Didier Deschamps, o pequeno e eterno general inimigo do risco
Christian Liewig - Corbis
O selecionador francês, o homem que mais jogos orientou no banco gaulês, tenta tornar-se o primeiro a ganhar o Europeu e o Mundial como jogador e treinador. Para tal, Deschamps — fã de criar “equilíbrios humanos” no grupo, sem problemas em “adaptar-se à situações” — terá de superar Portugal esta sexta-feira (20h, TVI), um país constantemente do outro lado da sua carreira
Para Didier Deschamps, tudo parece partir de uma certa ordem. De um equilíbrio das coisas, de uma receita sem excessos nem extravagâncias, mas que mantenha a ponderação. Sem esse delicado balanço, pensará ele, é impossível resistir durante 103 jogos como futebolista da seleção francesa, é impossível sobreviver ao longo de 149 partidas como treinador da equipa nacional de França.
“Os grupos constroem-se a partir do lado humano do coletivo. Tudo parte dos equilíbrios humanos que devemos criar. Construir isso depende de um balanço delicado, frágil, mas entusiasmante de fazer. É preciso muita ponderação”, comentou Deschamps, antes do início do Europeu, à UEFA.
Para desenhar essa força de bloco, Deschamps pensa em cada mudança sabendo que será uma peça nova para o seu calculado puzzle. Theo Hernández está a voar no Milan? Ok, mas só entra na seleção quando houver a certeza que não perturbará a ordem. O equilíbrio das coisas. Hugo Lloris está a viver o seu ocaso futebolístico? Tudo bem, mas só trocaremos de guarda-redes quando houver a certeza que abdicar do capitão não incomodará o balanço que se desenhou. A ordem, avessa ao risco, ao experimentalismo.
A partir desta ordem, Deschamps resiste. Resiste no outrora caótico mundo da seleção francesa de futebol, noutros tempos palco de intrigas e motins, revoltas e casos. Casos atrás de casos. Foi assim antes e depois de Didier ser capitão de França, foi assim antes de Didier ser selecionador de França.
Com ele como líder, seja em campo ou no banco, a ordem parece reinar. E, por muito que esta aversão ao risco possa ser entendida como um espartilho que limita as infinitas possibilidades que o talento dá a França, os resultados vão-lhe dando razão: a sua equipa não perde um encontro a eliminar no tempo regulamentar numa fase final desde 2014.
1998, 2000, 2018… 2024?
“A minha carreira de jogador é como um tesouro ao qual fui recorrendo”, disse Deschamps, em 2021, ao “Eurosport”, justificando a influência que a vida de futebolista tem na sua ação como técnico.
Quando o então centrocampista começou a jogar pelos bleus, em 1989, França estava longe de ser a potência na que se transformou. Conquistara, somente, um Europeu, em 1984, no auge de Michel Platini. Falhara as fases finais do Euro 1988 e iria falhar as dos Mundiais 1990 e 1994.
PIERRE VERDY
PIERRE VERDY
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Mudando os métodos de formação e aproveitando a enorme fonte de talento que é a imigração, França foi, gradualmente, tornando-se na maior e mais produtiva fábrica de produção de jogadores de futebol do mundo. Só que essa linha de montagem só foi devidamente aproveitada com um general de 1,74 metros como figura orientadora.
Em 1998, no Mundial em casa, Deschamps tornou-se no primeiro gaulês a tocar na mais importante taça do mundo do futebol. Dois anos depois, juntaria à conquista global a europeia.
Depois da sua retirada, em 2000, a seleção francesa voltaria, regularmente, a ser um espaço de conflitos e casos, não se maximizando a qualidade ao dispor. Os Mundiais 2002 ou 2010 foram exemplos desse desnorte.
Na África do Sul, no último campeonato do mundo pré-Didier, o caos atingiu o seu pico: Anelka discutiu com Raymond Domenech, o selecionador, no intervalo do encontro contra o México, acabando expulso da equipa. Como resposta, os jogadores fizeram grave, recusando-se a treinar, levando a outra discussão, desta feita entre Domenech e Evra, dando uma lamentável imagem dos azuis naquele torneio.
Era preciso voltar a recorrer ao general.
Em 2012, Didier voltou. Não como capitão, como selecionador. Desde então, a ordem regressou. Com 149 jogos no banco de França, nenhum homem se lhe aproxima como treinador da equipa nacional com mais encontros no cargo. A regularidade competitiva tornou-se a imagem de marca da mais consistente seleção da última década: três finais nas derradeiras quatro grandes competições, com a conquista de 2018 e os vice-campeonatos de 2016 e 2022.
“Há uma palavra que resume tudo: adaptar-se. Adaptar-se às situações. É a chave para perdurar no êxito.” Estas declarações à UEFA poderiam resumir os 35 anos de Deschamps na principal seleção de França, um espaço tradicionalmente atribulado mas que, com ele, se torna numa serena e por vezes pouco entusiasmante embarcação, que parece não libertar totalmente o potencial ao seu dispor. Mas que não se descontrola nem naufraga com estrondo, como sucedeu algumas vezes sem o pequeno geral.
Portugal, sempre Portugal
Para se consolidar como esta espécie de Napoleão da bola, pequeno líder que procura liderar as conquistas internacionais de França, Didier Deschamps terá, esta sexta-feira (20h, TVI), de superar um velho adversário: Portugal.
Foi contra a seleção nacional que disputou o penúltimo desafio oficial da sua carreira como jogador por França. A 28 de junho de 2000, nas meias-finais do Europeu, a célebre mão de Abel Xavier abriu caminho para o penálti de Zidane, lance que deu o triunfo aos então campeões do mundo.
Deschamps e Sérgio Conceição nas meias-finais do Euro 2000
Tony Marshall - EMPICS/Getty
Como treinador, o seu primeiro momento deu-se em 2003/04, quando levou o Mónaco à final da Liga dos Campeões. O adversário? O FC Porto de José Mourinho. A derrota por 3-0 não seria a primeira que Didier sofreria numa final contra um adversário português.
Em 2016, Deschamps levou França à sua primeira final numa década. Era, já, a equipa de Pogba, Varane ou Griezmann, pilares do triunfo de 2018, mas ainda não a equipa de Mbappé. No Stade de France, o golo de Éder tirou o título aos anfitriões. “Se voltássemos a jogar aquela partida, tenho a certeza que ganharíamos mais vezes do que perderíamos”, assegurou à UEFA.
Agora que Didier Deschamps tenta fazer história, sendo o primeiro homem a ganhar o Mundial e o Europeu como treinador e como jogador, Portugal volta a estar no caminho do francês de 55 anos.
Defensivo? Eu?
O gosto por um bloco sólido, com médios que atribuam equilíbrio constante ao coletivo, é uma das imagens de marca desta França. Os vice-campeões do mundo habituaram-se a partidas de controlo, sem demasiada loucura, ainda que com exceções, como os 4-3 contra a Argentina em 2018 ou os 3-3 seguidos de derrotas nos penáltis contra a Suíça no passado Europeu e frente à Argentina no Mundial do Catar.
Apesar desta imagem, poucas coisas irritam Deschamps como o rótulo de defensivo. “Não é verdade, não é. Começo sempre com a ideia de colocar o onze mais perigoso para o adversário”, disse ao “The Guardian” em 2018.
No derradeiro jogo do Euro 2024, contra a Bélgica, o técnico optou por reforçar o meio-campo, juntando Rabiot, Tchouameni e Kanté. A decisão prejudicou Antoine Griezmann, que jogou pela direita, posição que, depois do encontro, o próprio disse que não ocupava desde os tempos da Real Sociedad, há uma década. Sem qualquer golo ou assistência na Alemanha, bem como uma menor participação na circulação de bola, Grizzou, o mais relevante futebolista no cômputo global da era Deschamps, tem vivido um Europeu de menor protagonismo.
Com três golos marcados — dois auto-golos e um de penálti — e um sofrido, França tem vivido em serviços especialmente mínimos neste Europeu. Seja pelas dificuldades de Mbappé em jogar depois da sua fratura no nariz, pelas intermitências de Griezmann ou, simplesmente, por sentir que o verdadeiro Europeu começa agora, o conjunto gaulês parece estar a atuar a puxar o travão de mão, ainda mais controlador, mais inimigo do risco, como se Didier duplicasse a própria aposta que o caracteriza.
FRANCK FIFE/Getty
Pouco dado a entrevistas, o senhor seleção francesa, com 252 jogos na principal equipa nacional entre o tempo como futebolista e técnico, não resiste a dar bicadas à opinião pública: “Estamos outra vez nuns quartos de final. Não estavam à nossa espera, mas cá estamos. Não podemos banalizar esta regularidade, é um feito fantástico”, comentou depois de eliminar a Bélgica.
Depois de ganhar o Mundial 2018, Didier foi convidado para ser orador num congresso de treinadores. Aceitou, mas fez questão de dizer que não é “um professor”. “Sigo o meu caminho, mas há muitos outros possíveis. É uma questão de adequação e habituação ao contexto”, comentou.
O contexto de Deschamps é a seleção francesa, o habitat que conhece desde o final dos anos 80. Lá viveu o êxito da geração dourada de 1998 e 2000 e, como espetador atento, viu o descalabro de outros momentos, a desorganização, os motins. Parece ter decidido que, com ele, não seria assim.
Cada movimento é calculado, cada novidade que se introduz na equipa é ponderada, questionando as consequências de adicionar um novo produto à fórmula, como se fosse um químico com cuidado num laboratório. Daí que, regularmente, as novidades se transformem em regressos ao passado, regressos ao conforto que sossega Didier: Koundé, o central-lateral com uns toques de Pavard 2018; Rabiot, o médio pela esquerda com contornos de Matuidi 2018.
Assim se vai adaptando o pequeno general que comanda a melhor seleção do mundo no global da última década. Ganhou um Mundial, perdeu outros nos penáltis, perdeu uma final de Europeu no prolongamento, ainda conquistou uma Liga das Nações pelo meio. Para chegar ao inédito, precisa de vencer este torneio, superando um adversário clássico no seu percurso.