UEFA Euro 2024

Uma ode aos adeptos do Europeu (escoceses, isto é para vocês) que nos faz perceber que somos seres imperfeitos. E verdadeiros trapalhões

Uma ode aos adeptos do Europeu (escoceses, isto é para vocês) que nos faz perceber que somos seres imperfeitos. E verdadeiros trapalhões
Anadolu

Philipp Lahm, diretor do Euro 2024, escreve sobre os adeptos que o têm encantado durante o torneio: os albaneses que partiram esparguete em frente aos italianos, o saxofonista alemão que deixa os seus compatriotas em êxtase antes de cada jogo ou os croatas que andaram de touca de polo aquático. O ser humano é assim, não apenas racional, mas emocional. A única coisa que chateou antigo campeão mundial pela Alemanha é o facto de os escoceses já terem ido para casa

Uma ode aos adeptos do Europeu (escoceses, isto é para vocês) que nos faz perceber que somos seres imperfeitos. E verdadeiros trapalhões

Philipp Lahm

Antigo campeão do Mundo de futebol

Atualmente, sento-me num estádio todos os dias e vivo momentos intensos. Percebo o impacto que o futebol tem e como o seu folclore faz parte da superação dos muitos problemas do nosso tempo.

Isso leva-nos aos escoceses. Eles fizeram tudo bem. Percorreram as ruas de Munique, Colónia e Estugarda a cantar. Mesmo em cidades onde não jogaram, contagiaram todos com a sua boa disposição. Usaram este campeonato para celebrar com outros. Querem fazer parte da Europa. Não são apenas os restaurantes que vão sentir a sua falta. Já me perguntaram o que mais me chateia neste Euro. Respondi que é o facto de os escoceses já terem ido para casa.

Participar no evento, partilhar a emoção da vitória e da derrota, uma intensificação ordenada - é exatamente isso que significam todos os eventos desportivos, quer seja em campo, quer seja no centro das cidades. Tudo isso nos torna mais resilientes e impede que coisas piores aconteçam no mundo. Esse é o efeito calmante dos eventos desportivos. Escritores e sociólogos dizem-no e eu vejo-o da mesma maneira. Sejamos como somos, sejamos todos escoceses!

A Europa é convidada na Alemanha. Vinte e três países, oito deles vizinhos, estão atualmente a visitar, em enormes grupos turísticos, o meu país natal. O que nos une a todos é o desejo de encontros e a alegria de estar em festa. São as pessoas que dão sentido a um festival cultural como o Campeonato Europeu.

Como costumava estar no relvado, só agora vivo de perto muitas das coisas que se passam à volta. O entusiasmo é enorme. Às vezes, as pessoas nas bancadas correm alguns metros quando a sua equipa ataca, como se quisessem ser elas a marcar o golo.

Há um clima de festa nas ruas. As marchas dos adeptos são o novo fenómeno de massas. Milhares andam por Hamburgo, Dortmund ou Leipzig como num desfile de Carnaval, acenando para as avós nas janelas e sendo encorajados pelas crianças.

Alex Livesey/Getty

Os albaneses partem esparguete em frente aos italianos. Um saxofonista alemão deixa os seus compatriotas em êxtase antes de cada jogo. Os neerlandeses saltam em conjunto ao som do hit dos Snollebollekes - obrigado pela melodia cativante - para a esquerda, depois para a direita. Que tontaria maravilhosa! Os adeptos espalham sorrisos nas cidades alemãs.

Este Campeonato Europeu é uma experiência partilhada. Os adeptos croatas tiraram as suas toucas de polo aquático quando a Itália empatou. O horror estava estampado nos seus rostos, e o alívio, no dos italianos. Os georgianos foram divididos por duas forças. Defenderam contra os checos para conseguirem o primeiro empate da sua história no torneio, e depois, em segundos, a vitória parecia estar ao seu alcance, e possivelmente um lugar nos oitavos de final. Mas a bola não entrou. No momento do apito final, não sabiam se deviam rir ou chorar. A grande celebração aconteceu após a vitória contra Portugal.

Numa época em que muitas pessoas vivem na sua bolha, o desporto cria memórias que alastram para várias gerações. Lembram-se de onde estavam quando o Luka Modric falhou um penálti e 31 segundos depois marcou o golo, assumindo a vantagem no marcador? Lembram-se de como se sentiram quando a Itália empatou aos 98 minutos? E onde estavam quando a Geórgia falhou o golo, ou quando a Geórgia passou para a fase seguinte?

Este torneio já criou alguns grandes momentos na fase de grupos. Ao mesmo tempo, testemunhámos as oportunidades de golo perdidas, bolas na trave e (o que é que se passa?) imensos auto-golos. Jogar a bola com o pé e a cabeça, mas não com as mãos, faz-nos perceber que somos seres imperfeitos. Somos verdadeiros trapalhões.

RALF HIRSCHBERGER/Getty

Também nos queixamos de outras coisas. Da Deutsche Bahn, por exemplo, que nós, alemães, aceitamos como feedback valioso para melhorar os transportes públicos no futuro. Um grupo de adeptos polacos difamou Putin em frente à embaixada russa em Berlim e os adeptos da Geórgia fizeram o mesmo. Isso é permitido na Europa. Alguns adeptos sérvios entoaram gritos pró-Putin. Isso também é permitido na Europa.

Também se ouviram cânticos nacionalistas nas bancadas, adeptos que glorificam a pirotecnia ou assobiam o hino dos seus adversários. Isso é algo que precisa ser discutido. Por vezes, pode-se olhar para além disso. Há margem de manobra, porque o ser humano é assim, não apenas racional, mas emocional.

Na Europa, as coisas acontecem de forma organizada e as pessoas são responsabilizadas por quebrar as regras. O que é uma falta e o que não é? Quando é que o nacionalismo carrega tanto ressentimento que a dignidade humana deixa de ser sagrada? Temos de estar atentos.

No desporto muitas coisas vêm à tona e este Europeu não é exceção. É por isso que a cultura é importante. Criticar grandes eventos de forma geral não faz sentido. O seu valor é evidente nos dias de hoje. E, neste sentido, mais Europa significa ser-se mais escocês.

*texto escrito em colaboração com Oliver Fritsch, do jornal Zeit Online.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt