa”. O desporto voltou a juntar o país, que quer provar que o seu lugar também é no Europeu do futebol. A Geórgia é o último adversário de Portugal (quarta-feira, 20h, TVI) no Grupo F e ainda sonha com a passagem à próxima fase
Willy Sagnol anda danado nos últimos dias. O antigo defesa francês tornado selecionador da Geórgia, país que levou pela primeira vez a um Campeonato da Europa, tem sido criticado pelos poucos minutos que tem dado ao ponta de lança Budu Zivzivadze neste Euro e na conferência de imprensa de antevisão ao jogo contra Portugal, esta terça-feira, em Gelsenkirchen, levou logo com essa questão à primeira intervenção de um jornalista georgiano. E a pergunta foi bem direta: Zivzivadze não está a jogar por questões políticas?
Contexto: o striker do Karlsruher SC, da segunda liga alemã, foi um dos jogadores da seleção que se colocou ao lado dos manifestantes que, nos últimos meses, encheram as ruas da capital Tbilisi contra a polémica “lei dos agentes estrangeiros”, que queria obrigar organizações (como, por exemplo, meios de comunicação social) que recebam pelo menos 20% do seu financiamento do estrangeiro, a registar-se como tal, passando assim a estar sob vigilância do governo. Os críticos, cidadãos que advogam uma aproximação da antiga república soviética à Europa ocidental, batizaram-na de “lei russa”, porque foi a aprovação de limitações semelhantes na Rússia, em 2012, que transbordou num ainda maior controlo do governo às instituições e ao definhar do jornalismo independente naquele país. A Presidente da República da Geórgia vetaria depois a lei que havia sido aprovada no parlamento.
“Tudo isto tornou-se muito político e eu quero ficar longe disso”, sublinhou Sagnol, que garante estar a “tomar decisões” baseadas apenas em “factos e futebol” e atirando-se aos críticos. “Durante meses fui insultado porque jogava o Zivzivadze em vez do Mikautadze. Agora é ao contrário. Sou um treinador de futebol, nada mais, e não posso aceitar insultos. Não estou com grande humor nos últimos dias por causa disso, perdoem o tom”, sublinhou o gaulês.
Está perdoado.
Sagnol e Kvaratskhelia na conferência de antevisão ao jogo com Portugal, decisivo para os georgianos
Frederic Scheidemann - UEFA
Só que, num país como a Geórgia, quase tudo é política, até o futebol é política. Mas também é o futebol que está a unir, pelo menos por um par de semanas, um país abanado por instabilidade política e que ainda sofre com a invasão por parte da Rússia em 2008.
“As pessoas estão tão felizes. Em março, quando eliminámos a Grécia no play-off, foi uma loucura, os adeptos invadiram o campo, foi um jogo histórico. Depois da independência foram 30 anos à espera deste momento e nunca na minha vida vi as pessoas tão felizes, tão unidas”, conta-nos Mariam Meskhi, jornalista do portal TSFF.ge.
Rati Shelegia, do semanário georgiano “Kviris Palitra”, sublinha a importância do momento solene para o futebol do seu país. “São alguns anos a tentar”, conta-nos, lembrando depois a “história do futebol da Geórgia” antes do desmembramento da URSS. “Em 1981, o Dínamo Tbilisi ganhou a Taça dos Vencedores das Taças. Em Dusseldorf, curiosamente”, sublinha. “Foi o maior momento do nosso futebol, mas depois da independência, em 1991, não tivemos grandes vitórias, por isso, fazer parte da Europa do futebol é algo grande. As pessoas na Geórgia estão muito entusiasmadas”, continua.
Nos tempos da União Soviética, os jogadores georgianos tinham fama de tecnicistas, de “tratarem bem a bola”, explica Mariam Meskhi. “Éramos o pequeno Brasil da URSS”, brinca. Mariam esteve nas manifestações em Tbilisi e acredita que a Geórgia deve aproximar-se da Europa, não só no futebol, mas no processo democrático também - o país tem estatuto de candidato à UE desde março de 2023. Não esconde o ressentimento com o passado soviético e com o vizinho invasor. “Tinha 16 anos quando a Rússia invadiu a Geórgia, ainda me lembro de ouvir as bombas”, conta, e por isso ainda lhe é mais difícil aceitar que os talentosos jogadores georgianos de outros tempos estivessem impedidos, antes da independência, de jogar fora da URSS.
“Ano após ano vemos que as coisas não estão bem no nosso país, com a invasão russa, com a situação geopolítica, tudo. E o futebol tornou-se algo especial para nós, porque nos alegra. Já no tempo da União Soviética nós éramos um país de futebol, só que ninguém nos via. Agora as pessoas podem ver-nos”, continua a jornalista, que acredita que a presença da Geórgia no Euro é uma mensagem extensível não só ao desporto: “Nós pertencemos à Europa, estamos a tentar desenvolver-nos como país e o futebol também está a mostrar isso mesmo. A nossa equipa está a melhorar.”
No olhar, está o entusiasmo de quem partilha “a esperança e o sonho” com os jogadores da sua nação: “Estamos cá e quase não acreditamos. Eu às vezes não acredito que estou aqui, que estou a trabalhar no Euro, a acompanhar o meu país. É de loucos às vezes pensar nisto.”
Muito apoio na Alemanha
O apoio à Geórgia tem sido grande na Alemanha. “Há muitos georgianos a viver aqui, mas muitos milhares vieram também da Geórgia para seguir a seleção”, conta Rati Shelegia. Depois de um primeiro jogo, o emocionante duelo com a Turquia, em Dortmund, um dos duelos mais especiais deste Europeu, em que se sentiram algo engolidos pelos adeptos turcos - Mariam Meskhi garante não os perdoar por terem impedido que ouvisse o hino do seu país com tanta assobiadela -, em Hamburgo, frente à Chéquia, houve “15 mil georgianos nas bancadas”, com “muito barulho” e “muita energia”.
Khvicha Kvaratskhelia ainda procura o verdadeiro momento de brilho neste Euro 2024
Stuart Franklin - UEFA
Meskhi diz que há quem tenha “vendido tudo” ou “partido o seu porquinho mealheiro” para viajar para a Alemanha. “Não somos um país rico”, lembra a repórter.
Nos últimos “cinco, dez anos”, tem havido algum investimento no futebol do país. O Dínamo Tbilisi continua a ser a grande academia, agora com boas condições no seu centro de treinos, inaugurado há cerca de uma década. Quanto à federação, “tem tentado dar o seu melhor”, sublinha Shelegia. A Geórgia tem “dois estádios com parâmetros UEFA”, em Tbilisi e Batumi, conta Meskhi, recintos onde a seleção nacional portuguesa sub-21 jogou no último Europeu da categoria - e perdeu contra o anfitrião. A jornalista lembra essa surpresa e faz figas para que tal se possa repetir esta quarta-feira, em Gelsenkirchen (20h, TVI), embora saiba que tal é muito difícil.
Mas enquanto houver uma hipótese que seja da Geórgia chegar à próxima fase - e ela ainda existe - Willy Sagnol, já mais bem-disposto, garante que os seus jogadores “vão fazer o possível”. A ideia de que a Geórgia pertence a este palco, que não está aqui para fazer “turismo”, para fazer número ou ser uma espécie de saco de pancada, está muito presente. Estar aqui, sublinha o treinador, “já é uma vitória gigante”, mas as pessoas “querem mais” e a equipa “quer mais”, sonhar mais.
Um sonho que a grande estrela da equipa, Khvicha Kvaratskhelia, craque do Nápoles, cheio de técnica naqueles pés, como que homenageando os antepassados, irá viver quando se cruzar com Cristiano Ronaldo em campo. “É algo com que sonho e às vezes os sonhos tornam-se realidade. Espero sair do jogo com a camisola do Ronaldo, espero que ele ma dê”, atirou na conferência de imprensa da Geórgia, arrancando muitas risadas na sala.
A emergência de Kvaratskhelia, conta Rati Shelegia, provocou um boom no número de miúdos a inscrever-se para jogar futebol na Geórgia, mas o extremo ainda procura brilhar neste Euro 2024. O papel de destaque na equipa tem ficado nas mãos seguras de Giorgi Mamardashvili, o guarda-redes que tem sido um dos melhores do torneio. Um jornalista compatriota diz a Kvaratskhelia na conferência que não tem perguntas para lhe fazer, apenas quer desejar que ele não saia deste Europeu sem um golo marcado. “Porque mereces”, frisa.
Kravadona, como lhe chamam em Nápoles, nada diz, apenas leva a mão ao coração como quem agradece profundamente as palavras. Ele pertence à Europa, a Geórgia pertence à Europa e o sonho continua vivo.