Os jogadores franceses falaram contra a extrema-direita. Bem, uns mais do que outros, mas Mbappé redimiu-se com uma excelente piada
Alex Pantling - UEFA
A posição dos jogadores franceses contra o avanço do Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, tem sido um dos temas deste Europeu. Mas em França fala-se que há futebolistas mais empenhados do que outros. As palavras de Mbappé, tão elogiadas fora do seu país, pareceram vagas dentro de portas, mas na conferência de imprensa antes do jogo com Portugal (sexta-feira, 20h, TVI), o capitão gaulês foi mais claro. E usou humor refinado para o mostrar
Há um momento na conferência de imprensa da seleção francesa que arrancou uma gargalhada sonora na sala excessivamente iluminada do Volksstadion, de Hamburgo. Um jornalista gaulês pede a palavra, está num dos cantos da sala e Kylian Mbappé não o consegue encontrar. “Estou à tua esquerda, mesmo à tua extrema esquerda”, disse o jornalista. Finalmente encontrado o repórter pelos olhos do já jogador do Real Madrid, Mbappé teve comentário mais rápido e incisivo do que uma bala: “Felizmente que não estás do outro lado.”
A sala sorriu. E talvez Mbappé se tenha redimido perante muitos franceses. Aquela piada é, claro, muito mais do que uma piada. Já antes, o avançado havia sido questionado sobre a 2.ª volta das eleições legislativas francesas, que se disputam dois dias depois do jogo com Portugal, dos quartos de final do Euro 2024. Foi logo a segunda pergunta, após a conferência arrancar com uma questão sobre o encontro com Cristiano Ronaldo, o seu ídolo de infância, de quem fala sempre com enorme respeito e reverência.
Mas vamos à política.
“Mais do que nunca, é preciso ir votar [na 2.ª volta]. É uma situação urgente, não podemos deixar que o país caia nas mãos dessa gente. O resultado das eleições foi catastrófico, esperamos que as pessoas se mobilizem e votem do lado correto”, disse o jogador. No início do Europeu, e ainda antes da 1.ª volta das eleições, em que o Reagrupamento Nacional (RN), de extrema-direita, venceu com 33,15% dos votos, Mbappé havia afirmado que a França estava “num momento crucial da história do país” e que os cidadãos franceses não deviam “estar desligados do mundo”.
“Quero dirigir-me a todos os franceses, em particular à geração jovem. Os extremos estão às portas do poder e nós temos a possibilidade de mudar isso”, continuou o capitão da seleção francesa, falando ainda de valores de “tolerância, respeito e diversidade”. Uma mensagem forte? Aparentemente sim, mas em França não foi lida da mesma forma.
“A primeira vez que vi uma análise exterior sobre a nossa situação política e a seleção nacional francesa foi em Espanha, em que falaram sobre as palavras do Mbappé. Diziam que a mensagem era muito positiva, de oposição à extrema-direita. A leitura em França não foi a mesma, porque aqui o que se diz é que o Mbappé poderia ter ido um pouco mais longe e que se escondeu um pouco atrás das palavras do Marcus Thuram, filho de Lilian Thuram, que tem uma posição muito clara sobre a questão do anti-racismo. O Thuram foi o jogador que teve mais coragem, tal como o Jules Koundé, mais recentemente. Essas posições foram particularmente bem recebidas cá, pela oposição à extrema-direita”, diz-nos William Pereira, do diário “20 Minutes”.
Romain Lafont, do “L’Equipe”, lembra que, um pouco à semelhança de Cristiano Ronaldo, tudo o que Kylian Mbappé diga “vai ser interpretado de diferentes formas” e que falando de “extremos”, no plural, muita gente não viu uma mensagem clara, havendo até quem falasse de um possível apoio a Emmanuel Macron, o atual presidente francês, ligado ao centro político.
“É sempre mais difícil para o Mbappé falar disto do que o Marcus Thuram e o Jules Koundé. E destes dois já se esperava esta posição”, sublinha também o jornalista francês, tocando também no facto do avançado do Inter de Milão ser filho do antigo defesa campeão mundial pela França, em 1998, que tem dedicado o seu pós-carreira à discussão e luta contra o racismo. “O Koundé há anos e anos que fala sobre o racismo, apesar de ser ainda muito jovem”, diz também Lafont. Depois do jogo com a Bélgica, o defesa do Barcelona sublinhou a importância de “barrar a extrema-direita e o Reagrupamento Nacional”.
Ainda no rescaldo das eleições europeias, que o RN de Marine Le Pen venceu em França, levando Macron a marcar eleições legislativas antecipadas, Marcus Thuram foi também ele claro, claríssimo a apontar nomes, numa das primeiras conferências de imprensa de França em solo alemão. “A situação é muito, muito grave. Todos os dias tens mensagens na televisão a ajudar à festa da extrema-direita. Como cidadãos devemos lutar diariamente para que isto não volte a acontecer e que o RN não passe”, clamou.
Na verdade, tudo começou com Thuram, depois de outras mensagens mais mornas de outros jogadores.
Mbappé a treinar-se já em Hamburgo, com Marcus Thuram e Jules Koundé na retaguarda
Tullio Puglia - UEFA
Romain Lafont lembra que, apesar das palavras dos jogadores franceses estarem na ordem do dia, muitos deles apenas se limitaram “a dizer às pessoas para irem votar”, não tomando uma posição clara. Algo que apenas Thuram e Koundé (e esta quinta-feira, de alguma forma, também Mbappé) fizeram. Thuram tinha frisado isso mesmo na mesma conferência de imprensa em que se atirou decididamente ao RN: “Compreendo que algumas pessoas digam que temos de votar, mas não creio que seja suficiente. Devemos também falar da gravidade da situação.”
Questões políticas não influenciam desempenho
Em França, “há quem pense que os jogadores da seleção se deveriam concentrar no futebol”, diz William Pereira, e não na política, mas “nota-se”, aponta o jornalista, “que essas pessoas são as que estão ligadas à direita ou mesmo até à extrema-direita. “As pessoas mais humanistas ficaram com uma ideia positiva dos jogadores, por estarem a falar do contexto político”, volta a sublinhar.
Sobre se todas as questões políticas e a tomada de posição dos jogadores está a influenciar o rendimento da equipa, o repórter do “20 Minutes” diz não ver que nada esteja “a afetar os trabalhos” da seleção. “As únicas dúvidas que vemos em França são mais ao nível do trabalho tático de Didier Deschamps, ou falta dele, e de terem saído cá para fora algumas informações do balneário sobre isto. Mas sobre a questão da posição dos jogadores, nada”, sublinha. “Penso que no balneário toda a gente está de acordo sobre o tema do combate à extrema-direita. Quando és jogador da seleção francesa não podes estar de acordo com ideias racistas da extrema-direita, sejas de origem europeia, africana, asiática. Não vejo como algo que tenha afetado os jogadores”, continua.
Romain Lafont também não vê qualquer problema na seleção francesa, até porque os jogadores estão “fora do país”, numa redoma. Mas se o Europeu fosse em França talvez a história “fosse diferente”.
“Eu vou falando com a minha família e pelo que percebi a campanha política antes das eleições foi mesmo muito feia”, aponta.