UEFA Euro 2024

A Inglaterra tem um ‘espião’ neerlandês a treinar-lhe os avançados. É o tipo a quem Rui Nabeiro chamou Jimmy e o nome colou

A Inglaterra tem um ‘espião’ neerlandês a treinar-lhe os avançados. É o tipo a quem Rui Nabeiro chamou Jimmy e o nome colou
Adam Davy - PA Images

Em 1995 chegou a Campo Maior um avançado para treinar à experiência e, na medida do possível, às escondidas. Jimmy Floyd Hasselbaink teve em Portugal a rampa de descolagem da carreira e da alcunha que levaria para Espanha e Inglaterra, onde se fartou de marcar golos e eventualmente partilhou equipa com Gareth Southgate. O selecionador inglês que esta quarta-feira defronta os Países Baixos (20h, SIC) nas meias-finais do Europeu chamou o neerlandês para dar uma ajuda com os avançados e trabalhar com eles os penáltis

O árido Alentejo era infértil em futebol de primeira, a nata endinheirada do país não abunda naqueles arrabaldes abaixo do maior rio de Portugal e antes da costa sul banhada por água salgada. Quando, em 1995, um farol de empresário viu a sua estima pelo clube da terra ser recompensada com a inédita subida à I Divisão, além da festa brava em Campo Maior, quis seduzir outro nível de futebolistas a mudarem-se para lá, a embarcarem na aventura. Através de um empresário português que conhecia um seu equivalente holandês que tinha um jogador dessa fibra, Rui Nabeiro terá esfregado as mãos de contentamento.

Jerrel Floyd era um rapaz de 23 anos, ainda a viver em casa dos pais desde que emigrara, em criança, do Suriname rumo à Holanda, cheio de talento nos pés arqueados para fora, um pata-choca inundado de talento para chutar uma bola mas que torcia as chuteiras a ser constante nos mínimos exigíveis a quem pretendia fazer vida do futebol profissional: Jerrel frequentemente aparecia atrasado nos treinos e, uma vez lá, era comum ter o desleixo de ser parcimónio no esforço despendido. Sem passar pela formação de qualquer grande clube do país, cedo a ideia de não ser dado à dedicação lhe foi posta a reboque.

Mas, ao vê-lo, o bigode do dono da Delta Cafés pressentiu estar perante um exemplar valioso de avançado e, tilintando com esse vislumbre, Rui Nabeiro aliou o gosto à necessidade. Porque preferia ‘Jimmy’ ao Jerrel do seu primeiro nome, começou a tratá-lo pela alcunha quando o jogador chegou a Campo Maior para fazer uns treinos à experiência - e para ninguém saber quem por lá andava a tentar encantar Manuel Fernandes, o treinador à época, temendo que olhares curiosos de outros clubes o detetassem.

Por obra do engenho do “cavalheiro” alentejano, recordado como um “homem simpático”, Jimmy Floyd Hasselbaink renasceu e foi renomeado para a bola em Campo Maior.

O antigo jogador assim descreveu Rui Nabeiro, há pouco mais de um ano, ao telefonema do MaisFutebol que o apanhou agarrado ao volante e a conduzir em direção a Gareth Southgate. Aguardava-lhe uma reunião com o líder da equipa técnica que integrara de fresco, o concomitantemente cavalheiresco treinador da Inglaterra que defronta os Países Baixos, esta quarta-feira, na terceira meia-final que discute como selecionador desde 2016, quando foi escolhido de surpresa para orientar a equipa nacional de um país a tostes com talento para a bola, mas pecador nas formas de o aproveitar nos grandes torneios. A escolha mais recente de Southgate por Jimmy pode ser traçada a um trauma.

Em 1996, o defesa central que em jovem simpatizava com a ideia de ser jornalista estava imiscuído no aglomerado de jogadores ingleses que se reuniam em torno de Terry Venables, o selecionador inglês, no impasse de 120 minutos de futebol. Haveria penáltis para decidir o futuro de uma Inglaterra a jogar as ‘meias’ de um Europeu em casa, no fervilho de expetativas, numa casa a abarrotar de esperança por a ver, três décadas volvidas, possivelmente devolvida a uma final. Perante a tremedeira de nervos que o rodeava, o selecionador perguntou a Gareth Southgate, um ignóbil defesa centra que jamais batera um remate a 11 metros da baliza enquanto profissional, se queria assumir a responsabilidade.

Por dentro, o jogador tinha as entranhas a bailarem uma kalinka de nervos e ansiedade, mas respondeu que sim.

Southgate falhou o seu penálti, a Inglaterra foi eliminada pela Alemanha e os estilhaços, mesmo que mínimos, do sentimento de culpa exacerbado pela investida sensacionalista de uma nação com tabloides a personificar nele um culpado terão jogado a favor no dia em que se lembrou de auscultar a disponibilidade de Jimmy Floyd Hasselbaink para se juntar à sua equipa técnica na seleção inglesa, em março de 2023. O então desempregado neerlandês, conviva de Gareth nos tempos que partilharam no Middlesbrough entre 2004 e 2006, onde o pontífice foi a final da Taça UEFA perdida para o Sevilha, aceitou ser o encorpado treinador, de braços maciços a testar a resistência do tecido das camisolas, com a tarefa de cuidar dos atacantes ingleses.

ADRIAN DENNIS/Getty

Ecos do trabalho individual que o neerlandês nutriu com eles, entre sessões de finalização personalizadas ou conselhos moldados ao praticarem os remates com a bola parada a 11 metros do alvo, vieram à tona após a Inglaterra eliminar a Suíça nos quartos de final deste Europeu. Tratando-o carinhosamente por Jimmy, vários jogadores prestaram-lhe homenagem. Phil Foden gabou, à BBC, a “muita experiência que tem no jogo” e como o ex-avançado “sabe o que faz” no “trabalho árduo” que tem estimulado com os ingleses: “Antes treinávamos os penáltis ao bater muitos e não havia um treinador estipulado para nos ajudar, agora temos o Jimmy, com quem rematamos só um par de penáltis nos treinos para não exagerarmos.”

Jude Bellingham, uma das teclas do piano com que os ingleses tiveram de arcar com o peso - há três anos, a seleção perdeu na final do Europeu, nos penáltis, frente à Itália - no momento em que tiveram de desempatar o jogo com a Suíça, sentiu-se “muito confiante” face “às coisas que falei com o Jimmy Floyd Hasselbaink” quando chegou a sua vez. “Ajudou-nos de forma massiva com o trabalho que fez nos bastidores, sempre perto de nós com informação”, reconheceu o inglês-sensação do Real Madrid.

A contribuição do ex-goleador que deixou 127 provas da sua eficácia na Premier League, remates bem-sucedidos no Leeds United, Chelsea e Middlesbrough, foi até atestado por jogadores que nem recebem o maior sumo dos seus ensinamentos. “Conhece a pressão e tudo o que vem com seres um futebolista num torneio de seleções, é bom tê-lo. Ajuda-nos muito com os penáltis”, elogiou Trent Alexander-Arnold, lateral direito e por vezes médio quando Southgate agita a sua árvore das invenções. E Luke Shaw, o lateral esquerdo convocado para o Euro 2024 estando lesionado, repetiu o louvo: “Faz muito trabalho específico com os avançados e traz-nos tudo, ele tem sido muito positivo e ajuda toda a gente, tem sempre conselhos a dar. É muito confiante e faz as pessoas sorrirem.”

Nos seus tempos de avançado, Jimmy bateu 21 penáltis na carreira distribuídos por Boavista (lá jogou depois do Campomaiorense), Atlético de Madrid, Leeds United, Chelsea, Middlesbrough e Holanda quando ainda era legal não a denominar por Países Baixos. Falhou apenas um, quando já não o conhecia unicamente pelo apelido.

David Cannon/Getty

A noção de Jimmy

Quando mergulhou no escuro e se atirou para Portugal, referiam-se a ele pelo último nome, Jimmy era então só Hasselbaink e saíra do seu país com a reputação que tinha agarrada ao apelido. “Não chegava nos jogos a horas, às vezes nem sequer aparecia. Não dava sempre 100% nos treinos”, recordou à Four Four Two, quando a revista o pôs a responder a perguntas de adeptos que o fizeram admitir o quão culpado foi, nos seus vinte e poucos anos, por ter descido às divisões semi-profissionais neerlandesas. Foi de lá que partiu para um magnata alentejano o batizar com o diminutivo em Campo Maior que ainda puxou um nome do meio para a sua identidade no futebol.

Jimmy Floyd Hasselbaink desatou a marcar golos e 22 dos 261 que acumulou na carreira apareceram na primeira época em Leeds. Era um rebelde avançado de brinco na orelha, novo na cena, nada novo na idade, quando a vontade de Guus Hiddink em chocalhar levemente a seleção holandesa o chamou pela primeira vez nos amigáveis pré-Mundial de 1998. O avançado, já com 26 anos, marcou um par de golos e voou para França com ‘surpresa’ escrito na etiqueta da bagagem. “Foi a primeira vez que se falou de mim na seleção. O treinador queria alguém fresco que ninguém conhecesse e tive sorte por se lembrar de mim”, recordou, na mesma entrevista, sobre a única fase final de uma competição de seleções onde esteve.

Depois de Leeds houve Londres, onde, antes e depois de um russo da Sibéria com cara de bonacheirão e pouco inglês falado comprar o Chelsea, providenciou golos até José Mourinho aparecer e o clube se render de vez às contratações milionárias. Jogaria até aos 36 anos, a derradeira partida da carreira uma final perdida da Taça de Inglaterra, em Wembley, com camisola larga de mangas compridas e um nome estampado nas costas de camisola.

Era Hasselbaink, não Jimmy, como se a estampagem no costado servisse para prender a sua memória à terra firme do que começara por ser, nas suas origens, rebobinada a fita ao início: em adolescente, as más companhias puxaram-no para piores atos e esteve durante três meses num centro de detenção juvenil, contexto que lhe influenciou o irresponsável comportamento que fez muitos clubes do seu país não o quererem por perto. A carapaça das suas desavindas servir-lhe-ão hoje para ser empático a lidar com futebolistas gaiatos: “Quando fazem coisas parvas consigo compreender o porquê de as fazerem e posso falar com eles.”

Sendo uma flor tão específica que floresceu tão tarde, Jimmy Floyd Hasselbaink deixou apenas 23 na seleção da Holanda que hoje é a dos Países Baixos, seja como for o mesmo país que também só o notou já no outono da sua carreira. Quando Inglaterra o conhecia de ginjeira pelos seus golos. “Aprendi muito com as minhas experiências e uma das mais importantes é entender pessoas com backgrounds e culturas diferentes. Acho que me vai ajudar mais tarde”, dizia, em 2013. As suas antenas parecem bater agora com as de Gareth Southgate e dos jogadores ingleses. E se o tratam por Jimmy, a culpa tem morada no Alentejo.

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